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Revista Portuguesa de Enfermagem de Saúde Mental
versão impressa ISSN 1647-2160
Revista Portuguesa de Enfermagem de Saúde Mental no.9 Porto jun. 2013
A Concepção dos Profissionais de Saúde acerca da Reabilitação Psicossocial nos Eixos: Morar, Rede Social e Trabalho dos Usuários de Substâncias Psicoativas
Paula Hayasi Pinho*; Márcia Ferreira de Oliveira**; Heloisa Garcia Claro***; Maria Odete Pereira****; Marilia Mastrocolla de Almeida*****
*Psicóloga, Mestre em Enfermagem Psiquiátrica, Doutoranda do Programa de Pós Graduação em Enfermagem (PPGE) da Universidade de São Paulo SP Brasil, paulapinho@usp.br
**Enfermeira, Professora Livre-docente do Departamento Materno Infantil e Psiquiátrico da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo SP Brasil, marciaap@usp.br
***Enfermeira, Mestre em Ciências da Saúde, Doutoranda do Programa de Pós Graduação em Enfermagem (PPGE) da Universidade de São Paulo SP Brasil, heloisa.claro@usp.br
****Enfermeira, Mestre em Enfermagem Psiquiátrica, Doutora em Ciências da Saúde, Pós Doutoranda do Programa de Pós Graduação em Enfermagem (PPGE) da Universidade de São Paulo SP Brasil, m.odetepereira@gmail.com
*****Terapeuta Ocupacional, Mestre em Psicologia, Doutora em Ciências da Saúde, mastrocolla@usp.br
RESUMO
Estudo exploratório de abordagem qualitativa desenvolvido em um Centro de Referência de Álcool, Tabaco e Outras Drogas, no estado de São Paulo Brasil. Objetivou identificar as concepções de profissionais da saúde acerca dos três eixos que fundamentam a Reabilitação Psicossocial: morar/habitar, trocar identidades/rede social e trabalho/produzir e trocar mercadorias. Onze profissionais da saúde de nível superior foram submetidos à entrevista semi estruturada. Os dados foram analisados segundo os pressupostos da Hermenêutica Dialética, que originou a categoria Reabilitação Psicossocial. Os resultados evidenciaram que na concepção dos profissionais a Reabilitação Psicossocial se dá na realização de oficinas terapêuticas, atividades externas e no estabelecimento de parcerias com outras instituições. Conclui-se que o conceito de Reabilitação Psicossocial que mais se evidencia na concepção desses sujeitos, ainda está associado ao modelo psiquiátrico tradicional, ou seja, atrelado à lógica da normalidade social, sendo esse o principal desafio a ser superado quando se considera o modelo psicossocial de atenção aos usuários de álcool e outras drogas.
Descritores: Serviços de saúde mental; Transtornos relacionados ao uso de substâncias; Reabilitação; Pessoal de saúde
ABSTRACT
Qualitative exploratory study developed in a Reference Center of Alcohol, Tobacco and Other Drugs, in the state of São Paulo - Brazil. Had as its main objective to identify the conception of the health professionals about Psychosocial Rehabilitation and its three axes: live, work and social network from a reference Center for the treatment of alcohol and other drugs related problems. The sample consisted of eleven health professionals with an academic degree, submitted to semi-structured interviews. The data analysis was made according to the hermeneutic dialectic method which originated the Psychosocial Rehabilitation category. The data demonstrated that in the professional's conception, the Psychosocial Rehabilitation is given in the realization of therapeutic workshops, outdoor activities, and the estabilishment of a partnership with other foundations. It is concluded that the concept of Psychosocial Rehabilitation that was made clear in the conception of these subjects is still associated to the traditional psychiatric model, which is attached to the logic of social normality, the main challenge to the psychosocial model of assistance to the alcohol and other drugs users.
