Viva a Medievalista! Nem mais, nem menos. Foi assim mesmo, com estas palavras, que o Professor José Mattoso terminou, em Novembro de 2022, uma mensagem que dirigiu à Redacção da revista. Felicitava-a então pela qualidade do nº 32, o último publicado em Julho desse ano, e pelos contributos que a revista do IEM trazia para a renovação da investigação sobre a época medieval. Não era isto uma novidade - em anos anteriores, já fizera comentários elogiosos sobre o rumo da revista e do instituto -, mas era por certo a primeira vez que se manifestava com tal entusiasmo, atitude mais rara em quem cultivava a contenção dos gestos e a moderação. Havia talvez boas razões para tanto, das mais recentes às mais antigas.
Não sendo um dos fundadores da Medievalista, nem estando ligado aos seus primeiros tempos, depressa o Professor José Mattoso se associou à revista e ao futuro desta. O primeiro texto que nela publicou, no nº 3, em 2007, foi uma evocação do Troféu Latino, que recebera nesse ano e lhe serviu para homenagear a geração de 60, que acreditava na força das ideias e na capacidade destas para tornar o mundo mais justo. Manteve a intenção e o tom quando fez o elogio público do Professor António Borges Coelho (nº 4, Janeiro de 2008), recordando-o, em particular, como um exemplo cívico de resistência e de combate contra as injustiças do mundo. Ao lembrar, assim, os laços da docência e da investigação com os problemas e com as exigências cívicas do presente, deu o mote para as responsabilidades na direcção da Medievalista, que assumiu a partir do nº 5, de Julho de 2008. Disso dava testemunho o programa editorial desse número, que insistia na valorização do rigor científico, da interdisciplinaridade e da inovação, com abertura a novas perspectivas e a outras historiografias, mas que lembrava igualmente a aposta nos estudos que ajudassem a compreender os dramáticos fenómenos da sociedade do presente, como as guerras então em curso na Palestina, nos Balcãs e no Cáucaso.
Como director da Medievalista, a colaboração do Professor José Mattoso tornou-se mais regular. A par da direcção dos trabalhos e da redacção dos editoriais, empenhou-se na captação de artigos, de notícias e de recensões, mas envolveu-se de igual modo nos problemas da avaliação científica e da comunicação remota, através da candidatura e da admissão da revista nas plataformas internacionais de difusão e de indexação, que estavam então em crescimento. Durante esses anos, publicou ainda diversas recensões, assim como um artigo sobre a primeira crónica portuguesa, em diálogo aberto com outros investigadores, e duas homenagens a historiadores consagrados, caso de Teresa Amado e de Jacques Le Goff. Teve por isto um contributo da maior importância na afirmação e na consolidação da Medievalista como uma revista de referência, atenta às novidades editoriais e às tendências mais recentes da investigação. Quando saiu em 2015 da direcção da revista e foi substituído por Bernardo Vasconcelos e Sousa, ninguém soube como agradecer-lhe, mesmo se a gratidão fosse um sentimento por todos partilhado.
Não podia a Medievalista esquecer a perda do Professor Mattoso e o primeiro destaque deste número está-lhe totalmente dedicado. Menos para lhe prestar uma homenagem, que ele sempre recusou, mas para o convocar de corpo inteiro, na carne e no espírito, nas ideias e nas acções. Todos os testemunhos aí reunidos o fazem presente de formas diferentes, como pai e como mestre, ou como colega e como amigo. Todos de maneira necessariamente incompleta, também. Tal como ele próprio dizia na frase escolhida pelos seus familiares, a vida é tão vasta e tão diversa que só se consegue responder a uma parte muito pequena das suas solicitações. Igualmente assim, nestas memórias sentidas.
