No decorrer de investigações para o projeto BITAGAP2, deparei-me com um manuscrito do Arquivo Distrital de Braga que, após alguma pesquisa, concluí poder identificar-se com um códice alcobacense quinhentista considerado perdido. Informei desse facto os responsáveis por este projeto, Professores Arthur Askins, Harvey L. Sharrer e Martha Schaffer e, pouco depois, redigi uma pequena notícia para a página do Facebook do projeto Philobiblon, de que BITAGAP faz parte, dando conta do achado. As informações aí deixadas, juntamente com algumas mais, foram imediatamente incluídas na BITAGAP (Texid 10802 e Manid 4414). Prometi então voltar ao assunto, de modo a justificar e explicar mais detidamente esta descoberta. Embora ela tenha sido, entretanto, mencionada na versão revista de um importante estudo da autoria de Aires Nascimento3 (que tinha sido informado do facto por Arthur Askins), não cheguei a cumprir aquela promessa. Faço-o agora, aproveitando esta oportunidade, pela qual agradeço à revista Medievalista.
1. Cristóvão Rodrigues Acenheiro, as Crónicas Abreviadas dos reis de Portugal e a crítica
O nome de Cristóvão Rodrigues Acenheiro (ou Azinheiro) e as suas Crónicas Abreviadas dos Reis de Portugal4 - que passarei a designar por CRP - são bem conhecidos dos investigadores, embora faltem estudos aprofundados que lhes sejam especificamente dedicados. Acenheiro foi um bacharel em direito civil e procurador eborense, sobre cuja vida pouco se sabe. Nasceu nessa cidade em 1474 e aí faleceu em 1538, deixando descendência e sendo, então, morador na freguesia de Santo Antão5. É conhecido, sobretudo, por duas obras. A primeira é o chamado Livro do Acenheiro6, uma compilação de resumos e cópias de documentos relativos à sua cidade natal, elaborada, ou terminada, em 1537 a pedido de D. João III e presentemente à guarda do Arquivo Distrital de Évora (num. 1796 da Misericórdia de Évora). A segunda, que aqui nos interessa, são as já aludidas CRP.
Segundo as suas mesmas palavras, foi em 1535 que Acenheiro deitou mãos à tarefa, que à época começava a ser prática comum em Portugal7, de reunir, selecionar e sumariar um conjunto de informações respeitantes à história dos sucessivos monarcas portugueses, tarefa de que resultou a composição das CRP8. Como ele diz, esta obra assentava em três conjuntos principais de fontes: as crónicas novas e velhas do reino, mais uma antiga crónica “da Galiza” e uma outra castelhana (textos em que baseou os seus resumos dos governos e reinados desde o conde D. Henrique até D. Afonso IV); um Sumário previamente feito por algum curioso a que ele se limitaria a acrescentar certos trechos e cujo conteúdo ia desde o reinado de D. Pedro até o de D. João II; e, por último, lembranças do próprio Acenheiro relativas aos reinados de D. Manuel e de D. João III. Ainda que os objetivos pretendidos com a feitura deste sumário de crónicas não tenham sido expostos com a mesma clareza, facilmente se suporá radicarem eles na conveniência de pôr nas mãos de públicos diversificados matéria que por então estaria ao alcance apenas de quem tivesse os conhecimentos e os meios necessários para proceder à leitura ou cópia das volumosas e ainda inéditas crónicas portuguesas. Em todo o caso, e apesar do sucesso de que poderão dar conta várias cópias que da sua obra se fizeram (aspeto que mais abaixo retomarei) a crítica moderna tardaria a reconhecer o importante papel por ela desempenhado. É certo que a Academia das Ciências de Lisboa incluiu-a na valiosa coleção de “Inéditos de História Portuguesa”, editando-a em 1824 sob a designação de Chronicas dos Senhores Reis de Portugal. Mas terá bastado um severo juízo de Herculano considerando-a “um rol de mentiras e disparates” de que, quando muito, haveria que aproveitar as lembranças da época de D. Manuel e D. João III, ou uma não menos severa e sumária apreciação de Teófilo Braga9 para que a obra regressasse ao esquecimento de que por momentos e graças à impressão parecera poder sair.