Keywords: Mental health services; Substance-related disorders; Rehabilitation; Health personnel
INTRODUÇÃO
O uso abusivo de Substâncias Psicoativas é um problema grave e mundial de saúde pública, o círculo vicioso tanto das drogas lícitas como das ilícitas envolve danos biológicos, psicológicos, sociais, econômicos, culturais, ético-legais e morais. O enfrentamento dessa problemática constituiu-se em uma demanda mundial, uma vez que a Organização Mundial da Saúde afirma que 10% das populações dos centros urbanos do mundo, fazem uso abusivo de substâncias psicoativas, independentemente da idade, sexo, nível de escolaridade e classe social (OMS, 2001). No Brasil, uma pesquisa evidenciou que o uso na vida de álcool foi de 74,6%, sendo que 12,3% das pessoas pesquisadas, com idades entre 12 e 65 anos, preenchem critérios para a dependência do álcool. Os resultados desse levantamento indicam também que o consumo de álcool tem se dado em faixas etárias cada vez mais precoces sugerindo a necessidade de revisão das medidas de controle, prevenção e tratamento (Carlini, 2006).
Apesar desses percentuais, no que diz respeito às estratégias de atenção à problemática, uma importante lacuna na história da saúde pública brasileira foi se desenhando e a questão das drogas foi sendo deixada para as instituições da justiça, da segurança pública, da pedagogia, da benemerência e das associações religiosas (Brasil, 2004). Foi somente com o movimento iniciado nas últimas décadas do século XX, conhecido como Reforma Psiquiátrica brasileira, que novos questionamentos vieram à discussão e culminaram na aprovação de leis que propiciaram a transformação dessas práticas e saberes. A Lei nº 10.216 de 2001 (Brasil, 2001) foi um marco ao garantir tanto aos usuários de serviços de saúde mental, como aos que sofrem por transtornos decorrentes do consumo de álcool e outras drogas, a territorialização do atendimento a partir da estruturação de serviços mais próximos do convívio social de seus usuários, configurando redes assistenciais mais adequadas às variadas demandas desse segmento da população.
Essa reestruturação no modelo assistencial tem, em última análise, como eixo principal a Reabilitação Psicossocial e a reinserção social dos usuários de forma integrada ao meio cultural e à comunidade em que estão inseridos, pressupostos norteados pelos princípios da Reforma Psiquiátrica.
Quando se trata de conceituar Reabilitação Psicossocial é consenso entre os especialistas de que se trata de uma estratégia e uma vontade política de cuidados para pessoas vulneráveis socialmente, no sentido de que essas consigam gerenciar suas vidas com maior autonomia e capacidade de escolha, possibilitando o processo de trocas sociais, a restituição plena dos direitos, das vantagens e das posições que essas pessoas tinham ou poderiam vir a ter, se as barreiras fossem minimizadas ou desaparecessem (Bertolote, 2001; Pitta, 2001; Kinoshita, 2001).
Tendo como finalidade a ampliação dos espaços de negociação para a realização das trocas sociais, a atenção dos profissionais deve se voltar para os eixos norteadores do processo de Reabilitação Psicossocial, que são: o habitat, a rede social e o trabalho; no qual estão presentes as variáveis reais operando contra ou a favor do aumento da contratualidade, e assim contra ou a favor da Reabilitação Psicossocial (Saraceno, 2001).
A finalidade de todo esse processo é devolver ao indivíduo a capacidade de exercer a sua cidadania, o que implica no acesso ao direito de uma constituição afetiva, relacional, material, laboral e habitacional, estando assim inserido socialmente.
Há uma relação estreita entre cidadania e saúde mental, posto que um indivíduo que não goze plenamente da cidadania é um risco para a sua saúde mental, assim como um indivíduo que não goze plenamente de saúde mental estará impedido de exercer sua plena cidadania social. Portanto, a questão central na Reabilitação Psicossocial está relacionada à elevação do sujeito de sua condição de doente mental para a condição de cidadão (Saraceno, 2001).
