Os últimos tempos tinham sido muito duros para Lisboa. Em boa verdade tinham sido muito duros para todo o reino, mas de um modo talvez diferente e sem dúvida mais violento, para Lisboa. A cidade tinha crescido em espaço, mas sobretudo em poder e riqueza e adquirira um significado sem par dentro do País. Era reconhecida, sem contestação, como a “cabeça do reino”, desempenhava já diversas funções de capitalidade e caminhava a passos seguros para se tornar, na verdade, uma capital. E isso, que envaidecia os seus moradores e de uma maneira especial os seus dirigentes, manifestou-se, na circunstância, muito em seu desfavor, trazendo-lhe maior sofrimento do que a qualquer outra cidade ou vila deste reino. Aqui, as feridas da guerra tinham sido mais largas e profundas. A cicatrização demoraria muito a ser feita.
I- As desventuras de Lisboa
1 - Umas defesas fixas, fortes mas exíguas
Lisboa nascera no cimo de um morro sobranceiro ao Tejo, num sítio ideal para nele ser implantada uma cidade que se destinasse a crescer e a prosperar1. E Lisboa cresceu e prosperou. Desceu lá do alto e deslizou, colina abaixo, até se deter à beira- rio. E precisou proteger-se. Para isso obteve uma forte muralha que a partir lá do cimo, da cidadela, desceu depois, de um lado e do outro do casario, para se fechar ao longo de toda a área ribeirinha que, na altura, já se encontrava povoada. Era a chamada cerca moura2.
Mas Lisboa continuou a crescer e rapidamente transbordou para fora dos limites que lhe haviam sido impostos. Quando Afonso Henriques, em 1147, a cercou com o auxílio dos cruzados e conseguiu integrá-la no nascente reino português, ela tinha já saído, para Oriente, pela porta de Alfama3, mas sobretudo para Ocidente, pela porta do Ferro4, a criar dois arrabaldes5, ambos encostados à beira-rio. Bairros que continuaram a crescer, até porque as condições geográficas dos terrenos em que se implantavam eram das mais propícias. Sobretudo no que dizia respeito ao espaço que se espraiava para Ocidente, onde se foi desenvolvendo a parte mais rica, dinâmica e influente da cidade.
Após o cerco colocado por Afonso Henriques, Lisboa viveu mais de dois séculos sem voltar a ser seriamente assediada. Sofreu, é certo, vários ataques da pirataria, muçulmana e outra, infligidos a partir do “seu mar” - o Mar da Palha6 - e dirigidos de uma maneira especial, ao arrabalde que largamente se dilatara para Ocidente. Era aí que se iam acumulando algumas funções centrais, que se iam instalando as famílias mais proeminentes, que se abrira a tão fabulosa e exaltada Rua Nova, famosa pela sua largura, pelos belos prédios que a definiam de um e outro lado, pelo luxo e requinte do comércio que aí se desenvolvia, pelas fortunas que aí se avolumavam7. Era, pois, este espaço, o mais lucrativo para uma expedição de pirataria, quando bem sucedida. Como dissuasor e obstáculo para estas incursões depredatórias, D. Dinis promoveu a construção da chamada muralha da Ribeira8.
É certo que este, aliás dilatado pano de muralha, foi útil para o fim a que se destinava e desempenhou galhardamente o seu papel, embora os cuidados do soberano se tivessem limitado a proteger a parte mais exposta, pois que todo o arrabalde oriental continuou desprotegido. Todavia, para um assédio em forma, um cerco com arraiais implantados ao longo de toda a superfície urbana, com homens de armas decididos a permanecer, a lutar, a esperar o tempo necessário para a tomada da cidade, aquelas muralhas eram inúteis. O que, naturalmente, ficou em sobejo provado quando do cerco estabelecido por Henrique II de Castela, a que adiante me referirei.
Só a cerca mandada construir por D. Fernando, a englobar todas as áreas já caseadas e a incluir no seu interior, como, aliás, era hábito, espaços devolutos, vários dos quais se mantiveram agricultados em hortas até bastante tarde9 é que trouxe alguma segurança à cidade, permitindo-lhe, ao mesmo tempo, crescer internamente e poder albergar, em caso de perigo, os moradores do termo que nela procuravam refúgio e protecção.
O que não era pequena coisa, nos tempos conturbados que então se viviam.
2 - As desgraças de um passado próximo
Como é sabido e como bastante se tem estudado entre nós, as guerras em que D. Fernando se envolveu com Castela foram em tudo desastrosas para Portugal. Não é este o momento próprio para voltar a estudá-las10 e importam aqui sobretudo as consequências que acarretaram a Lisboa, e como a cidade reagiu perante elas.
Gorados os projectos de D. Fernando, no sentido de obter para si próprio a coroa de Castela, objectivo com que lhe haviam acenado alguns nobres galegos, descontentes,na sequência do assassínio de Pedro I, por seu irmão Henrique de Trastâmara e abandonado que estava esse objectivo, ao rei português não deve ter desagradado a proposta de aliança vinda de Inglaterra, onde, por sua vez, nasciam pretensões ao mesmo trono castelhano. Conhecidas em Castela estas negociações. Henrique II organizou o seu exército para uma entrada preventiva em Portugal, tendo desde logo, como objectivo principal, Lisboa, a qual lhe asseguravam ser a chave do reino e poder ser tomada com alguma facilidade e rapidez11.
E Henrique II entrou poderosamente em Portugal, por Almeida, e quase sem desvios dirigiu-se a Lisboa12. A entrada tinha sido bastante repentina e imprevista, o monarca português entrincheirara-se em Santarém, e Lisboa não teve condições para se preparar com vista a um assédio em forma. Aliás os lisboetas deviam esperar que na passagem do exército castelhano nas imediações de Santarém, D. Fernando se tivesse preparado para lhe tolher o passo, porque o Cronista nos diz que quando verificaram que isso não acontecia, “forom postos em muito cuidado por a gram perda que de receber entendiam”, e alguns diziam mesmo “que era bem de se juntarem todos, e hir pelleiar com el Rei de Castela aa ponte de Loiras, e alli morrerem ante assumados, que esperarem de sofrer tamanho mal como esperavom receber por sua vijnda”13. Era já uma atitude desesperada aquela que alguns lisboetas preconizavam.
Na verdade Lisboa apresentava-se, talvez até aos olhos dos próprios habitantes, como uma presa fácil. Sem tempo para se abastecer, com o rei aparentemente desinteressado pela sua sorte, sem uma chefia de provada eficiência e com a maior parte da sua população já estabelecida fora das muralhas - Fernão Lopes di-la “devassa e sem nenhuum muro, hu avia mais gente”14 - apareceria quase inerme aos olhares gulosos de Henrique II e do seu exército. A única defesa segura era ainda a velha cerca moura, mas os escassos dezasseis hectares que ela resguardava15 tinham-se tornado insuficientes, e desde há muito tempo, para dar guarida, sequer, à maior parte dos seus moradores. Não contando com aqueles que, do termo, aí viessem procurar refúgio.
Eram, todavia, umas fortes muralhas, estas. Quando Afonso Henriques as assediou e reiteradamente combateu, em 1147, em conjunto com os cruzados, só conseguiu danificar um dos seus panos, e se tomou a cidade foi após uma rendição negociada e não mercê de uma vitória alcançada pela força das armas, não tendo ficado a cidade arruinada nem despovoada16. E elas estavam ainda, essas muralhas, à chegada de Henrique II, perfeitamente operacionais. Porém, se dois séculos antes se mostravam já insuficientes para acolher todos quantos na cidade pretendiam fixar a sua morada - a existência dos arrabaldes atrás mencionados indicia isso mesmo17 - para mais numa época de guerra endémica como era aquela que então se vivia, o problema tinha-se, entretanto, agudizado sobremaneira. De acordo com Gérard Pradalié, no século XII a almedina seria já um espaço de construção contínua e por volta de 1210- 1230 o complexo paroquial encontrava-se completamente organizado18, o que bem mostra a densidade de povoamento que já então devia suportar.
Era para este pequeno espaço que os lisboetas, à pressa e desordenadamente se lançavam, transportando todos os bens e mantimentos que podiam carregar19, aí se acogulando apertadamente e por certo disputando qualquer palmo de chão onde fosse possível colocar os pés.
Entretanto Henrique II, progredindo do Lumiar, começava a instalar o seu cerco e a fazer desfilar, perante os olhos angustiados da gente de Lisboa, o espectáculo da sua força guerreira, dos seus homens, dos seus apetrechos bélicos, também das suas riquezas. Quando, pouco tempo depois, a frota castelhana, proveniente de Sevilha, entrava no golfo do Tejo e punha em fuga os navios portugueses que aí se encontravam fundeados e fechava o cerco pelo lado do rio20, restavam aos sitiados apenas duas coisas: esperar e resistir. E eles esperaram e resistiram. Esperaram vendo, impotentes e consternados, como o inimigo assolava todos os campos dos arredores, destruindo num ápice, longos anos de trabalhos árduos, alguns deles, eventualmente, fazedores dos sonhos de uma vida; assistindo, ao largo de todo o seu horizonte visual, a atropelos da mais variada ordem, ao saque, à destruição, ao incêndio de grande parte da sua cidade, da parte mais nobre e rica, ao desaparecimento das suas casas, dos bens que não haviam podido transportar consigo21.
Resistiram unindo-se e trabalhando em conjunto para se defender; armando-se com as armas que possuíam e procurando outras nos armazéns da cidade, ao que os próprios eclesiásticos se não conservaram alheios22; aguentando com firmeza os inúmeros e violentos ataques castelhanos e ripostando sempre, tanto quanto podiam; postando uma vigilância, constante e atenta, para evitar mais surpresas do que aquelas que o próprio assédio lhes trouxera23; mobilizando todos, num esforço em absoluto colectivo - que incluía mulheres e crianças - dando cada um o contributo que as suas forças lhe permitiam24. Mas resistindo, sobretudo, às condições infra-humanas em que se encontravam.
A massa humana era tão compacta dentro das muralhas, que qualquer pedregulho para aí atirado pelos quatro engenhos que guarneciam o cerco era susceptível de matar alguém25. Gente amontoada, a maior parte dela sem abrigo, sem o mínimo de condições de vida, num Inverno ainda não terminado e que, se em Lisboa não costuma ser muito agreste, não deixa, no entanto, de ser Inverno; sem poderem escoar as imundices dia a dia produzidas a não ser em locais muito próximos das muralhas e que, portanto, deviam transformar a cidade num local nauseabundo em extremo26, com as consequências, nomeadamente, em termos de saúde pública, que uma situação daquelas pode sempre acarretar; mas, sobretudo, com fome, uma fome que se ia agudizando com o passar do tempo e com a drástica diminuição que os alimentos iam sofrendo. Alimentos que nem sequer deviam ser muitos à partida, uma vez que a cidade não se prevenira para a situação que estava vivendo. Alimentos cuja falta já começara a causar a mortandade entre os mais desmunidos e os mais débeis.