Assim iam as coisas quando, pelos anos 40 do século passado, as importantes e infatigáveis investigações de Artur de Magalhães Basto em torno da antiga historiografia portuguesa abriram caminho para uma melhor compreensão dos importantes problemas suscitados pela obra de Acenheiro10. O erudito investigador portuense compreendeu muito bem, na verdade, que, ao apresentarem-se, sobretudo, como compilações de escritos prévios e alheios, as páginas do bacharel de Évora talvez preservassem amplas passagens provenientes de textos que hoje se poderão considerar perdidos ou desconhecidos - qualquer coisa como um “cemitério de crónicas”. E, tratando de pôr em prática a sua ideia, conseguiu demonstrar que entre as fontes de Acenheiro se encontrava nada menos que a crónica que tinha sido há pouco redescoberta pelo próprio Magalhães Basto - refiro-me à chamada Crónica de 1419-, e que seria ela uma das “crónicas velhas do reino” a que o historiador quinhentista alude em algumas passagens da primeira parte da sua obra. Dado o estado algo defeituoso como esta Crónica de 1419 chegou até nós, a compilação de Acenheiro poderia mesmo fornecer importantes achegas a respeito do conteúdo de algumas partes que não se preservam nos testemunhos conhecidos, entre elas, e como logo evidenciou Magalhães Basto, talvez o célebre episódio da morte de Inês de Castro. Por outro lado, ao acolher quase na íntegra uma obscena carta de D. Afonso IV cujas passagens mais chocantes haviam sido explicitamente omitidas por Rui de Pina na versão mais conhecida desta carta, prestara o bacharel um importante serviço à cultura portuguesa.
Na década seguinte, seria a vez de Diego Catalán recuperar para a investigação a outrora desprezada obra de Cristóvão Rodrigues Acenheiro. Catalán deparou-se com ela pela primeira vez aquando das suas investigações em torno da historiografia sobre o rei Afonso XI de Castela11. Verificando, com efeito, que num considerável número de autores portugueses dos séculos XVI e XVII que historiaram o reinado de Afonso IV (Rui de Pina, Acenheiro, Nunes de Leão, Rafael de Jesus, Faria e Sousa) se refletia o conhecimento tanto do Poema (ou da Gran Crónica) de Alfonso XI como da versão mais conhecida da Crónica de Alfonso XI, Catalán estudou minuciosamente as relações destes textos entre si, adiantando a hipótese de que todos eles decorressem, direta ou indiretamente, da Crónica de 1419, cujo autor - que Catalán nunca duvidou ter sido Fernão Lopes - seria assim o único a ter tido acesso às referidas obras castelhanas12, nem sempre as aproveitando, porém, com rigorosa fidelidade Ao mesmo tempo, despertou-lhe a atenção certa “crónica galega de trezentos anos feita”, cuja matéria abarcaria desde o reinado de Pelágio até à batalha do Salado, obra a que por mais de uma vez aludia Acenheiro, sem que o grande investigador espanhol curasse, por então, de desenvolver o assunto. Tal viria a acontecer num conjunto de artigos logo revistos e reunidos em livro. Aí, procurou Catalán, com inegável sucesso, deslindar as fontes do bacharel de Évora13, demorando-se particularmente na secção dedicada a D. Henrique e aos sete primeiros reis de Portugal. Secundando as atrás mencionadas pesquisas de Magalhães Basto, Catalán começou por confirmar que as “cinco crónicas velhas do reino que primeiro se ordenarão” a que alude Acenheiro correspondem à Crónica de 1419, e que, ao contrário do que as palavras do historiógrafo quinhentista fazem crer, o aproveitamento desta fonte não se limita à história dos cinco primeiros reis, verificando-se também