Nesta direção, entendemos que somente a noção de cidadania, a qual compreende o uso de drogas como uma questão de direito e não de crime, doença ou pecado, permitirá uma maior reflexão por parte dos serviços, dos profissionais de saúde e da sociedade no que se refere aos "problemas" originados pela forma de compreendermos as drogas e não necessariamente pelo seu uso.
No que se refere à Reabilitação Psicossocial voltada aos usuários de álcool e outras drogas pouco se tem produzido sobre a temática e segundo a literatura internacional não há relação direta entre o conceito de Reabilitação Psicossocial e a prevenção ou tratamento de transtornos associados ao consumo de álcool e drogas (Pinho, Oliveira, Almeida, 2008).
Portanto, para que a função da Reabilitação Psicossocial seja possível na atenção aos usuários de álcool e outras drogas, são necessárias discussões sobre as questões associadas às "variáveis reais", ou seja, o serviço de Reabilitação Psicossocial, o significado do tratamento em si; os recursos disponíveis humanos, comunitários e materiais e o contexto de vida do indivíduo (Saraceno, 2001).
Nessa perspectiva considerando que os recursos humanos, nesse caso os trabalhadores em saúde, devem constituir segundo a literatura (Saraceno, 2001), objeto de estudos e discussões, julgou-se oportuno realizar um estudo com o objetivo de identificar as concepções de profissionais da saúde de um Centro de Referência para o tratamento dos problemas relacionados às substâncias psicoativas acerca da Reabilitação Psicossocial e seus respectivos eixos norteadores.
METODOLOGIA
Trata-se de estudo exploratório de abordagem qualitativa realizado em um Centro de Referência para o tratamento dos problemas relacionados ao uso abusivo de substâncias psicoativas do Estado de São Paulo - Brasil. A amostra constituiu-se de onze profissionais da saúde de nível superior. Os dados foram coletados entre julho e agosto de 2008, por meio de entrevistas semi estruturadas contendo quatro questões norteadoras. As entrevistas foram gravadas e transcritas lidas e relidas repetidas vezes, o que possibilitou a constituição do corpus de análise (Minayo, 2006). Da análise desses dados, segundo os pressupostos da Hermenêutica Dialética (Minayo, 2006) emergiram duas categorias: Reabilitação Psicossocial e Projeto Terapêutico Institucional. O presente artigo se ocupa dos três eixos que fundamentam a categoria Reabilitação Psicossocial: morar/habitar, trocar identidades/rede social e trabalho/produzir e trocar mercadorias. Para apresentação dos resultados os entrevistados foram identificados pela letra E, seguidos do número correspondente à ordem da entrevista. Em consonância com os pressupostos éticos, esse estudo foi submetido ao Comitê de Ética e Pesquisa da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (CEP-EEUSP), e aprovado sob número 722/2008 de 04/04/08.
RESULTADOS
Caracterização dos Sujeitos da Pesquisa
Foram entrevistados 11 profissionais técnicos de nível superior, sendo sete (63,63 %) do sexo feminino e quatro (36,36%) do sexo masculino. A média de idade dos trabalhadores é de 50 anos, sendo a maior idade de 59 anos e a menor idade de 34 anos. Foram entrevistados quatro psicólogos, um enfermeiro, um nutricionista, um educador físico, dois médicos e duas assistentes sociais. Com relação aos cursos de Especialização, dois dos profissionais possuem Especialização em Saúde Pública, quatro dos trabalhadores possuem Especialização em Dependência Química, um dos profissionais possui Especialização em Saúde Mental e os demais profissionais (36,36%), não possuem especialização. O tempo de trabalho destes profissionais na área da Saúde Mental é variável, ou seja, 40% dos profissionais nunca haviam trabalhado com Saúde Mental, enquanto os outros 60% variaram de 9 a 29 anos de experiência anterior na área da Saúde Mental.