Mas Lisboa resistia. E quando tudo parecia ter chegado a um ponto de eminente ruptura, com a mediação da Santa Sé foram estabelecidos acordos que levaram Henrique II a levantar o cerco.
Para os desesperados lisboetas, sabedores ou não do que lá fora se passava, o facto deve ter soado a milagre e os gritos de júbilo devem ter deslizado por todas aquelas ruas estreitas e tortuosas. E os agradecimentos a Deus também, como não podia deixar de ser, numa época em que se aceitava, com toda a simplicidade, a intervenção divina nas coisas terrenas, mormente quando essas coisas eram grandes e fugiam às limitadas capacidades das forças humanas. Como era o caso do que acabara de acontecer.
O cerco não fora longo. Contou um mês, entre a chegada de Henrique II a 23 de Fevereiro de 137327 e o pregão das pazes tratadas entre os dois soberanos, a 24 de Março seguinte28, mas a cidade ficara em grande parte destruída, o fogo lavrara livremente nos seus bairros não amuralhados, a pilhagem não poupara aí coisa alguma; muita gente morrera e muita outra ficara com indeléveis feridas ou perdera todos os seus recursos.
A cidade podia, é certo, respirar, aliviada que fora de uma grande pressão. Mas por pouco tempo. De acordo com o tratado anteriormente estabelecido com a Inglaterra,
D. Fernando esperava, havia tempo, um contingente de homens daí provenientes e a sua aparente inércia, face ao eminente cerco de Lisboa, teria a ver com essa espera. Mas eles chegaram, finalmente, esses aliados, sob o comando do conde de Cambridge, que se lançaram sobre o nosso País como exército invasor em terra inimiga, destruindo, roubando, violando, matando, praticando os crimes mais nefandos e muitos deles em absoluto gratuitos29, sem que o rei de Portugal e o conde inglês parecessem mostrar interesse em corrigi-los30. Perante esta situação, a ultrapassar o insuportável, os portugueses, sabendo embora que eles tinham sido chamados pelo seu soberano e não se atrevendo, por isso, a responder na mesma medida, começavam, no entanto, a fazer justiça pelas suas próprias mãos, matando “mujtos delles escusamente, de guisa que per sua maa hordenamça pereçerom tamtos que nom tornarom depois pera sua terra as duas partes delles”31.
Claro que estas atitudes de exército invasor tomadas pelos soldados “amigos” que de Inglaterra nos mandavam, manifestavam-se em todos os lugares para onde se dirigiam e estacionavam. Deste modo, grande parte do Alentejo sofreu horrores às suas mãos, mas muitos aí ficaram. Para sempre. No entanto, Lisboa e os seus arredores, pela centralidade do lugar, porque aí eles eram mais numerosos, os roubos, os crimes, os atropelos de toda a ordem foram mais e também mais acrescidos.
Saídos de uma situação extrema, os lisboetas viam-se envolvidos numa outra que sobremaneira contribuía para agravar os seus padecimentos e dificultar a recuperação de que eles se encontravam tão carecidos. E a guerra estava longe de apresentar um fim à vista, sendo que a mesma chegada dos ingleses indiciava, pelo contrário, o seu recrudescimento.
Felizmente o projecto das novas muralhas de Lisboa, gizado já em 136932 mas só mais tarde iniciado, ia avançar33. É certo que muito trabalho e muito dinheiro ele iria exigir, porque precisava de ser uma obra grande e robusta. E muito desse trabalho e muito desse dinheiro iam sair dos corpos e dos haveres dos depauperados lisboetas, já tão exauridos e tão massacrados. Todavia, em contrapartida, a cidade ia ficar segura, bem protegida e, em caso de necessidade, poderia dar guarida não só aos moradores, mas também a contingentes de homens de armas que viessem auxiliar a sua defesa e aos refugiados do termo ou, eventualmente, de mais longe.
E em breve essas muralhas iriam mostrar o quão úteis e eficazes se podiam tornar.
Após a morte de D. Fernando e dos tumultos que se seguiram em algumas das principais cidades aquando do lançamento do pregão por D. Beatriz como rainha de Portugal; após o enorme alvoroço em que Lisboa mergulhou, seguido por grandes desacatos - de que o “assassínio” do bispo e do seu acompanhante de momento foram talvez os mais cruéis - que se seguiu à morte do conde galego João Fernandes Andeiro, o maior apoio da rainha viúva, Leonor Teles, sabia-se que o rei de Castela, na altura já João I, rei marido daquela Beatriz que não era aceite como rainha de Portugal, em diversas cidades, iria entrar aqui, não como um monarca consorte, acompanhando a sua rainha, nas terras que por herança lhe deviam pertencer, mas como um soberano estrangeiro e hostil, à testa de um exército invasor com intentos de conquista. Para mais sabia-se, na cidade, “como el Rei de Castella se viinha chegamdo ao rregno” e na aflição do momento, “o comum poboo liure”, considerando não só inútil, mas antes prejudicial, apelar para a rainha mãe, refugiada em Alenquer, uma das vilas do seu senhorio, voltou-se para o Mestre de Avis, D. João, filho, embora bastardo, de D. Pedro, pedindo-lhe “por merçee que se chamasse Regedor e Defemsor do rregno”34.
Caso inédito e de consequências imprevisíveis que não alarmaria o rei castelhano, mas que também o não faria adiar a sua entrada em Portugal. Sabia-se aqui, desde finais de 1383 que essa entrada estava decidida e por certo não demoraria35.
Demorou ainda uns meses e, por isso, desta vez, Lisboa, dentro das suas muralhas de fresca data e prontas a receber o seu “baptismo de fogo”, teve tempo para se preparar. E preparou-se.
Na eminência de um cerco e antes que ele se concretizasse, convinha tomar muitas providências e não descurar qualquer pormenor. Na defesa de uma praça importava, em primeiro lugar, recolher dentro das muralhas, para lá dos homens de armas necessários a essa mesma defesa, bem como dos seus moradores e habitantes do termo, o máximo possível de alimentos, sobretudo o pão, o vinho e a carne, aqueles que a Idade Média mais apreciava e que podiam, sobretudo o primeiro e havendo para isso tempo, ir procurar-se, mesmo longe. Em absoluto necessárias eram também a água - que devia fazer-se tudo para assegurar que não faltasse - e a lenha, indispensável para a confecção dos alimentos, e em especial do pão. Deviam verificar-se todas as estruturas fixas de defesa e reparar-se qualquer rombo que nelas existisse. Lisboa, na altura, não precisaria de reparações, mas pelo menos parte da barbacã foi construída na eminência e mesmo durante este cerco36.
Havia que organizar uma vigilância ininterrupta em todo o perímetro da muralha, guardar sobretudo as portas, os seus pontos mais frágeis, numa vigilância dia e noite bem atenta, prevenir tudo, gerir tudo, em especial as armas e os mantimentos37. Quanto às primeiras, a maioria dos homens da época possuía armas. Naturalmente assim acontecia com os fidalgos que coordenavam as operações de defesa e as surtidas para medir forças com os inimigos e a par deles os homens de armas que constituíam as suas mesnadas e outros ainda, nomeadamente as milícias concelhias. Mas de uma maneira geral também o povo comum as possuía e a maior parte dos
homens tinha uma espada e uma lança38. Não seriam tão eficazes como os equipamentos dos homens de armas, mas eram, quando menos, de alguma utilidade. No entanto aí estavam os arsenais régios - onde, durante todo o cerco trabalhavam os armeiros39 - para fornecerem armas a quem delas carecesse, e entre esses estariam, por certo, os eclesiásticos, que também nessa circunstância se armaram, de maneira especial os trinitários40. Não faltava, sequer, nesses preparativos, uma farmácia de campanha, apetrechada com “camas e ovos e estopas e lemçoões velhos para romper; e çelorgiam41 e triaga e outras neçessarias cousas pera pemssamento dos feridos quamdo tornavam das escaramuças”42.
Alguns desses lençóis velhos e eventualmente estopas mal tratadas estariam, talvez, na origem de algumas feridas gangrenadas que aqueles soldados tivessem sofrido43. Só que, na altura, seria esse um pensamento de todo anacrónico.
Porém, não eram só os homens, munidos de qualquer arma, que participavam na defesa da cidade. Tal como no anterior assédio, todo o povo, armado ou inerme, participava, cada um dentro e de acordo com as suas capacidades. Até as raparigas, como nos conta o Cronista, enquanto apanhavam pedras nos arredores, que serviam depois de projécteis contra os sitiantes, escarneciam da hoste inimiga com canções feitas a propósito, que cantavam a altas vozes44.
Assim seria, ao menos no que diz respeito aos cantares, durante os primeiros meses do cerco, enquanto as condições, dentro das muralhas, não tinham começado ainda a agravar-se demasiado. Mais tarde talvez já não houvesse ânimo para isso. Nem forças.
Todavia a própria pressão que acompanhava a chegada de uma hoste invasora, o longo e demorado desfile das tropas que iam chegando e tomando as suas posições ao redor da cidade, a exibição de todo o material bélico - armas pessoais e engenhos pirobalísticos e neurobalísticos - todo um ferramental necessário para a construção de outros engenhos que iam nascer e formar-se perante os olhares impotentes dos sitiados era já sem dúvida grande e também sem dúvida aproveitada ao máximo pelos sitiantes. O mesmo acontecia com as destruições de todo o género perpetradas nos arredores, à vista de todos, conscientes da sua impotência para evitar ou, sequer, minimizar os atropelos que estavam a ser cometidos45. No caso de Lisboa havia ainda que contar, como instrumento de pressão, e não dos menores, com a frota que se posicionava a bloquear o Tejo, completando o cerco. O que parece não terem os castelhanos conseguido torná-lo estanque, na medida em que sempre puderam circular alguns barcos no golfo do rio, trazendo, inclusive, mantimentos46.
Depois a longa espera que não se sabia como e quando iria terminar; depois a sensação de sufoco provocada pelo encerramento, tão demorado, dentro daqueles muros; depois os ataques levados a cabo pelos sitiantes, de que resultavam mortos e feridos; a vigilância sem desfalecimento, que não podia ignorar nenhum palmo do circuito amuralhado; os alertas que podiam soar a qualquer hora do dia ou da noite, que se repercutiam pelos ares como a trombeta do Anjo do Extermínio. E talvez mais do que tudo, o agravamento da degradação das condições psicológicas e físicas de toda aquela gente. Tão longamente encerrada num espaço que cada vez mais se deteriorava, com os alimentos a precisarem ser cada vez mais criteriosa e parcimoniosamente consumidos, onde várias famílias começavam a não ter reservas, onde a inflação era cada vez mais galopante e onde, mesmo por altíssimos preços, nada ou quase nada aparecia à venda.