no reinado de D. Afonso IV. As “crónicas novas do reino” seriam, por sua vez, e como também já Magalhães Basto notara e facilmente se suspeitaria, as de Duarte Galvão e de Rui de Pina. As grandes novidades do estudo de Catalán viriam, no entanto, de outros lados. Visivelmente empenhado em refutar a bastardia de D. Teresa (questão que começava a pôr problemas à emergente historiografia nacionalizante, ou mesmo proto-nacionalista), Acenheiro convocou a seu favor o depoimento de duas “antegissimas caronicas”, castelhana uma, “gallega” a outra, das quais constava ter sido a ligação de Afonso VI a Ximena Muñoz, mãe de Teresa, não um concubinato, mas um verdadeiro e legítimo casamento. Citou, para esse efeito, e “de berbo a berbo”, os casamentos e a descendência de Afonso VI de acordo com ambas as crónicas (a segunda das quais incluía a novelesca narrativa do batismo da Moura Zaida e uma remissão para a história dos reis de Portugal) e voltou a referir-se à “Coronica gallega” a respeito de dois pormenores diretamente relacionados com o reinado de D. Afonso Henriques: o auxílio de Soeiro Mendes em S. Mamede e a informação de que D. Mafalda, primeira rainha portuguesa, seria da linhagem de “Bollonha”. Comparando todas estas citações com a historiografia medieval ibérica conhecida, Catalán verificou que a descendência de Afonso VI tal como constava da “Coronica da Galliza” se baseava fundamentalmente numa versão do chamado Liber Regum aparentada com a redação toledana desta obra (ca. 1230), embora contivesse passagens que nela não figuravam; que a historieta do batismo da Moura Zaida aí interpolada aparece também em duas versões da Estoria de España de Afonso X, mas inserida no meio de matéria textual oriunda das obras de Lucas de Tuy e Ximénez de Rada, o que na citação de Acenheiro se não verifica; que os episódios do reinado de Afonso Henriques são, por sua vez, muito semelhantes ao que a este respeito contam a chamada IVª Crónica Breve de Santa Cruz de Coimbra e o Livro de Linhagens do Conde D. Pedro, assim como a última versão da Estória de España; e, por último, que a “antegissima” crónica castelhana apresentava também vários pontos de contacto com a redação toledana do Liber Regum acrescentando-lhe, porém, matéria respeitante à figura de D. Afonso VI que não se encontra em nenhuma das versões atualmente conhecidas desta obra de origem navarra14. Explicando e aprofundando estas relações, o grande investigador espanhol chegou à conclusão de que a “Crónica gallega” citada por Acenheiro seria uma crónica portuguesa pouco posterior a 1340, mas que retomava um texto anterior, fonte também de uma das versões da Estoria de España15. Outra conclusão era que essa antiga crónica portuguesa tinha sido, por sua vez, a fonte principal do Livro de Linhagens (e também da Crónica Geral de Espanha de 1344) da autoria de D. Pedro, conde de Barcelos. Neste mesmo estudo, e embora se refira à questão apenas de passagem, Catalán chegou a uma outra conclusão de extraordinária importância: afirma ele, com efeito, que a súmula de crónicas em que Acenheiro baseou o seu trabalho na secção dedicada aos reinados de D. Pedro I até o de D. João II não só nos é conhecida, como se trata nada menos que do “unique and most interesting”16 ms. 290 do fundo Alcobacense da Biblioteca Nacional [BITAGAP manid 1192], suposto rascunho de Duarte Galvão em que se encontra uma Crónica de D. Afonso Henriques amplamente emendada e anotada bem como um sumário dos reinados de D. Sancho I a D. João II juntamente com alguns outros documentos e textos.