Tal recordação do passado da Medievalista, de muito daquilo que ele teve de melhor, vem acompanhado por algumas novidades. A mais importante delas, ou, pelo menos, a que pode ter maiores consequências, respeita ao alargamento e à renovação do corpo redactorial. A matéria era objecto de debate interno há algum tempo, tanto no seio da revista, como do Instituto, sobretudo para precisar a natureza e as modalidades desta, já que ninguém discutia a importância dessa renovação para consolidar a Medievalista no plano internacional. O relatório da Comissão Externa de Acompanhamento do IEM, de Maio de 2023, que trazia recomendações relevantes no mesmo sentido, ajudou a consolidar as reflexões e a agilizar as decisões. Em resultado deste processo, o número actual sai já com um corpo redactorial reestruturado e de dimensão internacional, por via da integração de seis novos membros. Todos de cronologias e de áreas distintas de investigação (Arqueologia, Literatura, História da Arte e História) e todos provenientes de diferentes países - dois académicos espanhóis (Inés Calderón Medina e Javier Albarrán Iruela), um francês (Remy Cordonnier) e um inglês (Robert Portass), um argentino (Leonardo Funes) e um brasileiro (Maria Filomena Coelho). Esta renovação do corpo editorial foi, ainda, o momento de despedida de dois dos seus membros mais antigos, a Adelaide Miranda e o Bernardo Vasconcelos e Sousa. Dois colegas e amigos, ambos com contributos decisivos para a história da Medievalista mas que se manterão por perto, por passarem a fazer parte do seu Conselho Editorial.
O segundo artigo em destaque neste número traz outra novidade. Foi apresentado por François-Xavier Fauvelle numa das Conferências do IEM, em Fevereiro de 2023, e nele se oferece uma primeira incursão na História Medieval de África, tema pouco explorado pelo medievalismo português. Professor do Colégio de França e um dos especialistas mundiais dos percursos históricos africanos da Idade Média - é autor de Le Rhinocéros d'or, traduzido em várias línguas -, François-Xavier recupera neste texto o problema da localização da Cidade do Máli, a antiga capital do império africano do ouro, cujo monarca surge no Atlas Catalão de 1375 a segurar um globo daquele metal. A proposta avançada - numa quase-ilha, cercada de água pelas cheias do Níger - precisa ser confirmada pela arqueologia, mas assenta numa releitura do texto de Ibn Battûta, que visitou a cidade em 1352, e, sobretudo, na consideração da capital como um espaço de intercâmbios e de reequilíbrios, de representação política, portanto, dos diferentes grupos religiosos, linguísticos e culturais sujeitos ao monarca. Não fosse a instabilidade política do Máli nos dias de hoje, esperar-se-iam novidades nos próximos tempos.
Os restantes artigos que compõem este número respeitam a geografias mais familiares, não mais conhecidas. O primeiro deles, de Miguel Andrade, lida com a presença dos dragões nas sagas nórdicas e islandesas dos séculos XIII e XIV, para interrogar a relação destes com as paisagens aquáticas e terrestres, numa ecologia do maravilhoso muito interessante. Para além da relação dos dragões com os espaços selvagens e marginais, como as montanhas, as florestas e os lagos, insiste-se na conexão deles com outros lugares, caso das sepulturas e dos tesouros, talvez devido à influência de crenças locais, anteriores à difusão do Cristianismo. Os territórios do Báltico e da Escandinávia, mas numa cronologia anterior, constituem, por outro lado, o tema central dos dois escritos de viagem estudados por Miguel Alarcão. Ambos os relatos foram incluídos na tradução para inglês da História Contra os Pagãos, de Paulo Orósio, feita por encomenda do rei Alfredo, o Grande, numa época em que a pressão viking sobre as terras do monarca se fazia mais intensa.
Os outros artigos respeitam a geografias mais meridionais, com abordagens que cruzam a Literatura com a História e a História da Arte, numa articulação que vai fazendo escola nas páginas da revista. A história e a geografia do Islão peninsular são o tema da Crónica do Mouro Rasis, um texto cuja origem e cuja fortuna historiográfica foram objecto da atenção de António Rei. O lais da Bretanha e a rubrica que o acompanha, que abrem o Cancioneiro Colucci-Brancuti, também dito da Biblioteca Nacional, foram analisados por Fabio Barberini. Examinando hipóteses anteriores, sugeriu que ambos funcionam como um prólogo em verso, uma espécie de antepassado ilustre, posto à cabeça das cantigas galaico-portuguesas pelo conde de Barcelos. As margens dos textos, os marginalia, que se conheciam outrora como babuinare, pela frequência de símios, foram estudados por Joana Antunes para recuperar a simbologia do macaco, visto como retrato do vício e da inversão paródica. A investigação cruzou, de resto, os códices com a arte e a escultura, propondo a identificação de um macaco médico no túmulo de Fernando I, ou de um macaco lascivo no Mosteiro da Batalha. Por fim, o modo como a escrita se combina com a pintura em dois retábulos de uma capela funerária da Catedral de Pamplona serviu a Alejandro Garcia Morilla para fazer uma análise detalhada das inscrições e da selecção de diferentes tipos de letras, já típica da transição para o século XVI e talvez reveladora da colaboração de vários artistas.