Neste cerco que Lisboa tão prolongadamente sofreu, com confrontos em terra e sobre as águas do Tejo47, com ataques repetidos e até ameaças de traição, a fome foi o inimigo mais temível e o que maior número de vítimas causou48.
O Cronista - sempre ele - pinta-nos o quadro com as cores mais sombrias: na cidade “nom avia trigo pera vemder, e se o avia, era mui pouco e tam caro que as pobres gemtes nom podiam chegar a elle […] e padeçiam mui apertadamente […] e começarom de comer pam de bagaço dazeitona, e dos queyjos das mallvas e rraizes dervas e doutras desacostumadas cousas, pouco amigas da natureza […] e começarom de comer as carnes das bestas, e nom soomente os pobres e mimguados, mas grãdes pessoas da cidade”. E o desfilar de infortúnios continua com os meninos de três e quatro anos esmolando pelo amor de Deus, pois seus pais não tinham que lhes dar “senom lagrimas que com elles choravom que era triste cousa de ver”. Por isso alguns fugiam daqueles muros por sua livre vontade, dirigindo-se ao arraial castelhano, “queremdo amte de todo ser cativos, que assi pereçerem morremdo de fame”. E chegou-se mesmo à expulsão das gentes consideradas inúteis para a defesa da praça: os judeus, as prostitutas, as famílias mais pobres que já tinham esgotado todas as suas reservas alimentares49.
No arraial castelhano, por sua vez, nada faltava. Era regularmente abastecido por mar e o amplo aro de vilas à volta de Lisboa - Santarém, Torres Vedras, Torres Novas, Alenquer, Óbidos, Atouguia, Sintra - todas elas em mãos, ao tempo, inimigas, pelo menos as das suas guarnições - assegurava também a vinda de mantimentos por terra. Não contando com aqueles que os soldados saqueavam num enorme circuito em torno de Lisboa, onde nada restou incólume. E não era apenas dos bens essenciais que a hoste castelhana se encontrava bem abastecida. Nada ali faltava, não só de mantimentos, “mas espeçiarias de muitas e desvairadas maneiras” e igualmente “comfeitos e açucares e comservas […] em muita fartura”. E Fernão Lopes acrescenta que até “agua rrosada e outras destilladas aguas de que os viçosos homeẽs husam no tempo da paz, todo se alli achava”50. Era o requinte máximo.
E era, por outro lado e noutra perspectiva, o contraste máximo entre as condições daqueles que cercavam e dos que se encontravam cercados. Na verdade, a abastança e requinte do exército inimigo, à vista dos esfaimados lisboetas contribuía, sem dúvida, para exacerbar os seus sofrimentos, tornando ainda mais atrozes as condições em que se encontravam51. Só um aspecto lhes era favorável: a peste, que há tempo grassava entre as gentes do arraial inimigo e a tripulação dos navios que completavam, por água, o encerramento da cidade e tantas vítimas diariamente causava, não entrara as portas de Lisboa. Facto que não deixaria de ser entendido, talvez de um lado e do outro, como obra divina. E que, a ser assim, traria algum alento para o interior da cidade.
Foi este um assédio duríssimo e que causou grandes sofrimentos àqueles que o suportaram, em muitos casos sofrimento até à morte, como atrás já ficou lembrado. Aliás os investigadores que com maior ou menor desenvolvimento têm estudado este cerco - e foram já muitos52 - todos o reconhecem. João Gouveia Monteiro chamou-lhe apenas “cerco duro”53, mas outros autores manifestam-se com maior expressividade. Armando Martins classificou-o de “pavoroso assédio”54; Miguel Gomes Martins falou em “estado de desespero”55, em “atitude desesperada”56; Luís Miguel Duarte em “terrível agonia”57 e até um autor espanhol, Emílio Mitre, falou na “árdua resistência” dos lisboetas58. Foi, efectivamente, um longo e sofrido assédio, que esteve muitíssimo perto de atingir o ponto de ruptura, dando origem ao “desespero; à agonia” a que os autores acima se referiram.
Mas os lisboetas resistiram e lutaram. Lutaram à ultrança nos últimos tempos do cerco, quando os castelhanos lutavam, também por certo com desespero, contra a peste que dizimava o seu arraial e sobretudo quando ela provocou aquele tremendo susto que foi o abeirar-se de D. Beatriz, a rainha cuja morte invalidaria todas as pretensões do marido ao trono português. Perante tal ameaça, a única coisa a fazer era levantar o cerco e partir, a proporcionar à pequena rainha de Castela todos os cuidados médicos possíveis, em lugar menos perigoso do que aquele em que se encontravam.
Naturalmente que os defensores rejubilaram com o levantamento do cerco, não obstante a frota inimiga ter continuado fundeada no Tejo, a impedir o normal abastecimento da cidade por mar59, e o aro de povoações que rodeavam Lisboa e haviam tomado voz por D. Beatriz, que é como quem diz, por Castela e cujas guarnições o rei estrangeiro reforçara60, continuarem a desempenhar o mesmo papel, desta vez pelo lado de terra61. Nestas condições, com todo o território à sua volta destruído e pilhado, Lisboa continuava desabastecida e sem poder alimentar capazmente os seus moradores. Durante algum tempo, por certo ainda longo. No entanto era mais fácil fazer chegar alimentos e o desaparecimento da pressão, física e psicológica, proveniente do facto de ter o inimigo à porta, para mais numa estadia tão prolongada como aquela fora62, fazia toda a diferença. E também o fazia, claro, a saída de quantos se haviam introduzido na cidade apenas para sua própria segurança e daqueles que tinham vindo para reforçar os efectivos de defesa, caso dos homens de armas chegados na frota proveniente do Porto.
Fosse como fosse e ainda que inimigos continuassem rondando por perto, Lisboa sentia-se liberta da maior parte do peso que até aí a oprimira. E, para mais, a libertação chegara de uma maneira tão providencial que não havia forma de a explicar humanamente, se é que os lisboetas queriam dar-lhe essa explicação. Na verdade, sabia-se que o anterior cerco, durante o governo de D. Fernando, fora devastador, é certo, mas, para além de não ter causado o mesmo sofrimento, fora levantado após negociações em que interviera a Santa Sé. Este, porém, que Deus permitira que ultrapassasse os limites do tolerável, mas que no último momento terminara, ao menos na sua parte mais sufocante, por motivos que nada tinham a ver com a acção humana, esse era diferente: a cidade fora castigada pelos seus pecados63, mas Deus amerceara-se dela e libertara-a no último momento.
Duas coisas havia a fazer: agradecer as benesses já recebidas e tornarem-se todos dignos dos favores divinos.
O mais urgente, todavia, era render graças. Por isso, no dia seguinte ao levantamento do cerco, uma grande procissão em que todos se incorporaram descalços, incluindo o bispo, D. João Escudeiro, partiu da Sé com destino ao mosteiro da Trindade, acompanhando o Corpo de Deus, que o prelado transportava. Aí, um longo sermão, proferido por um franciscano, Mestre Rodrigo de Sintra, “leterado em theolesia”, terminou com missa e regresso à Sé, sempre acompanhando o Corpo de Deus64. Acção de graças em postura de humildade e penitência - caminhando descalços - postura assumida por todos os participantes, incluindo os mais proeminentes, com conotações franciscanas65. E, sintomaticamente, também foi um franciscano quem proferiu o sermão, como atrás ficou lembrado.
Procissão, sermão, a Hóstia consagrada largamente exposta à vista e adoração dos fiéis, as três formas de culto que a Idade Média mais prezou e nunca faltavam, quer em momentos da aflição, quer como agradecimento por benesses recebidas do Céu66.
Lisboa encontrava-se exaurida, maltratada, carregada de feridas de todo o tipo, tanto na sua estrutura física como nos seus moradores - nos corpos e nas mentes dos seus moradores. Dois terríveis cercos, ambos duríssimos, num curto espaço de tempo; devastações violentas ocorridas em todo o seu termo, que, para mais, continuariam a ocorrer a partir daquelas vilas que a rodeavam e mantinham voz por Castela. E não podia ter deixado de haver ainda uma lembrança muito nítida e actuante de dois outros flagelos ocorridos poucos anos antes do primeiro cerco: aquele grande incêndio que destruíra a Rua da Ferraria e grande parte da Rua Nova, seguido por um terrível furacão que desmantelara várias naus que se armavam no porto da cidade, que destelhou casas, que arrancou árvores e não poupou sequer a Sé catedral, onde causou alguns estragos67.
Eram demasiados desastres para uma só cidade. Em época impressionável como esta de finais da Idade Média, em que todos estes acontecimentos podiam considerar-se terem causas obscuras, a ultrapassarem a esfera das coisas humanas e terrestres, a sua acumulação era qualquer coisa de demolidor. Seria preciso muito tempo e muito trabalho para cicatrizar todas as feridas.
Mas não houve tempo. Outros males se perfilavam no horizonte e se aproximavam a passos rápidos.
3 - Negras previsões para o futuro imediato
Embora Lisboa tivesse rejubilado com a retirada de D. João de Castela dos seus arredores, sabia que essa partida estava longe de ser definitiva. Não só deixava a esquadra no Tejo, a marcar a sua presença indesejada e a controlar todos os movimentos que ocorriam em terra, como o levantamento do cerco não significara uma derrota, mas apenas uma pausa para curar as feridas deixadas pela peste e reorganizar o exército, desfalcado pelas baixas que a doença tinha provocado. Nem sequer a retirada da frota algum tempo depois, em vista das mortes que a peste nela continuava a causar, era de molde a sossegar os lisboetas. Aliás era do consenso geral que a guerra iria continuar e seria uma dura tarefa.
Com efeito, pouco tempo depois uma nova esquadra inimiga vinha substituir a anterior, posicionando-se frente à cidade, a controlar toda a sua área ribeirinha. Era o primeiro sinal do novo perigo que se aproximava.
Quando aqui se soube que um grande exército castelhano já tinha entrado em Portugal, mais uma vez, como o anterior, pela estrada da Beira68, agora proveniente de Cidade Rodrigo69, em Lisboa, o medo devia ter-se instalado em todos os seus recantos. O exército que aí vinha era numeroso e bem apetrechado. Marchava numa coluna de cerca de cinquenta quilómetros de extensão70, acompanhada por uma imensa carriagem e integrava contingentes gascões71, bem treinados e experimentados nas lutas em que há já tanto tempo se enfrentavam franceses e ingleses.