Após estes notáveis esforços de Magalhães Basto e de Diego Catalán, a obra de Acenheiro voltaria a cair num relativo esquecimento, dele saindo quase só naqueles momentos em que diversos autores, abalançando-se a breves sínteses da antiga historiografia portuguesa, se limitavam a citar uma ou outra passagem das CRP ou a reproduzir as teses daqueles dois investigadores, apesar de nem sempre darem mostras de as terem corretamente assimilado. Uma importante exceção a este panorama constituem-no os trabalhos de Jorge de Sena, que dedicou a Acenheiro um verbete no Grande Dicionário de Literatura e Crítica Portuguesa17 e já antes se havia ocupado dele, com detalhe, no seu monumental estudo dedicado às representações histórico-literárias da figura de Inês de Castro18. A Sena cabe o indiscutível mérito de abrir caminho para uma nova abordagem da obra em questão, especificamente direcionada para o estudo da forma como Acenheiro tratou a matéria compilada e do que isso poderia relevar de um discurso ideológico representativo de alguns setores da elite intelectual portuguesa do tempo de D. João III. Infelizmente, certa tendência do então professor da Universidade de Wisconsin-Madison para se enredar em pseudoproblemas, aliada a um desconhecimento da produção historiográfica quinhentista que o estilo assertivo não chega a disfarçar por completo, fazem do seu vasto ensaio uma curiosa mistura de inovadoras pistas de trabalho e intuições geniais com leituras equivocadas e teses manifestamente insustentáveis19.
Mais recentemente, eu mesmo ocupei-me de diversos aspetos da obra historiográfica de Acenheiro. Por um lado20, identifiquei um trecho da antiga crónica portuguesa citada por ele em diversas partes da obra mas que tinha passado despercebido a Catalán. Trata-se de um episódio da época de Afonso VII de Castela e Leão sobre as lutas com sua mãe, a rainha D. Urraca, e respetivos partidários, que Acenheiro transcreve literalmente no sumário do reinado de D. Pedro I, de modo a mostrar a excelência da família de Inês de Castro, já que um dos principais intervenientes nessa narrativa é Gutierre Fernández de Castro, familiar remoto de D. Inês. Por outro lado, ocupei-me demoradamente do ms. ALC. 290 da BNP21, em relação ao qual, e entre outras conclusões, reforcei a opinião de não poder tratar-se de um rascunho de Duarte Galvão e confirmei a ideia de que o sumário de crónicas presente neste manuscrito foi a fonte principal de Acenheiro para os reinados de D. Pedro I a D. João II.
Todos os trabalhos que acabo de referir têm como preocupações fundamentais a identificação das fontes das CRP, a análise do modo como foram utilizadas e de como isso, entre outros aspetos, revela a visão histórica da obra, no contexto em que foi e para que foi redigida. Faltava, contudo, um trabalho que se ocupasse da transmissão do texto, em si mesma ou como etapa para uma futura edição. Esta abordagem tem-me também ocupado nos últimos anos. Em conjunto com outros membros da BITAGAP, localizei e descrevi várias cópias manuscritas das CRP, uma das quais motivo para este trabalho. Ficavam assim, pela primeira vez, reunidas e sistematizadas informações sobre a tradição manuscrita desta obra, a qual, até esse momento, era conhecida somente através da edição oitocentista, única existente.