A análise da Categoria I: Concepção de Reabilitação Psicossocial originou três subcategorias que correspondem aos três eixos da reabilitação: morar/habitar, trocar identidades/rede social e trabalho/produzir e trocar mercadorias, que serão apresentadas na sequência.
Eixo 1 - Morar/Habitar
As entrevistas possibilitaram identificar o entendimento dos profissionais acerca dos três eixos da Reabilitação Psicossocial. Observou-se que na concepção desses sujeitos o eixo morar/habitar é considerado pelos entrevistados como uma das maiores dificuldades para a reabilitação da população referenciada, já que em sua grande maioria esta se constitui por moradores de rua da região, conforme trecho abaixo:
E2. 38 "Na minha área a dificuldade é eles não terem casa, eles não terem moradia".
Percebemos que existe uma real preocupação por parte dos profissionais da equipe técnica com o morar, pois o morar faz parte do hall de necessidades básicas do ser humano. Devido à população atendida pelo serviço ser composta por moradores de rua, os profissionais preocupam-se em sanar o problema da falta de moradia:
E4.29 "... aquele que tá em situação de rua a gente tenta viabilizar a entrada dele numa instituição é... num equipamento de órgão público, em albergue para que ele tenha pelo menos, minimamente um abrigo".
E6. 14 [para os que não têm família] "... investe muito em incentivá-lo à vaga fixa do albergue porque bem ou mal acaba que o albergue vira uma casa".
Para aqueles sujeitos que de alguma forma conseguem obter recursos para conseguir uma alternativa de moradia, os profissionais trabalham no sentido de auxiliá-lo a encontrar uma moradia e a valorizar a satisfação de algumas das necessidades básicas:
E6. 15 "aqueles que ganham dinheiro, que tem alguma possibilidade, a gente esta sempre batalhando para alugar um quartinho de hotel, ou outra coisa, pagar uma pensão, a importância de sair da rua, a importância de dar valor ao banho, ao momento de deitar na cama, de ver TV, seja como for".
Eixo 2 - Trocar Identidades/Rede Social
No eixo troca de identidades/rede social, foi observado que os entrevistados identificam a família e as atividades externas, realizadas pelo serviço, como sendo os únicos dois fatores que propiciam trocas sociais aos usuários.
Em relação à família, os entrevistados parecem identificar nos usuários da instituição um empobrecimento no núcleo familiar, tanto que investem no resgate do vínculo afetivo familiar e enfatizam que a família tem um papel importante na reabilitação do sujeito:
E6. 12 [Expressão da proposta da reabilitação psicossocial] "... eu acho isso importante o contato com a família muito, a gente trabalha principalmente o serviço social muito, com eles essa questão de deixar a gente ligar pra família vir buscar, deles voltarem a conviver com pai, mãe, filhos".
E7. 56 "... pra você falar em reabilitação você tem que falar em família, se você não tiver família eu duvido muito, porque é o grupo mais forte que defende o ser humano, mas às vezes é também o mais forte que ataca, isso precisa estar equilibrado".
Além da ausência do suporte familiar, outros complicadores para a reabilitação da população usuária de substâncias psicoativas da instituição é a perda dos vínculos empregatícios e de amizades, que podem ser considerados elementos da rede social mais ampla:
E4. 15 "...não é aquele paciente que tem suporte familiar, eles já perderam todos os vínculos empregatícios, o suporte da família, o contato com os amigos, então é muito complicado trabalhar com essa população".
Alguns profissionais consideram, ainda, que a troca social pode ocorrer no ambiente institucional, por meio de atividades que facilitem esta troca entre os próprios usuários:
E3. 42 "...o ambiente também favorece essa coisa de inserção, é integração, eles se conhecerem mais, na prática de esportes, na dança circular, o vínculo que o grupo de mulheres com o grupo de GESTO que são grupos diferentes, eles se unem mais, eles trocam figurinhas e ajuda na reabilitação porque às vezes uma fala da dependência dela, a ingestão de comida. E a outra fala dos problemas da dependência, o que acarretou, depressão, essas coisas todas que são as comorbidades que elas têm e ai elas percebem que são muito parecidos e ai é legal, eu percebo também que ajuda essa questão na reabilitação".