Nada disto podia ser tranquilizador. Para mais, Lisboa sofrera nos últimos tempos, como ficou dito, tantos desastres arrasadores, que deixaram os seus habitantes debilitados, assim nos corpos como nas mentes e não houvera ainda tempo nem condições para se refazerem nem das feridas físicas nem das psicológicas72.
E o exército inimigo progredia no seu caminho, numa marcha que não podia ser muito rápida devido ao comprimento da coluna militar, mas sobretudo à extensa carriagem que ocupava, como era de regra, a sua parte central. Dias e dias de angústia para os lisboetas, que sabiam ser o alvo que estava no ponto de mira do rei castelhano. Não havia outro, até porque outros que houvesse dependiam deste.
Lisboa era a incontestável e incontestada “cabeça do reino”. Já atrás ficou lembrado. Já diversos investigadores o repetiram, incluindo eu própria, em anteriores ocasiões. Mas havia mais. Num país pobre e fracamente urbanizado como Portugal, essa “cabeça” contava de forma superlativa, tanto sob o ponto de vista prático e actuante, como sob os aspectos do imaginário e do simbólico. Só assim se compreende que fosse do consenso comum que a posse de Lisboa significava a posse do País73. O que tem vindo a ser repetido por quase todos os investigadores que se têm preocupado com este assunto, sobretudo a partir do que ficou dito por Fernão Lopes em vários dos seus textos sobre D. Fernando e D. João I, pela boca de alguns dos personagens que põe em cena. Mas muita outra documentação de variado tipo deixa isso mesmo expresso, em alguns casos com bastante clareza74. Poderei lembrar, por exemplo, um documento de Outubro de 1384, em que, após a enumeração dos serviços prestados por Lisboa, sobretudo a defesa que tinha acabado de opor ao rei castelhano, se diz que “por a defensam da dicta cidade estes regnos ficarom como ora sam”, isto é, livres da sujeição a Castela75. Em vários outros documentos se diz, de forma mais ou menos explícita, que a libertação de Lisboa era a libertação do reino. Naturalmente, a contrária seria também verdadeira porque, “como ella fizesse, que assi fariam todas”76. E no prólogo aos capítulos especiais apresentados por Lisboa às cortes de Coimbra de 1385 ficou claramente dito, após mais uma vez se ter lembrado a tenaz resistência ao cerco do ano anterior, que “a quall defensom, se se a dicta çidade nom aposera todo o regno se perdera”77. Isto é, perdida Lisboa, perdido todo o reino.
É certo que estas afirmações se inseriam num contexto especial em que Lisboa tinha, efectivamente, desempenhado um papel de grande relevo, mas, em todo o caso, tão publicadas a repetidas não o podiam ser à revelia do que era o pensamento da generalidade das pessoas.
Esta enorme proeminência que assim lhe era vulgarmente atribuída e que em tempos de sossego muito devia orgulhar, sobretudo os seus cidadãos “honrados”, naquelas circunstâncias não era de molde a apaziguar os ânimos e a impor tranquilidade. O grande poder que já entrara em Portugal, com um rei inimigo à sua frente, não se dirigia a nenhum outro lugar a não ser Lisboa. Todos o sabiam. E desta vez, como seria? Dados os grandes sofrimentos a que ainda havia tão pouco tempo tinham sido sujeitos; dado o depauperamento em que todos ainda se encontravam, sem tempo nem condições para terem cicatrizado as feridas, sem que o luto pelos finados se tivesse podido fazer78; dada a falta de condições para o aprovisionamento em víveres e em outros produtos necessários, o que poderia, agora, acontecer?
Mas havia mais.
O Cronista deixou-nos registo da exclamação proferida pelo monarca castelhano quando, no limite de todo o possível, levantou o cerco do ano anterior e se retirou: “Oo Lixboa! Lixboa! Tanta mercê me faça Deos que aimda te veja lavrada de ferros d arados!”79. Era um terrível anátema que sem dúvida era conhecido. E que sem dúvida dizia bem das disposições com que aquele monarca se retirara e voltava agora, se possível, em maior força. Ora, a cidade já sabia, porque já experimentara, o que se podia esperar das represálias dos poderosos. Aquando da oposição que movera ao casamento de D. Fernando com D. Leonor Teles, a vingança da rainha, logo que a oportunidade chegara, não fora esquecida80. E continuava latente sobre as suas cabeças ou, pelo menos, dado que D. Leonor Teles já caíra em desgraça, bem presente nas suas memórias, pois bem sabiam que aquela senhora afirmara, porque os lisboetas lhe chamavam “aleivosa” e outros apodos não mais lisonjeiros, que só se consideraria vingada de todos, “espeçiallmente dos homẽens e molheres de Lixboa […] ataa que tevesse huũ tonell cheo das línguas dellas”81. Por certo, em especial, das mulheres. A perspectiva que se avizinhava não se previa mais branda. Antes pelo contrário.
É certo que Portugal tinha agora um rei português, escolhido por portugueses. As cortes de Coimbra tinham acabado de dar sanção jurídica à revolução popular que estalara em Lisboa82 e isso iria congregar à volta do Mestre de Avis, agora D. João I, bastantes mais apoios83, mas o facto não aliviava a pressão sobre a cidade do Tejo, mas apenas lhe dava a esperança de que, desta vez, talvez fosse embargado o passo ao exército invasor, antes da sua chegada às proximidades de Lisboa. Todavia, um recontro desta natureza era sempre de resultados imprevisíveis e já se sabia que a coluna militar que aí vinha e contava, inclusive, com muitos portugueses, era enorme e bem armada. Muito superior a qualquer uma que pudesse vir a defrontá- la. E essa coluna continuava, inexoravelmente e sem desvios, o seu caminho de aproximação.
A angústia, na cidade, devia ser enorme; o medo devia encher todas aquelas ruas e vielas tortuosas como um manto espesso; o pavor quase devia poder palpar-se, de tão óbvio, nos rostos dos lisboetas. E eclodiriam talvez, aqui e ali, episódios de pânico. O que não seria caso de admiração. Pois se até D. João I, o rei feito na guerra, pois se até Nuno Álvares Pereira, o condestável de ferro, como muito apropriadamente lhe chamou Luís Miguel Duarte84, sofreram, como nos deixou registado D. Duarte, nítidos ataques de pânico85, como não aconteceriam em Lisboa, numa conjuntura tão dramática, a uma população maioritariamente de não combatentes, de gente de paz, mas que já assistira a tanta violência, a tantas atrocidades, a tantas mortes? Que já tinha sofrido, em alguns deles, qualquer tipo de violência e derramado parte do seu sangue, daquele sangue que variada documentação nos vai dizendo que foi “espargido” durante este período, em prol da causa que estava a ser discutida pelas armas?
Só uma esperança se mantinha viva: a do auxílio divino, que tudo podia e tudo bem ordenava. Porém, uma dúvida subsistia: seriam eles merecedores desse auxílio?
II- Os pecados dos lisboetas
1 - Uma sociedade angustiada e temerosa
Já desde há muito os medievalistas sabem que os finais da Idade Média trouxeram progressos consideráveis em vários sectores da vida dos povos, muitos dos quais foram mesmo decisivos para realizações que posteriormente vieram a multiplicar- se em bons frutos. Mas isso não pode fazer-nos esquecer que se viveram então tempos difíceis, que muitas foram as calamidades que se abateram sobre as populações europeias. Pensando apenas nas três grandes desgraças que tradicionalmente se pedia a Deus que nos livrasse - “a fame, a peste, a bello, libera nos Domine” - todas flagelaram na altura uma humanidade desprovida de quaisquer meios para as enfrentar86. Se os anteriores séculos sofreram crises alimentares, algumas mais violentas do que as ocorridas nestas últimas centúrias, elas não deixaram de ser muito gravosas para as gentes dos finais da medievalidade87, sobretudo em cidades mais populosas e tradicionalmente carecidas de cereal, como era o caso de Lisboa; a peste negra de 1348-1352 causou estragos muito significativos em toda a parte, não poupando qualquer recanto, sempre com mais violência em meios urbanos do que rurais, mas sobretudo com recorrências múltiplas até ao século XVI88; quanto à guerra, penso que o que atrás ficou dito resulta bem elucidativo dos males por ela causados e como Lisboa não foi poupada a esses males. Acontece, porém, que mesmo nos períodos em que não existia conflito aberto - em que vigorava um tempo de tréguas, em que acabava de se assinar um tratado de paz - nem por isso os seus males terminavam. Para além de todos os estragos que já tinham sido perpetrados, dos roubos - Fernão Lopes nunca se coíbe de utilizar esta palavra - que tinham sido o objectivo de muitas das incursões militares, a desmobilização dos exércitos, não permanentes, como se sabe, mas constituídos por vastos contingentes de mercenários que se tinham profissionalizado na guerra, colocava estes homens, por assim dizer, no desemprego. Muitos deles organizavam-se em bandos à volta de um chefe e continuavam a exercer o seu modo de vida. Afinal, faziam o que tinham aprendido a fazer e para isso mesmo, até aí, tinham sido pagos89. Isto é, a maioria da população, os não combatentes, continuava em guerra e a necessitar de armas - que tantos deles não tinham, em especial as mulheres e as crianças - para se defenderem90.
Outros males se juntavam a estes. E entre eles talvez não fosse um dos menores, ao menos para aquelas camadas de população mais informadas e gente de consciências mais delicadas, numa sociedade em que a religião impregnava tudo, a existência de dois papas, com a consequência que daí decorria: todos os cristãos se encontravam permanentemente excomungados, por um ou por outro dos pontífices, consoante os respectivos governantes optassem pela obediência a qualquer um deles.
Todas estas calamidades recaíam sobre uma população fragilizada, mal alimentada, vítima de doenças que progrediam com facilidade em organismos já de si debilitados e a que a medicina não sabia prestar ajuda91; uma população crente na origem sobrenatural das desgraças que flagelavam a humanidade e sobretudo, por isso mesmo, se sentia inerme perante elas. E, consequentemente, mais as temia. No dizer de Jacques Le Goff, a Idade Média foi o domínio por excelência dos grandes medos92 e, na sua sequência, das grandes inseguranças. Tudo isso exacerbado por aquilo que já há muito Johan Huizinga definiu como a “emotividade extraordinária da alma medieval”93.
Nestas circunstâncias uma luta bem renhida devia travar-se nas consciências mais delicadas e entre as populações mais esclarecidas: por um lado a ânsia de conhecer o futuro para, no melhor ou no pior, estando na posse dessa informação, encontrar alguma segurança; por outro, a certeza de que tudo estava nas mãos de Deus, e que grande pecado era querer imiscuir-se nos Seus segredos. E também que só Ele podia prestar o devido auxílio, mas só um povo limpo de pecado era merecedor da Sua ajuda. Um povo que não se atravesse a querer perscrutar os Seus arcanos, e só a Ele prestasse culto e reverência. Era preciso, antes de mais e sobretudo, confiar.