2. A edição de 1824 e a tradição manuscrita das CRP
As CRP foram, com efeito, editadas, pela primeira e única vez, em 1824, no volume V e último da coleção de “Inéditos da História Portugueza”22. Contrariamente ao que sucedia nos volumes anteriores desta coleção, neste 5º e último volume não são fornecidas informações acerca dos seus responsáveis, nem existe uma introdução sobre a obra e a figura de Acenheiro. Também sobre os restantes textos aí editados (Foros de Garvão, Guarda e Beja e a quinhentista Descrição de Lamego e arredores, da autoria de Rui Gonçalves) e respetivos manuscritos são fornecidas escassas informações. Acerca dos manuscritos da obra de Acenheiro, questão que aqui nos interessa, apenas somos informados de que a edição da Academia se serviu de duas cópias. Uma delas, sobre a qual nada é dito, nem acerca da sua proveniência, nem acerca das suas caraterísticas, foi escolhida como texto base; da outra, cuja única informação dada é que pertencia à Biblioteca das Necessidades, retiraram-se as variantes que aparecem em rodapé. Estas parcas informações constituem tudo quanto os responsáveis editoriais afirmaram acerca das cópias por eles usadas. E ao longo dos séculos XIX e XX, o estado de conhecimentos não se alterou. Somente as já referidas investigações desenvolvidas por mim e por outros membros da equipa da BITAGAP nos últimos dez a quinze anos permitiram a identificação e sistematização de muitos dados novos acerca da transmissão textual da obra de Acenheiro. Foram localizados nada menos que seis testemunhos manuscritos, dos séculos XVI-XVIII, que elenco de seguida e cujo sistema de siglas aqui estabeleço pela primeira vez:
1) Ms. B: Braga, Arquivo Distrital, MSS. 674, século XVI, 185 fólios, cópia integral [BITAGAP Manid 4414];
2) Ms. C: Coimbra, Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, Ms. 581, século XVI, 253 fólios, cópia integral [BITAGAP, Manid 3956];
3) Ms. M: Muge, Casa de Cadaval, ms. M-VIII-17, século XVII, 283 fólios, cópia de que se perderam as primeiras páginas e de que se segregou a parte final; o seu conteúdo abarca, atualmente, desde meados do sumário do reinado de D. Afonso Henriques até ao final do de D. Afonso V [BITAGAP, manid 1945];
4) Ms. L1: Lisboa, Biblioteca Nacional de Portugal, COD. 11001, século XVII, 99 fólios, o qual constituía, originalmente, a parte final do manuscrito da Casa de Cadaval anteriormente referido; o seu conteúdo abrange os sumários dos reinados de D. João II a D. João III [BITAGAP Manid 4371];
5) Ms. L2: Lisboa, Biblioteca Nacional de Portugal, A.T.L. [Arquivo Tarouca: condes de Tarouca, marqueses de Penalva, marqueses de Alegrete e condes de Vilar Maior], num. 94, século XVIII, 136 fólios, cópia integral [BITAGAP manid 5899];
6) Ms. A: Lisboa, Biblioteca da Ajuda, 49-XI-38, século XVIII, 170 fólios, cópia integral [BITAGAP manid 4422].
Perante a tradição manuscrita assim identificada e caraterizada, a primeira questão que se colocava era a de saber se entre estes manuscritos estavam o manuscrito base da edição oitocentista e também aquele que foi utilizado para confronto textual e cujas variantes principais foram registadas no rodapé dessa mesma edição. A identificação do segundo desses manuscritos foi mais fácil e imediata. Com efeito, a origem de A (pertenceu à Biblioteca das Necessidades, tal como o manuscrito cujas variantes aparecem no rodapé da edição) e a ponderação das suas lições permitiram, desde logo, identificá-lo com o “Códice das Necessidades” cujas lições são registadas no rodapé da edição oitocentista. Mais demorada foi a identificação do manuscrito que constituiu o texto base da edição, identificação dificultada pelo facto de, como disse, os responsáveis pela edição não darem informações sobre a sua origem e caraterísticas. Somente uma notícia fornecida por um antigo catálogo de manuscritos da riquíssima biblioteca do mosteiro de Alcobaça permitiu ir mais além.