Com temáticas diversas, os últimos três artigos têm uma natureza monográfica mais evidente. No primeiro, José Augusto Oliveira analisou o exercício do poder senhorial do Condestável em Almada, sondando a acção deste e dos seus homens na vila, entre o fim das guerras com Castela e o termo da primeira década do século XV. Nesse período, a vila parece ter-se convertido na capital dos seus domínios, por estar perto de Lisboa e da Corte e permitir acompanhar as obras do convento do Carmo, para o qual se retiraria depois de doar o senhorio de Almada à sua neta, Isabel. Usando uma documentação muito rica, incluindo regimentos e sentenças, Lluís Sales i Favà estudou a fiscalidade sobre o consumo urbano em Barcelona, a partir das taxas sobre as compras e as vendas conhecidas como lezdas, ou lleudes. Sobretudo das que incidiam sobre as transações do azeite, dos couros e da grã, melhor documentadas, se bem que se trate de produtos muito diversos e nem todos sejam de consumo corrente. Por último, Daniel Quesada Morales apresentou os dados conhecidos sobre a arquitectura e a construção de uma grande cisterna no Alhambra, em Granada, no quadro das obras que transformaram o antigo palácio num símbolo do triunfo cristão, nos anos terminais do século XV.
As diversas áreas temáticas voltam a marcar presença nas secções fixas da revista. Nas recensões, Manuel Fialho e Ana Paiva Morais deram a conhecer duas obras coletivas, uma sobre os fenómenos de dependência no Mediterrâneo Medieval, a outra sobre os lugares da fábula na literatura espanhola do século XIV. Se na primeira se insistiu na variedade das modalidades de submissão pessoal, que não se reduzem aos modelos clássicos (escravatura, servidão e cativeiro) e incluíam relações assimétricas bastante complexas e muito híbridas, valorizaram-se na segunda as leituras políticas das fábulas e a relação destas com contextos históricos muito precisos. Por seu lado, Diogo Faria recenseou uma obra de dupla autoria que reconstituiu os itinerários de Manuel I, assim retomando uma antiga linha de trabalho da historiografia portuguesa. Mesmo se há reparos a fazer-lhe - falta, por exemplo, um elenco das fontes de arquivo - trata-se de um instrumento de trabalho muito útil, por reunir e sistematizar uma quantidade de dados muito significativa.
Nada de diferente nas notas de investigação e na Varia. Aí se voltam a divulgar alguns trabalhos recentes. Como o de Amalia Pérez Valiño que interrogou a iconografia de duas mulheres de má fama, Eva e Salomé, aproximando as suas representações na arte românica do noroeste peninsular, dos séculos XI e XII, aos textos bíblicos e patrísticos, mas também a outras tradições culturais, mais importantes no caso de Eva. Também o de Ana Cláudia Silveira sobre o desenvolvimento da vila de Setúbal no âmbito dos senhorios da Ordem de Santiago, com observações importantes sobre o papel desta na afirmação daquela, seja como um polo urbano, seja ainda como um centro portuário do comércio internacional. Ou, por fim, o de André Madruga Coelho sobre o senhorialismo nobiliárquico português, estudado a partir da geografia alentejana e entendido como parte essencial de um sistema político mais vasto, por certo hierarquizado, mas com regras que importa definir e conhecer. Entre as notícias da Varia, destaque merecido para a apresentação da tradução inglesa das obras de Fernão Lopes, e, sobretudo, para o portal respectivo, que disponibiliza úteis ferramentas de estudo e de pesquisa das suas crónicas, mesmo para os especialistas. Ainda assim, não merecem menor relevo as notícias detalhadas de dois importantes congressos, um celebrado em Palmela sobre as ordens militares, o outro organizado em Alcobaça, que reuniu os estudiosos de todo o mundo interessados na literatura hispânica medieval.
Este número da Medievalista traz consigo sentimentos ambíguos, se não mesmo contraditórios. Nele, a comemoração de um mestre e de um amigo, que foi o director mais importante da revista, mistura-se com a reestruturação do seu corpo redactorial e com uma aposta de futuro. Ambiciosa por certo, mas necessária, para uma publicação que sempre quis dar voz e dar forma aos estudos medievais. Talvez seja esse desafio e essa reinvenção a melhor forma de o recordar, e, afinal, de lhe agradecer.
Luís Filipe Oliveira
João Luís Fontes