2 - Os mais nefandos pecados dos lisboetas
Perante uma tão grave situação como aquela que se antevia para Lisboa era necessário que a cidade se voltasse sem reservas para Deus, fizesse tudo quanto estivesse ao seu alcance para se limpar dos pecados e se manter limpa no futuro. Todos os males que até aí tinham massacrado os lisboetas junto àqueles que se perfilavam no horizonte e estavam já eminentes, só podiam ter como causa a ira de Deus a abater-se sobre eles94. Competia aos dirigentes citadinos, responsáveis pela manutenção da paz interna, pelo bom encaminhamento de todos os assuntos respeitantes ao bem da urbe, tomar as devidas providências.
É certo que se tratava aqui de uma questão de carácter religioso e que não podia dispensar o concurso de autorizadas vozes da Igreja, mas o protagonismo dos leigos nestas matérias era uma realidade que há tempo vinha a ser cimentada, é certo que só por uma pequena minoria95, mas onde se inscreviam as elites governantes de Lisboa96. Assim, enquanto no planalto de S. Jorge, lá para os lados de Aljubarrota e Porto de Mós, os dois exércitos se preparavam para a batalha, em Lisboa, e sem dúvida não só, rezava-se pedindo a ajuda de Deus. Mas os dirigentes da cidade, com outros, por certo seus pares, após a oração de Vésperas na Sé, juntaram-se na câmara, chamando, para o efeito, “onestas pesoas e religiosas, mestres e doutores em Teolisia”97, para, em conjunto e esclarecidamente, encontrarem a maneira de aplacar Deus. E essa maneira era banir “alguns graves pecados que se em esta çidade de mui longos tempos a ca faziam estremadamente pecados d’idollatria e costumes danados dos gentios”98.
Produziu-se então um notável documento99 sobre práticas de magia, superstições e costumes provenientes de bem remotas eras, mas que continuavam florescentes no meio urbano mais esclarecido e cosmopolita que em Portugal, à data, se podia encontrar. Na verdade, de acordo com o documento em questão, eram estes os pecados que na opinião dos magistrados lisboetas e por certo, sobretudo na dos teólogos que os orientavam, mais ofendiam a Deus.
De entre todas as maldades que se praticavam em Lisboa como em qualquer outro local - e as chamadas cartas de perdão, de que as chancelarias régias nos preservaram muitas centenas de exemplares provam isso mesmo - os responsáveis da cidade, naquela tarde da batalha, privilegiaram quase só aquelas que se podem incluir no âmbito da magia e da bruxaria, juntando a elas alguns costumes pagãos, ao tempo ainda em vigor, embora mais ou menos desvirtuados dos seus primeiros objectivos.
Não obstante todos os esforços desenvolvidos pela Igreja e até por leigos, quando chegamos a épocas próximas desta que aqui está em análise o Cristianismo coexistia ainda com práticas nitidamente pagãs100. Embora desde bastante cedo se ter tentado substituir algumas dessas práticas, sobretudo as que ocorriam em datas fixas, por festas comemorativas de alguns Santos ou acontecimentos da história do Cristianismo. Assim, por exemplo, a do Solstício do Inverno pelas comemorações do nascimento de Jesus, dado que até acarretava consigo o da Sua circuncisão, oito dias mais tarde e portanto no primeiro de Janeiro, dia dedicado às festas do deus Jano, que “abria o ano”, como deus das portas que era, ou a do solstício do Verão, em Junho, pelas festas dedicadas a S. João Baptista. Entre várias outras101.
Todavia, embora com diferentes roupagens - e mesmo assim nem sempre - os cultos ancestrais continuaram presentes, com a sua enorme carga de magia, a exercer o seu fascínio. Na verdade, como diz Franco Cardini, a inclinação para o mundo mágico parece nascer do mais fundo do âmago da condição humana102. É muito difícil de erradicar. A própria Igreja só já tardiamente se preocupou a sério com o assunto. No século XIII ainda podia, pela voz de alguns dos seus pregadores, falar com indulgência de práticas mágicas e adivinhação103. Foi o proliferar de heresias da época, entre as quais o Valdismo e o Catarismo foram as mais significativas, que a Igreja começou a endurecer a sua posição, até chegar aos métodos e atitudes que são conhecidos104.
É certo que em Portugal nenhuma daquelas heresias teve grande significado, mas aqui chegaram os ecos da luta que contra elas se movia em outras paragens, com endurecimento no ataque a todas as práticas não autorizadas pela Igreja. Sobretudo as elites urbanas estavam a par do que se passava e queriam agir em conformidade. Porém, os tempos que então se viviam eram, desde há muito, contrários ao sossego, à segurança, em toda a Europa ocidental e assim também entre nós e talvez de uma maneira especial em Lisboa. E a magia, a crença de que por ela era possível, mediante determinados rituais consubstanciados em palavras e gestos, manipular os poderes ocultos em benefício próprio ou em malefício de outrem e sobretudo conhecer de antemão o que está para vir, abre uma janela de esperança. Como reconheceu José Pedro Paiva, a magia limita a angústia105. O que, em tempos de grandes perturbações, não é pequena coisa. E é nessas alturas que as práticas mágicas reflorescem com exuberância, ganham adeptos, ganham força, podem, até, inventar novas expressões. Por isso em Lisboa se cometiam muitos e graves pecados de idolatria, no dizer dos homens reunidos na câmara da cidade, naquela tarde de 14 de Agosto de 1385.
Por muito que essas práticas ajudassem a desanuviar as mentes dos que a elas se entregavam, acabavam por ser uma espada de dois gumes, na medida em que, ofendendo a Deus, acarretavam com elas as iras divinas, com todas as desgraças que nisso estavam implícitas.
Nestas circunstâncias os governantes da cidade tinham que tomar providências. E não havia escolha: era preciso congraçarem-se com Deus, captar o Seu auxílio. Era preciso, numa palavra, exorcizar o medo que tomara conta da cidade, colocando-se todos sob a mais alta protecção.
Foram, pois, elencadas as faltas que aos olhos daqueles homens se apresentavam como as mais graves e mais recorrentemente cometidas. E elas eram, essas faltas, apenas de dois tipos: como já atrás ficou dito, eram as que pretendiam, de qualquer modo, manipular as forças sobrenaturais - idolatria - e as que perpetuavam antigos cultos a divindades pagãs, ou práticas consideradas atentatórias de algum dogma da doutrina cristã.
Os pecados que se inscreviam no primeiro tipo eram muito numerosos e procuravam efeitos vários106. Podem considerar-se, por um lado, os feitiços e os encantamentos, com ou sem invocação especifica dos demónios; por outro os processos de adivinhação do futuro e por outro ainda o uso de palavras e gestos mágicos para obter determinados efeitos, ainda que esses efeitos visassem um fim benéfico107.
Durante esta época aqui em estudo e também nos seguintes séculos eram muitos os feiticeiros que pretendiam conhecer segredos ocultos e saber utilizá-los e manejar as forças neles contidas, encaminhando-as na direcção desejada e para os efeitos pretendidos. Eram membros das comunidades em que se inseriam, vivendo em sintonia com elas. Todos os conheciam e acreditavam nas suas capacidades, crença que era partilhada por todos os escalões da sociedade, que todos requisitavam os seus serviços. Faziam feitiços, ligamentos entre homens e mulheres, encantamentos que podiam ter a intervenção de espíritos maléficos108. Era muito grave, por um lado, o trato e o pacto, com esses espíritos infernais, em nítida rebeldia para com Deus; por outro o pedido/requisição do seu auxílio, quando o único, verdadeiro e legítimo socorro em todas as provações era o que provinha de Deus. Para além de ser um grande desafio aos poderes divinos, pressupunha que a acção executada visava uma finalidade, ela própria maléfica. E com efeito assim era em muitos casos, chegando a ter como desígnio a morte de alguém.
No entanto entre nós, como alhures, o campo amoroso era o que suscitava maior número de intervenções mágicas109, ou idolátricas, como as classifica o documento que estou analisando. Porém, embora na maior parte dos casos o que se procurava era o amor de alguém, o que era um mal, dados os métodos para isso utilizados, também se procurava provocar a infertilidade, masculina como feminina - ou essa infertilidade, a existir, era atribuída a procedimentos mágicos - o que constituía um duplo malefício, aliás muito temido na época. Por isso o confessor não devia esquecer-se de perguntar ao confessando se deu alguma coisa a alguém “per modo de amadigos ou de feitiços”110.
Por sua vez as constituições sinodais consideravam estes pecados de feitiçaria e invocação de espíritos - os que fazem cercos para chamar os demónios - tão graves que não podiam ser absolvidos por qualquer sacerdote, mas apenas o bispo, depois de ele próprio ter examinado o caso, decidiria se o pecador era digno, ou não, de ser perdoado111.
Em tempos de incertezas era mais premente o desejo de conhecer o futuro e a tentação de satisfazer esse desejo. Já atrás ficou lembrado. Por isso as formas que a Idade Média utilizava na crença de obter respostas eram imensas. Os homens que elaboraram o documento em análise enumeraram algumas, a que deram o nome genérico de “obras de veedeira”, isto é, de vidente. Foram referidos agoiros, interpretação de sonhos, lançamento de roda, de sortes, derramamento de água através da joeira112, mas outras fontes portuguesas acrescentam algumas mais113, difíceis por vezes, de compreender, como, aliás, é também o caso do lançamento de água por joeira, que os homens de Lisboa elencaram. Penso, no entanto, que esta forma de vidência se inscreve na interpretação de figuras reflectidas em qualquer superfície brilhante, neste caso a água, mas que podia ser também um espelho, uma espada, por exemplo114. Este era também um pecado considerado grave, dado que a sua absolvição competia apenas ao bispo da diocese, após o respectivo exame115. Revestia-se de muita gravidade, em primeiro lugar porque o conhecimento do futuro não pertence ao ser humano - “nom ha no mundo homẽ nem molher que possa veer o que ha de seer salvante soo Deus”116; porque “a so Deus nosso Senhor e atribuido saber as cousas escondidas”, sendo ofensa querer apropriar-se desse conhecimento assim reservado117; em segundo lugar, para maior ofensa ainda, essa apropriação era feita por intermédio dos poderes do mal.
Não obstante toda a força da Igreja acolitada pelos poderes laicos, a magia divinatória nada perdeu em termos da sua atracção junto das populações. E embora fossem surgindo outras formas de magia a atrair crescentemente as atenções, esta manteve-se com toda a sua importância118.