3. Notícia de um manuscrito alcobacense das CRP
Em 1979, Aires Nascimento publicou o importante estudo “Em busca dos códices alcobacenses perdidos”24. Tendo como ponto de partida a análise de um exemplar do Index Codicum Bibliothecae Alcobatiae 25 em uso na biblioteca desse mesmo mosteiro, o qual contém anotações manuscritas de Fr. Vicente de Jesus Cogominho e de Fr. Fortunato de S. Boaventura exaradas entre os finais do século XVIII e o início do XIX, Aires Nascimento teceu, ou deu a conhecer, um conjunto de importantes considerações sobre o destino, certo ou provável, de vários manuscritos alcobacenses que aí existiam quando o referido Index foi elaborado e editado, mas tinham, entretanto, desaparecido ou sido extraviados. Um desses manuscritos era o cod. CCCCLXVI (466), que continha o “Compêndio das Crónicas dos Reis de Portugal até D. João III, por Cristóvão Rodrigues Azinheiro, de Évora”. De acordo com uma anotação marginal de Fr. Vicente Cogominho datada de fevereiro de 1823, este códice achava-se por então “na Academia Real das Ciências de Lisboa para onde foi cedido emprestado por conta da Secretaria da dita Academia quando esta meditava dar à luz obras inéditas das autoridades portuguesas, com promessa de o restituir a este Archivo”26. Tais palavras permitem supor, com elevada probabilidade, que este manuscrito alcobacense foi o que serviu de texto à edição da Academia, de 1824, tendo o ms. A sido utilizado somente para confronto de variantes. A promessa da Academia não chegaria a ser cumprida. O manuscrito 466 não mais voltou a Alcobaça e, por isso, não está atualmente no fundo alcobacense da Biblioteca Nacional. Tal não significa, contudo, que se tenha perdido.
4. O ms. B das CRP é o COD. CCCCLXVI (466) de Alcobaça
De facto, esse Cod. 466 de Alcobaça é, certamente, o ms. B da lista de testemunhos das CRP que acima forneço. Vejamos, primeiro, com um pouco mais de detalhe, as suas caraterísticas gerais, e atentemos, depois, naquelas que permitem a sua identificação com esse códice alcobacense que se julgava desaparecido.
O ms. B é um códice quinhentista, em papel, in folio, de 271 * 195 mm, com [2] + 185 + [1] fólios e foliação original do século XVI. A encadernação, bastante mais recente (do século XIX ou já de inícios do XX), é de papel de fantasia sobre cartão. A lombada, de carneira e cor vermelha com dourados, diz: AZINHEIRO / CHRONICAS DE PORTUGAL. Foi ligeiramente aparado, facto que provocou a eliminação parcial de algumas notas marginais (p. ex., no fol. 17v). Está em excelente estado de conservação e nele distinguem-se, pelo menos, duas mãos, embora se notem, em ambas, diferentes tonalidades na tinta empregada, facto que denuncia que terá sido elaborado com intervalos de tempo. A transição de uma para outra mão ocorre entre o final do fólio 100v e o início do fólio 101r, pouco após o início do sumário do reinado de D. Afonso V. O texto está completo, raramente rasurado ou corrigido, e vêem-se nas margens ocasionais notas de, pelo menos, dois leitores, aparentemente dos séculos XVI e XVII. O verso do último fólio numerado, o 185, contém, em letra posterior (finais do século XVII ou inícios do XVIII), um “Index das chronicas deste livro”, organizado de acordo com os sucessivos reinados. Entre este fólio e o seguinte, não numerado, foi colada uma tira de papel, na qual, também em letra posterior, mas de outra mão, talvez do século XVIII, se escreveu, para além do nome do autor da obra - “Azinheiro” -, um pequeno índice de matérias, todas elas relativas à época de D. João I, e especialmente a Nuno Álvares Pereira e à conquista de Ceuta. O manuscrito possui, além disso, algumas marcas e outras caraterísticas que nos permitem identificá-lo com o Cod. CCCCLXVI (466) da livraria do mosteiro de Alcobaça.
As razões para essa identificação são as seguintes.