As falas de um modo geral se referem à importância da família e das atividades externas na tentativa de desviar o foco do uso das drogas para outras atividades que promovam o prazer:
E6. 13 "... as questões mais importantes que eu acho são essas duas: são as coisas externas que acontecem junto com o tratamento pra eles verem que existem prazeres em outras coisas que não são somente o álcool e as drogas, eu acho, e o carinho da família".
Eixo 3 - Trabalho/Produzir e Trocar Mercadorias
O trabalho, outro eixo fundamental para a Reabilitação Psicossocial, é reconhecido socialmente como um meio que possibilita ao ser humano reproduzir sua vida material para satisfazer suas necessidades básicas como: comer, vestir, beber, morar e também para reproduzir sua vida social como: o lazer, convivência e liberdade.
Questões referentes a onde a pessoa mora? Como passeia? Como tem acesso aos bens culturais comunitários? Como se alimenta? E outras relacionadas ao gerenciamento de suas vidas, e que dependem da obtenção de renda, são apontadas como uma necessidade no cotidiano do conjunto das novas práticas, e parecem fazer parte da realidade dos técnicos quando relatam:
E7.57 "... pra você reabilitar o paciente, este tem que ter recursos dentro do seu talento de ganhar o seu sustento, então passa por ali finanças".
Os entrevistados não mencionaram termos como cooperativas e trabalho protegido, no entanto, quando falaram sobre Reabilitação Psicossocial automaticamente se referiram à possibilidade de trabalho para a população atendida priorizando as parcerias:
E4.32 "...com os adolescentes encaminhamos para cursos, encaminhamos pra oportunidade de emprego".
E8.50 "... tem um trabalho também muito importante que a gente faz aqui, é um convênio, é uma parceria que a gente faz com alguma instituição que fornece cursos profissionalizantes então, cabeleireiro, pedreiro, pintor de parede, a gente faz um encaminhamento desses pacientes pra lá. E aí nós recebemos um retorno e aí quando termina o trabalho. O cara já é um pintor, um cabeleireiro um eletricista, já sai profissionalizado".
Os usuários que ainda mantém a condição de trabalhador são considerados pelos profissionais como pessoas que ainda não tem a vida totalmente destruída e, portanto como um fator positivo para a Reabilitação Psicossocial:
E5.47 "... pontos favoráveis para quem já está trabalhando, porque está com uma destruição de vida menos avançada do que outros, então a gente também tenta pontuar, segurar esses fatores para não ter uma perda maior".
Os entrevistados também citam as oficinas realizadas dentro da instituição como possibilidade de inclusão social do trabalho:
E4.40 "...pegam encomendas, se responsabilizam pelas encomendas tem alguns que já vivem do trabalho que eles faziam aqui, tanto de pães quanto de tapetes".
A instituição possui a Associação Vida Ativa que é apontada como um espaço de discussão coletiva sobre as questões relativas ao trabalho e que também torna possível a comercialização da produção dos usuários, conforme a fala:
E8.38 "... nessas reuniões da associação, que é a associação vida ativa que chama, que nós vamos discutir com o paciente, onde essa mercadoria que ele produziu, como é que vai ser comercializada".
Seguindo outra direção, esse discurso valoriza o contexto de vida do sujeito, evidenciando o resgate da história laboral de cada indivíduo, colaborando para revelar a aptidão trazida pelo sujeito como forma do usuário ser inserido no trabalho :
E7.39 "eu penso assim (...) se eu sou bom pintor eu tenho que estimular o pintor, se o cara coloca bem o azulejo dele eu tenho que estimular o cara a colocar o azulejo até o teto, então esses profissionais eles teriam mais capacitação, porque às vezes o modelo pra determinado tipo de paciente, sem ele ta em risco de vida, de morte, seria mais um autoritarismo mesmo".