Acções abomináveis eram ainda, como atrás ficou lembrado, palavras e gestos supostamente poderosos, ainda que esses poderes fossem usados para fins benéficos. Assim proibia-se pôr mão119, medir cinta, ensalmar120 olhado ou fazer qualquer outra coisa tendente ao tratamento de doenças humanas ou animais, desde que não aconselhadas, essas coisas, pela “arte da física”121. Assim eram os benzedores que estavam em causa, contra os quais, mais uma vez, tanto a Igreja como os poderes laicos se pronunciavam122.
Estas práticas não podiam ser toleradas pela Igreja, pelo sacrílego que no seu desenrolar se verificava. Com efeito, nelas se usavam gestos e fórmulas litúrgicas, por vezes em longas passagens mais ou menos deturpadas, e que dentro do cerimonial tinham, supostamente, poderes mágicos123.
Estas palavras podiam ser pronunciadas ou escritas. Havia quem as trouxesse consigo, ornamentadas com figuras - carantolas124 ou carauturas125, ambas as formas se encontram na documentação - mas nem tudo isto seria considerado pecaminoso, por quanto a fonte que tenho vindo a utilizar, de 1385, se refere apenas às figuras e o bispo de Lisboa, D. João Afonso de Azambuja, faz a distinção entre palavras más e desonestas e as que não podem ser encontradas na Bíblia126.
Eram estes os pecados de “idolatria” que os homens de Lisboa, naquela tarde de 1385 consideraram que deviam ser eliminados da sua cidade e termo. Os mesmos que, de uma maneira geral, também a Igreja considerava como os mais perniciosos, “porque nom pode nenhuũ de tal peccado usar, que nom participe da arte, e conversaçom diabolica”, como o próprio soberano reconhece127. Na esteira dos teólogos, naturalmente. Não admirava que todas aquelas práticas, mais do que quaisquer outras, atraíssem as iras divinas128.
Mas havia ainda mais algumas acções consideradas muito pecaminosas: as classificadas como “os danados costumes dos gentios”, que aqui se reduziam a cantar as janeiras e maias e a carpir os defuntos.
Carpir os mortos era herança proveniente de longas eras e que em algumas civilizações adquiria enorme importância - como na romana129 - e dava origem a cenas de grande dramatismo, que passavam por gritos desesperados para reter o defunto, por rasgar o vestuário, arrancar o cabelo e a barba, arranhar-se na cara, ferir-se e por outras manifestações de dor violenta130.
Tal como em relação aos ritos anteriormente abordados, a Igreja foi modificando, ao longo dos tempos, o seu entendimento sobre tais práticas. Embora em mais recuados séculos a liturgia hispânica tenha contemporizado com estes costumes, desde cedo algumas vozes se levantaram em seu detrimento131 e as críticas que suscitaram foram-se tornando cada vez mais duras. Todavia, sem conseguir aboli- los. Eles faziam parte dos rituais da morte e entre nós, ao menos no século XIII, altura em que já eram mal vistos e se propunham cânticos e salmos para que o pranto de homens e mulheres resultasse menos notório, tinham lugar em dois momentos: quando se transportava o corpo de casa para a igreja e após a sepultura132. Em outros lugares os rituais podiam conhecer um desenrolar diferente133.
Na época aqui em análise estas manifestações de dor assim tão ruidosa e dramaticamente demonstrada, consideravam-se um atentado ao dogma da Ressurreição134, uma vez que, havendo a certeza do reencontro num mundo melhor, a morte era apenas um afastamento temporário, crença suficiente para minorar todos os sofrimentos. Por isso em Lisboa se proibiam estas práticas contrárias aos mandamentos de Deus, embora, compreendendo que a morte traz sempre desolação e dor aos familiares e mesmo aos amigos dos falecidos, permitia-se usar dó e que se pudesse chorar135. Apesar de tudo, o afastamento é uma perda, que pode ser muito grande.
As festividades do primeiro dia de Janeiro, a marcarem o início do ano e do primeiro de Maio, com o renovar da vida e com o ritmo do rejuvenescimento das plantas e assim da Natureza, provêm, como as demais crenças aqui mencionadas, de um fundo tradicional muito antigo, de origens pagãs, e eram celebradas com rituais destinados a aplacar ou a tornar propícios os deuses que presidiam às respectivas funções.
Sobretudo em relação ao primeiro dia do ano continuavam em vigor muitos ritos ancestrais que em Lisboa, como por certo em muitos outros lados, eram executados na crença da sua eficácia. Para lá dos cânticos que, se não podiam ser em louvor do deus Jano, continuavam, por certo, a ser propiciatórios136, uma vez que se rodeavam de uma série de acções precisamente tendentes a tornar o ano mais favorável e a afastar os encantamentos do dia, em cada ano primordial137, executavam-se outras acções. Era por certo para exorcizar os maus agouros e outros males de origens obscuras, que em Lisboa, nesse dia, se lançava sal às portas, se juntavam ou britavam águas138 - não tomassem águas, diz uma outra lição139 - tudo isto “so titollo de janeiro”140, acreditando com estas práticas e outras mais, haver melhor ano ou mês141, prova de que estes actos eram tidos como eficientes, actuantes, pela generalidade da população.
É possível que nestas festas de Janeiro houvesse também rituais de outro tipo e talvez desfiles com raparigas vistosas e ricamente ornamentadas, como era tradicional no primeiro de Maio, na medida em que o documento que tenho vindo a seguir proíbe que se emprestem bestas, vestires, jóias e quaisquer outros “apostamentos” para janeiras ou maias, sob pena de os perder142. Em Maio é sabido que sim. E que eram alegres os cantares e festejos e que as moças que neles iam incorporadas faziam gala na riqueza dos vestidos que envergavam - próprios ou emprestados, como a documentação deixa dito - e se ornamentavam de flores, saudando o renovar da Natureza. Pormenor, este último, que em Janeiro seria bastante mais difícil de concretizar e devia, por certo, estar ausente.
Naquele momento de perturbação em que os homens de Lisboa se reuniram para produzir o documento que venho citando, não lembraram outras transgressões à lei divina, todos os dias, sem dúvida, cometidas na cidade e termo. Foi necessário um pouco mais de tempo, abrandada que fora a angústia que então se vivia, para, pensando melhor, perceberem que outras faltas havia a precisarem eliminação. Foi esse um trabalho posterior.
No entanto, mesmo em relação aqueles pecados que tinham recebido o estigma reprobatório, a única coisa possível era tentar dissuadir o povo de perseverar em tais práticas e isso apenas da maneira como, no direito civil, se procedia, isto é, por meio da aplicação de multas ou de degredo da cidade e termo, com pregão, isto é, com o máximo de publicidade. Aliás a Igreja, no que se refere às coimas, procedia de modo semelhante: de acordo com o preconizado pelos manuais de confessores, relativamente a muitas faltas. Inclusivamente a algumas das consideradas mais graves, as rigorosíssimas penitências que se encontravam estipuladas podiam ser substituídas por multas pecuniárias143.
Os resultados obtidos pelas determinações lisboetas não deviam ter obtido grande sucesso, como, aliás, era comum em circunstâncias semelhantes. Chegou-nos, para este mesmo caso, um claro exemplo de ineficácia. Precisamente a 14 de Agosto de 1402. Talvez como comemoração do sucedido havia quase vinte anos, o próprio monarca, reconhecendo o pouco sucesso que haviam tido as disposições tomadas aquando da batalha e atribuindo a sua ineficácia ao reduzido montante da multa - apenas cinquenta libras144 - deixou mandado que se elevassem os quantitativos a um patamar considerado suficiente para refrear aquelas tão pecaminosas práticas145. De novo com insucesso, uma vez que se conhece a sua continuação por tão dilatados tempos146. No entanto, para maior firmeza do que então se estabelecera, ficou determinado que de futuro, os juízes, regedores, vereadores, procuradores, ao iniciarem os respectivos mandatos, jurassem sobre os Santos Evangelhos guardar e cumprir o que então ficara ordenado e que duas vezes por ano, eles próprios ou outras pessoas idóneas inquirissem, sob juramento, pelas freguesias da cidade e termo, se alguém sabia de pessoas que aí usassem das “dictas maldades” e, encontrando-as, o facto lhes fosse “estranhado” de acordo com o que ficara estipulado147.
Todavia, as tentativas para estripar o mal da cidade já tinham nesta data antecedentes, aliás muito próximos. A 12 de Setembro de 1383, D. Fernando, já muito próximo do fim148, sob proposta lisboeta aprovou um autêntico plano de policiamento da cidade149. Só que, então, estavam em causa acções humanas individuais - roubos, mortes, outros atropelos de vária ordem - o que cabia dentro das capacidades e, mais, dentro das atribuições dos dirigentes locais. Era tudo muito mais simples.
3 - Promessas de acção de graças
Na circunstância em que na altura se encontravam, os dirigentes de Lisboa, conscientes de que não estava nas suas mãos fazer fosse o que fosse para influenciar os acontecimentos que iam seguir-se, sabiam também que não bastavam as tentativas de limpeza da cidade - conheciam, por experiência própria, como elas eram, de uma maneira geral, pouco eficazes - mas era preciso ir mais além. Era preciso organizar clamores colectivos, tão volumosos quanto possível, de modo a serem bem audíveis lá em cima, na esfera de Deus e dos Seus Santos. E para isso, para congregar multidões, nada melhor, na época, do que organizar uma grande e vistosa procissão. Foi o que prometeram fazer, triplicando os eventos e os destinos a que se dirigiam.
A procissão, com origens ao tempo já antiquíssimas, entroncando nas Escrituras Sagradas150, era uma das cerimónias religiosas mais difundidas e participadas da época151, até porque a sua espectacularidade, a sua visibilidade, a sua envolvência com o corpo citadino, com as ruas por onde se desenvolvia a passo lento, muitas vezes transportando a Hóstia consagrada, o Corpo de Deus, que, por assim dizer, ia sacralizando o espaço, tudo isso se apresentava muito conforme com a sensibilidade de uma Idade Média que se encontrava já perto de chegar ao fim152.
Ficou então estabelecido que para se reconciliarem com Deus, não bastando abandonar os maus costumes, era preciso substitui-los por outros de sinal contrário. Estabeleceu-se que para o futuro se realizassem todos os anos três procissões solenes, precisamente naqueles dias em que mais costumavam pecar, isto é, nos dias primeiro de Janeiro, primeiro de Maio e de Santa Cruz. A procissão que iniciava a série fazia-se na catedral, em louvor do Nascimento e Circuncisão de Jesus, sem indicação de outro lugar a que se dirigisse153; seguia-se, no dia de S. Tiago e S. Filipe, quando “se costumava de fazer onrra a Maya”, em louvor da Virgem Maria, com destino a Santa Maria da Escada154; a última devia realizar-se no dia de Santa Cruz, em honra dessa mesma Cruz e o destino seria o templo de igual invocação.