Primeira razão: o manuscrito contém uma folha de rosto, escrita no século XVIII, da qual consta o título e a autoria da obra: “Compendio / das / Chronicas dos Reys / de Portugal athe D. / João o 3º. / Por Christovão Roĩs de Azinhrº / Estripto em Mayo de 1536.”. Esta folha de rosto é semelhante às bem conhecidas folhas de rosto acrescentadas a vários códices alcobacenses no século XVIII, como se pode ver nas seguintes imagens, a primeira das quais do ms. B, as restantes de manuscritos alcobacenses presentemente à guarda da BNP. Além de pequenas e pouco significativas divergências, notar-se-á que a principal diferença consiste na ausência de carimbo de posse em B. Plausivelmente, os carimbos foram apostos aos códices alcobacenses após, pelo menos, 1823 (e talvez mesmo após a exclaustração de 1834), isto é, após o momento em que a ausência do ms. das CRP foi notada e explicada por Fr. Vicente Cogominho; ausências deste tipo devem, aliás, ter motivado a aposição de tais carimbos, de modo a prevenir futuros desvios e perdas.
Terceira razão: em dois locais do manuscrito B, concretamente na folha onde começa o texto (1r) e no verso da última folha (185), por cima do atrás referido índice, é visível uma assinatura: “Fr. Benedito de S. Bernardo”. Este nome é o de um dos bibliotecários do mosteiro de Alcobaça, ativo pelos finais do século XVII27. Ambas as assinaturas tinham a acompanhá-las uma palavra, posteriormente rasurada, mas de que ficaram vestígios pelos quais se percebe que tal palavra era “bibliotecário”. A rasura foi certamente intencional (de contrário não teria afetado somente essa palavra nos dois casos), facto que denuncia a intenção de camuflar as origens do manuscrito. Foi também o responsável pela assinatura, ou seja, Fr. Benedito de S. Bernardo, quem escreveu o índice presente na folha final, a julgar pela semelhança na caligrafia. Mas não se ficam por aqui as suas intervenções no manuscrito. Além de assinar o seu nome no início e no final, e de inserir um índice no final, a mesma mão, que podemos, portanto, identificar com a de Fr. Benedito de S. Bernardo, escreveu ainda, na folha 1r, o título da obra: “Compendio das chronicas de Portugal por Christovão Roiz de Azinheiro”. A comparação com códices do fundo alcobacense da BNP é, também aqui, decisiva. Como se poderá ver nas imagens seguintes, todos os elementos do ms. B que acabo de mencionar estão também presentes em alguns códices do fundo alcobacense da BNP:
Não pode, pois, haver dúvidas quanto à identificação deste manuscrito B com o Cod. 466 da biblioteca do mosteiro de Alcobaça, que se julgava desaparecido. Esta identificação permite-nos, por outro lado, confirmar a suspeita, baseada na afirmação de Fr. Vicente Cogominho atrás mencionada, de que o cod. 466 de Alcobaça foi o texto base da edição de 1824 da Academia das Ciências. Comprova-a o facto de as lições deste manuscrito corresponderem, sistematicamente, às do texto da edição, nos locais em que os anónimos editores anotaram a existência de variantes no códice das Necessidades (o ms. A segundo o sistema de siglas que aqui estabeleci). Bastará dar alguns exemplos, que, aliás, servem também como amostra do tipo de problemas que deve enfrentar uma futura edição que tenha em conta uma análise criteriosa da tradição manuscrita da obra:
5. Percurso do manuscrito. Conclusões
Mas como teria vindo parar a Braga este manuscrito alcobacense? Não me é ainda possível responder a esta pergunta, nem traçar o seu percurso, desde o momento em que, nos começos do século XIX, saiu de Alcobaça para a Academia das Ciências, até que, em data incerta e passando por mãos incertas, deu entrada no Arquivo Distrital de Braga. Posso, contudo, identificar um dos possuidores do manuscrito nesta fase intermédia, depois de ter saído de Alcobaça e antes de ter dado entrada no Arquivo Distrital de Braga28. Refiro-me a D. Maria da Assunção Ferreira, filha da famosa D. Antónia Adelaide Ferreira, “a Ferreirinha” dos vinhos do Douro, a qual D. Maria se tornaria, por casamento, a terceira condessa da Azambuja, e cuja vida decorreu entre 1842 e 190529. Efetivamente, no catálogo da sua importante livraria, elaborado poucos anos após a sua morte para efeitos de venda em leilão que ocorreu em 191030, aparece, com o número 2959, o seguinte registo:
Coroniqua de horigem donde desenderam hos Reis de Portugall he do que sosedeo hem seus tempos. (Por Christovam Roiz de Azinheiro Escripto em Mayo de 1536). No fim: Até qui chegua a suma das coronicas dos Seren. Reys de Portugal até El-Rei D. João terceiro, Avô do Christ. Rei D. Sebastiam cujos feitos e cometimentos forão aroicos como os coronistas que delle escreveram dirão. Esta foi treladada do original sumario que fez em letra de mão pollo bacharel Christovam Rodrigues Azinheiro procurador morador na cidade devora e nella fez esta breviação em Mayo de 1536. Ms. copia. Sec. XVI. In fol. De 185 ff. E.31.