Muito importantes devem ter sido consideradas essas promessas, até pelo simbolismo de que sem dúvida se revestiram, pois o mesmo documento nos informa de que elas foram feitas naquele dia 14 de Agosto, “logo com sayda das vesperas na see”, onde todos tinham estado a orar, “em a qual ora se começou a batalha”155.
Era demasiada coincidência para não impressionar de forma indelével as mentes medievais. Não só os lisboetas, mas todos aqueles que do facto tiveram conhecimento. E a notícia, como era habitual, deve ter-se espalhado com a rapidez possível.
III - A descompressão e o agradecimento
1 - O anúncio da vitória
À hora em que se travava a batalha nos campos de S. Jorge, em Lisboa pouco mais se saberia para além de que o prélio era inevitável, que seria decisivo para o futuro do País e, naturalmente, da cidade e de todos eles. Passava-se tudo suficientemente ao longe para que notícias fidedignas demorassem a chegar. Mas sem dúvida que se tinha conhecimento da deslocação do exército português na direcção do castelhano, porque os preparativos e o rumo tomado não passavam despercebidos em Lisboa. Aliás, muitos dos seus homens caminhavam ou cavalgavam integrados na coluna portuguesa. Conhecedores dos trajectos e dos terrenos como muitos em Lisboa seriam, era fácil conjecturar de forma aproximada, o momento do encontro. A angústia adensar-se-ia, sem dúvida, com a aproximação do momento decisivo. E não seriam apenas as preces que se multiplicariam e subiriam de tom - acompanhadas, talvez, por outras com diferentes rituais e linguagem, saídas de judiarias e mouraria, onde muito havia, também, a perder - mas a ânsia de saber, de agarrar o futuro, de, de uma maneira ou de outra, descansar um pouco no conhecimento. Por isso os boatos começaram a circular.
Diz-nos o Cronista que sem se saber como, mas “asy como milagre”, naquela hora em que a batalha foi travada “naçeraõ na çidade hũas graçiosas novas mereçedoras dalvissaras”: um homem vestido de vermelho viera anunciar que a batalha fora vencida. O alvoroço foi imenso. Todos perguntavam querendo certificar-se da verdade, andavam de casa em casa onde era dito que ele pousava, mas em vão. Sossegaram por fim, mas talvez mais descansados, porque tomaram tudo aquilo por bom começo156.
Era este um boato comum na época. Segundo os especialistas na matéria, as batalhas campais, sobretudo se previsivelmente definitivas, como era o caso, foram poucas mas, sem dúvidas, todas elas altamente angustiantes para todas as populações nelas interessadas. Desafiavam uma sensibilidade tão pronta a manifestar-se das formas mais extraordinárias157. Eram frequentes, em situações semelhantes àquela que Lisboa vivia, os relatos de figuras sobrenaturais, ou de alguém morto na batalha - e desse modo transformado também numa dessas figuras - aparecendo em lugares bem afastados a anunciar o resultado do prédio158.
Talvez aqui, em Lisboa, depois de Aljubarrota, fosse algum destes últimos, na medida em que, não sendo mencionada qualquer entidade espiritual, é talvez sintomática a figura de um homem que ninguém conhecia, que ninguém encontrava quando todos o procuravam e que vestia de vermelho - a cor do sangue.
Um pouco mais descansados pelo “bom augúrio”, contudo os lisboetas não descuraram das suas contínuas orações, reunindo-se nas igrejas - de um modo especial na sé - para entoarem em coro a Salvé Rainha em honra e louvor da Mãe de Deus e mesmo quando mais tarde, um moço de Alenquer, esse bem um ser humano, aí chegou confirmando o boato do primeiro dia, a sua alegria foi tamanha que ainda lhes custava a acreditar. Só quando alguém que vira a chegada do rei castelhano à sua frota, “desbaratado” e de regresso à sua terra, lhes narrou o facto, é que de todo acreditaram. Só então, escutando o relato de testemunha presencial, afastadas todas as dúvidas, era o tempo das grandes e sentidas manifestações religiosas: todos descalços em sinal de penitência, organizados em procissão, dirigiram-se a Santa Maria da Escada, onde foi celebrada missa e onde por certo um dos frades franciscanos ou dominicanos, como era hábito, os brindou com uma pregação, sem dúvida de agradecimento e louvor a Deus e à Virgem159.
Como diz Thomás Labbé, na Idade Média, era à volta do religioso que se formava o processo da reconstrução social160. Era assim aquando de qualquer catástrofe natural, era assim também em outras situações de grande tensão, geradoras de necessidades religiosas provocadas pelo choque moral.
Estava feito. A batalha fora vencida e agora já não restavam dúvidas em Lisboa. Os rituais religiosos em que todo o povo participara tinham actuado no sentido de uma mais completa ligação com Deus - na medida em que haviam demonstrado a gratidão da cidade, em vista do grande bem que recebera161. Todo o povo rejubilando em uníssono, penitenciando-se em uníssono162, sem dúvida emocionando-se em uníssono com o sermão do frade pregador163, por certo agradara a Deus.
Se tudo quanto se viveu em Lisboa após a interiorização, na consciência colectiva do povo, de que a batalha era inevitável, até que de todo a calma possível se instalou, foi uma sucessão contínua de pontos mais ou menos altos vividos em comunidade, talvez não tenha sido dos menores aquele que correspondeu à chegada das ofertas que o rei enviou à cidade, constituídas por alguns dos despojos da batalha: cinco bandeiras e dois balsões do rei de Castela. Coisa “de pouca valia e muito de prezar”, como nos deixou dito o Cronista164. Com efeito, embora de reduzido valor intrínseco, o seu significado simbólico era enorme. E para Lisboa, na circunstância, representavam a sua libertação. Verdade que era geralmente reconhecida165; que D. João I reconheceu, sabendo como a oferta seria apreciada naquela cidade que tanto o ajudara a subir às alturas a que se encontrava guindado.
Um caso semelhante se verificou, um pouco mais tarde, em Castela, aquando da batalha de Toro, em que tanto os portugueses como os seus opositores se consideraram vitoriosos166. Na altura, alguns despojos arrecadados pelos castelhanos, no máximo tão magros quanto aqueles - algumas bandeiras, o arnês de Duarte de Almeida e um pedaço da sua lança - foram solenemente depositados na catedral de Toledo167.
Quando em Lisboa se soube que o rei lhes oferecia “aquelas tão prezadas jóias”, a alegria transbordou. Os homens, todos armados, saíram as portas da cidade para as receber, por certo acompanhados de muitas mulheres e crianças e à vista da esquadra castelhana que ainda não deixara as águas do Tejo e passaram-nas, arrastando-as pelo chão e com uma outra, das armas do rei de Portugal altaneiramente erguida, até ao lugar onde, aquando do anterior cerco, o rei de Castela tinha armado o seu arraial. Porque, dali, tudo era bem visível a partir da frota inimiga.
Os troféus foram depois depositados na sé, onde mais uma vez, como não podia deixar de ser, o povo foi agraciado com um longo sermão a cargo de Frei Pedro, “gram leterado em theolesia e muy afamado de gramde preguador”168. Mais uma vez um franciscano.
2 - Agradecer a Deus
Restava agora à cidade manter e intensificar os seus agradecimentos a Deus, à Virgem Maria e a outros Santos auxiliadores.
No dia seguinte ao do recebimento das bandeiras provenientes da batalha, mais uma vez os “honrados cidadãos” de Lisboa se reuniram na câmara com muitos outros do povo e com vários letrados e religiosos dos diversos mosteiros, para regulamentarem169 a forma como, no futuro, se deviam comportar os lisboetas e quais e quantas acções de graças deviam ser perpetuamente rendidas a Deus e aos Santos para demonstrarem a sua gratidão. Sentiram que, neste transe, Deus estivera com eles. Mas os medos e as angústias experimentados tinham deixado marcas. Não queriam repeti-los. E era sempre possível que a sua má conduta de novo acarretasse sobre eles as iras divinas. Era preciso ir mais além: limpar melhor a cidade dos seus actos pecaminosos, promover mais algumas manifestações de louvor e adoração, não permitir que o grande favor recebido caísse no esquecimento170. Assim, ratificando tudo quanto dias antes tinha sido acordado, foram programadas mais algumas acções litúrgicas e estabelecidas penas para mais alguns pecados públicos.
Para além daquelas três procissões anuais que anteriormente tinham determinado fazer, foram estabelecidas nada menos que outras nove. Uma delas em louvor de S. Vicente, padroeiro que era da cidade, realizada na catedral a ir “onde o seu corpo jaz”. Outra em louvor de S. Jorge, a terminar na igreja da sua invocação. S. Jorge, aquele que tinha passado a ser o “apelido” de guerra dos portugueses, tanto, por certo, por influência inglesa, como por razões de irrefutável lógica. Se até aí portugueses e castelhanos “apelidavam” o mesmo Santo - S. Tiago, como é sabido - até porque a sua principal guerra era contra os muçulmanos, nestas circunstâncias não fazia qualquer sentido que assim continuasse a ser. A terceira procissão pretendia honrar os Santos Mártires de Lisboa, Veríssimo, Máxima e Júlia que, segundo a sua legenda, aqui tinham sido martirizados durante as perseguições decretadas por Diocleciano, embora, ao tempo, já se tivessem perdido as suas relíquias171. O que, de certo modo, ficou expresso no documento que tenho vindo a analisar, onde se encontra dito que esta procissão se devia dirigir a Santos “ou hu quer que os seus corpos jouverem”172. Isto é, Santos todos eles com ligações profundas à cidade ou ao acontecimento que tinha acabado de ocorrer.
Mas foram ainda programadas mais seis procissões, todas elas marianas. Todas com datas cirurgicamente escolhidas: as primeiras três nas vésperas do Nascimento, Anunciação e Purificação da Virgem; as restantes em três dias seguidos, de modo a fazer a última coincidir com a véspera da Assunção173, a festa mariana maior - o dia da batalha. Era necessário que Maria fosse honrada de forma singular e mais expressiva. Porque era a Mãe de Deus, intercessora privilegiada junto do Filho, e portanto do Pai; porque lhe “prougue que nosso senhor el rey ouvesse tam stemada vitorya”, precisamente na véspera da Sua “mais Solene festa e aa ora que se per todos estes regnos seus louuores cantavam”174. Parece não se cansarem de repetir a coincidência. Para melhor a vincarem. Com todo o seu valor simbólico. Para não ser esquecida. Esta circunstância tinha, sem dúvida, calado fundo nas mentalidades portuguesas, a tornar mais viva a devoção à Virgem175.