Ora, todas as caraterísticas do manuscrito aqui descrito encontram total correspondência com o manuscrito de Braga das Crónicas de Acenheiro: o número de fólios (185), o formato, a existência de encadernação, a datação (séc. XVI), e também o título e o explicit. Veja-se, quanto a estes últimos aspetos, mais este conjunto de imagens(Fig. 10 e 11) do manuscrito B:
Podemos, pois, identificar o manuscrito que pertenceu à biblioteca da condessa da Azambuja com o ms. B das Crónicas de Acenheiro e com o cod. 466 de Alcobaça e, com base em tudo o que disse, apontar-lhe o seguinte percurso. Este manuscrito saiu da biblioteca do mosteiro para a Academia das Ciências, no início do século XIX (antes de 1823), para que esta o editasse, como de facto o fez, escolhendo-o como base do texto estabelecido no volume V da Coleção de Inéditos da História Portuguesa. Não tendo sido devolvido, o manuscrito foi depois parar, não se sabe por que vias, à biblioteca da Condessa de Azambuja; falecida esta em 1905, o manuscrito deve ter sido vendido em leilão poucos anos depois (1910) e, através desse leilão, ou posteriormente, deu entrada no Arquivo Distrital de Braga, onde hoje se encontra.
Esta descoberta vem juntar-se ao movimento de identificação de manuscritos alcobacenses em várias bibliotecas, portuguesas e de outros países, que tem ocorrido nos últimos anos, com destaque para os trabalhos de Catarina Barreira, que tão bem tem sabido prosseguir os passos pioneiros de Aires Nascimento32. Pouco a pouco, vamos conhecendo mais e melhor a constituição desta riquíssima biblioteca e vamos percebendo que, felizmente, a busca dos códices alcobacenses (julgados) perdidos dá frutos. Trata-se, por outro lado, de uma peça importante num futuro e desejável empreendimento editorial que se ocupe das Crónicas abreviadas dos reis de Portugal de Acenheiro.
Referências bibliográficas
Fontes
Fontes Manuscritas
Braga, Arquivo Distrital, MSS. 674.
Coimbra, Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, Ms. 581.
Muge, Casa de Cadaval, ms. M-VIII-17.
Lisboa, Biblioteca Nacional de Portugal, COD. 11001.
Lisboa, Biblioteca Nacional de Portugal, A.T.L., num. 94.
Lisboa, Biblioteca da Ajuda, 49-XI-38.
Fontes Impressas
ACENHEIRO, Christovão Rodrigues - Chronicas dos Senhores Reis de Portugal. Collecção de Inéditos da História Portugueza. Vol. V. Lisboa: Real Academia das Sciencias, 1824.
NYKL, A. R. - Crónica del rey D. Affomsso Hamrriquez /Duarte Galvão. Partial critical Editions with introduction and notes. Cambridge: Massachussets, 1942.