Para todas estas procissões os “cidadãos honrados” de Lisboa convocavam a cidade inteira, ou, ao menos, uma pessoa de cada casa. Como costumava fazer-se no dia do Corpo de Deus. Nada mais ficou escrito a seu respeito. Todavia, as três procissões de Agosto, carregadas de um tão grande simbolismo, determinavam três dias de grande devoção.
No primeiro desses três dias a procissão dirigia-se ao mosteiro da Trindade - por certo a partir da Sé, como as seguintes - onde, à chegada, os participantes escutavam um sermão, findo o qual assistiam a três missas cantadas em louvor da Santíssima Trindade; no segundo o destino era a capela do Salvador, no mosteiro de S. Francisco, onde, após o sermão, eram cantadas cinco missas em honra das cinco chagas de Cristo; no terceiro, tendo como ponto de chegada o mosteiro de Santa Maria da Graça, ouvia-se, à entrada, a inevitável pregação, à qual se seguiam sete missas cantadas, em louvor das sete alegrias da Virgem. As duas primeiras teriam carácter penitencial, uma vez que os seus participantes deviam incorporar-se nelas descalços; a última já seria apenas de louvor e acção de graças.
Se todas as procissões se queriam muito participadas, estas três últimas, além disso, deviam ser feitas “per a guisa que se faz ao Corpo de Deus e com aquella solenidade”176, isto é, com a grandiosidade espectacular que já então era seu apanágio e sobretudo, porque era o cerne desta festa, a mais solene de toda a Cristandade, com a exposição da Hóstia consagrada a percorrer as ruas da urbe, a permitir que os fieis se aproximassem, a olhassem longamente, beneficiassem desse contacto visual.
Na verdade, embora as festas do Corpus Christi, onde sobretudo avultava a procissão, não tivessem neste final de Trezentos, uma muito longa vigência, porque instituídas no século anterior177, rapidamente se tinham difundido por toda a parte, ganhando a maior importância e adesão popular. O que também entre nós se verificou178.
Tratando-se de uma festa eucarística, ela correspondia, de uma forma talvez perfeita, aos anseios religiosos da época. Chegara-se à conclusão de que era necessário aproximar-se de Jesus para chegar ao Pai179. Assim, a devoção cristológica tomou novas formas, os cultos do Bom Jesus, do Corpo de Cristo, do Cristo Doloroso e outras: numa palavra, do Cristo Humano. A adesão sentimental a Deus pela contemplação da humanidade de Cristo, sobretudo dos Seus sofrimentos, mas também da Sua Encarnação, da Sua Ressurreição, eram exigências que se colocavam de forma cada vez mais insistente180. Por outro lado, a catequese eucarística, ensinando que na Hóstia consagrada estava verdadeiramente o corpo de Cristo e não apenas o seu símbolo, levava os fieis a quererem aproximar-se dela o mais possível, a quererem vê-la, a deslocarem-se de igreja em igreja para assistirem ao momento da Consagração que, inclusive, tomou a forma de elevação para que todos pudessem ver a Hóstia sem dificuldade181. Atribuía-se-lhe, mesmo, uma eficácia que se derramava pelo exterior182.
Não admira que os crentes tivessem aderido com tanto entusiasmo a estas festas e elas tivessem adquirido a pujança, a divulgação, o brilho que adquiriram. Eram estas festas que se queriam reproduzir em Lisboa nos dias antecedentes da Assunção da Virgem em comemoração da vitória.
Neste contexto Lisboa aumentou em doze o número das procissões a realizar anualmente na cidade. Número que crescia sempre com algumas outras, não periódicas, organizadas a pretextos vários183.
A acompanhar este autêntico e enorme ramalhete de procissões e missas, o povo devia entoar em coro, na sé e nas outras igrejas, a Salvé Rainha e a Litania durante todo um ano, como, aliás, já vinha a fazer184.
A graça recebida tinha sido imensa, sem medida. Tudo era pouco para agradecer tão grande favor. Pelo contrário: era sempre preciso mais. Até porque, numa circunstância como esta em que Lisboa e, como é óbvio, Portugal no seu todo se encontravam ainda numa situação de grande fragilidade, era preciso ir sempre mais longe. No caso concreto da cidade era preciso limpá-la melhor das manchas do pecado. Não bastava pensar apenas naqueles que já tinham sido proscritos.
Dentro da esfera de competências dos governantes locais e assistidos de outros com eles reunidos para o efeito, entenderam que havia ainda “huum pecado mui publico e mui husado” que era o da “barreguiça dos casados”185, o qual cominaram com penas severas que podiam chegar, à segunda reincidência, à proibição de administrar os bens do casal, tanto móveis como de raiz. Nesse caso a gerência ficaria a cargo da esposa, se fosse idónea para isso e, caso contrário, para alguém da família dela186. Ligado a este pecado, o da alcaiotaria, também muito usado, mas que tinha já proscrito na lei geral com as respectivas penas187.
Para além destas ainda duas outras faltas: não honrar e guardar o repouso dominical e blasfemar contra Deus e os Santos, pelo menos este último considerado muito grave188.
Embora apoiados, como anteriormente, por teólogos, os homens ali reunidos sabiam ser impotentes, por si sós, para imporem as suas determinações. Precisavam a seu lado a força da Igreja, ao mais alto nível a que podiam chegar: o seu bispo. Por isso lhe requereram “da parte de Deus que oolhe por correger e enmendar o povoo assy pessoas eclisiasticas come sagrãaes”, porque tanto entre uns como entre os outros, assim na cidade como no termo, “stam publicamente em alguuns pecados graves e nom temendo Deus nem avendo vergonha do povoo”, se deixavam “em elles publicamente perseverar e envelhecer e sua vida acabar”189.
A preocupação estava centrada nos pecados públicos, aqueles que eram notórios, que, de uma maneira geral, todos conheciam e, assim, por um lado, podiam ser mau exemplo que se reproduzia e por outro podiam ser objecto de escândalo para consciências mais delicadas. Os pecados do foro íntimo de cada um, aqueles que ninguém via, que ninguém conhecia, ou de que poucos davam conta, esses não perturbavam a cidade e, aparentemente, não ofendiam tanto a Deus ou, pelo menos, não provocavam os seus castigos.
De qualquer modo, os homens “honrados” de Lisboa, na altura, fizeram o que podiam e cabia dentro das suas competências: denunciaram os males e aplicaram as respectivas coimas aos infractores. Afinal, não tinham outros meios de persuasão nem podiam obrigar os seus concidadãos a mudar de vida. Possivelmente as decisões então tomadas tiveram o sucesso habitual, isto é, muito reduzido, como já atrás ficou lembrado190.
IV - Concluindo: o juízo de deus
Para todos, portugueses como castelhanos, o que se passou naquela tarde de 14 de Agosto foi, efectivamente, um juízo de Deus que mostrou a razão que assistia aos portugueses e por isso eles podiam rejubilar. Não obstante saberem que as pazes não poderiam ser firmadas de imediato e haveria ainda, sem dúvida, outras refregas e sofrimentos, agora sabiam que Deus estava do seu lado. Podiam confiar. Mas não facilitar a infracção. Mas não consentir desregramentos. Mas não cometer o grave pecado de se mostrarem ingratos e consentirem no esquecimento. Por isso as numerosas acções de culto em louvor a Deus, à Virgem e outros Santos por quem consideravam ter sido auxiliados191. Por isso o reconhecimento de que o desfecho do prélio fora obra de Deus “da qual batalha a vitorya stava soo em na mãao de Deus”; entre tantas graças recebidas a maior de todas foi esta que agora, por intermédio do rei, Deus quis mostrar “dando-lhe tam maravilhosa vitorya”, expressões que foram registadas no documento que venho analisando. Registadas para memória futura, para que o facto não viesse a cair no esquecimento192.
Em Lisboa, os homens que tomaram estas providências, pensaram, talvez, que a sua iniciativa para aplacar a ira de Deus fora importante para o desfecho da batalha.
Naturalmente que em Castela foi o reverso da medalha. Um resultado tão estrondoso e, ainda para mais, tão rapidamente alcançado, não podia ser senão obra de Deus. Deus que não os apoiava, que se manifestara em seu desfavor. Vicente Ángel Álvarez de Palenzuela é muito claro: “Es Aljubarrota, a batalha193 que ratifica el juicio de Diós en favor de João I194”.
Interiorizada esta “verdade” pelo rei castelhano e por certo por grande parte do seu povo, era óbvio que tal castigo se devia a grandes males anteriormente praticados, tanto pelo monarca como pelos seus súbditos. A família real vestiu luto, em público e em privado e, reunidas cortes em Valladolid, nesse mesmo ano de 1385, o rei explicou que esse luto não se devia apenas ao infausto resultado da batalha, mas também aos pecados que reconhecia perante todos: tolerara males e injustiças dos poderosos por todo o reino, costumes que sabia estarem profundamente arreigados na sociedade; lançara sobre o reino uma excessiva pressão fiscal, destinada aos custos da guerra. Mas, o que era pior, essa pressão não podia ser abrandada e subiria ainda por causa dos refugiados portugueses que teria de continuar a albergar. Tudo por culpa dos seus pecados195.
Todavia, é bem sabido que as hostilidades continuaram. Muito demoraria ainda a reconstruir o que fora destruído. Muito sangue continuaria a correr e muita destruição haveria ainda de ser feita. Sabia-se isso dos dois lados da fronteira.
Procurava-se, cá como lá, o auxílio divino para o futuro. Aqui, com acções de graças e penalização dos pecados públicos; além com o reconhecimento das faltas passadas, ao menos por parte do rei. Só que acompanhado, esse reconhecimento, pela incapacidade de lhe pôr cobro196.
Do que não há dúvida, penso, é de que a batalha de Aljubarrota - ou Batalha Real, como queiram chamar-lhe - foi uma das mais decisivas da Idade Média. É a ela que nós, portugueses, devemos o facto de continuarmos a ser um povo independente, com identidade própria, com fronteiras longamente marcadas e estruturadas, que nem os futuros sessenta anos de governo comum puderam apagar. Mas não foi só dentro da Península que os seus efeitos se fizeram sentir. Como bem observou Peter Russel, também a Inglaterra teria sido seriamente afectada por uma ligação entre os poderosos exércitos castelhano e francês, agindo em conjunto197.
Se, como então parece ter sido geralmente aceite, a mão de Deus esteve por detrás deste acontecimento, essa mão agiu em favor de Portugal e sem dúvida infundiu ânimo nas mentes portuguesas de então.
Decisivo, para derrotar os medos.
Referências Bibliográficas
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