DISCUSSÃO
De acordo com os resultados obtidos, em relação ao eixo morar/habitar, identificamos que o conceito de morar que está latente nas falas relaciona-se à ideia de viver num espaço fechado e definido, de quatro paredes.
Para Saraceno (2001), a reabilitação está intrinsecamente ligada com a ideia de casa, de morar, ideias que, frequentemente, vêm sobrepostas e são confundidas entre si, pois muitos pacientes "estão" nos hospitais, em clínicas de reabilitação ou até mesmo nas casas de suas famílias. Um dos principais elementos da qualidade de vida e da capacidade contratual de um sujeito é representado pelo quanto o próprio "estar" em determinado local se torna um "habitar" este local, pois entre estar e habitar existe um grande diferencial. Ainda, para Saraceno (2001):
O estar tem a ver com uma escassa ou nula propriedade (não só material) do espaço por parte do indivíduo, com uma anomia e anonimato do espaço em relação àquele indivíduo que no dito espaço não tem poder decisional, material e nem simbólico. O habitar tem a ver com um grau sempre mais evoluído de "propriedade" (mas não só material) do espaço no qual se vive, um grau de contratualidade elevado em relação à organização material e simbólica dos espaços e dos objetos, à sua divisão afetiva com os outros" (p. 114).
A casa ou moradia em que vivemos não, necessariamente, seria um dos melhores lugares para exercitarmos a nossa contratualidade, ou seja, o poder e o prazer do habitar, pois mesmo nessa situação podemos experimentar a perda do poder contratual, material e simbólico (Saraceno, 2001).
Nesse sentido, o albergue pode efetivamente ser um abrigo para os que não têm recursos, mas avaliamos que no albergue não existe condições do sujeito habitar, pois na maior parte das vezes o albergue é um lugar de regras definidas e de grande rotatividade, onde as pessoas são tratadas da mesma forma e são obrigadas a fazer as mesmas coisas sendo, portanto um lugar onde o sujeito possa apenas estar.
Podemos inferir que talvez por essa razão, muitos moradores de rua prefiram o espaço da rua como habitar por experimentarem maior liberdade e independência, mesmo com a precariedade e vulnerabilidade própria dessa situação. Nesse sentido, o eixo habitar não está associado à ideia de habitação enquanto propriedade, mas sim de um espaço material ou simbólico, onde o sujeito se sinta apropriado e partícipe.
No entanto, a reabilitação deve se ocupar da casa e também do habitar, considerando a habitação/moradia um direito constitucional que se relaciona também à segurança física e à saúde. A escolha da rua como moradia, portanto, não deve ser motivada por uma falta de opção ou fuga de alguma situação desfavorável.
O habitar, na concepção da Reabilitação Psicossocial, está ligado à ativação de desejos e habilidades, sendo possível trabalhar sobre o eixo habitar mesmo na ausência de uma casa concreta, considerada uma das formas possíveis do habitar, mas não a exclusiva, pois os profissionais podem objetivar a transformação do habitat que é o processo de transformação de espaço em lugar, onde quer que se encontre o sujeito, haverá um trabalho de habitar a ser feito em conjunto tornando o habitat qualquer lugar que o paciente possa estar. O técnico deveria assumir "a função de intermediação" que é a função do técnico empenhado sobre o eixo habitat.
Ressaltamos que os percursos individuais que acompanham a experiência da aquisição da casa é um percurso fundamental para a reabilitação, pois o direito não é somente à casa, mas também a sua aquisição como um processo de formação da cidadania do individuo. Portanto, o profissional deve ter em mente que a necessidade sobre a qual este deve atuar é o de habitar e não simplesmente de se ter uma casa. Pois quando se habita não há o dormir regulado, o amar proibido ou culposamente tolerado, o comer apenas como nutrição, negando a banalidade do viver, mas exatamente o contrário, estas ações devem estar centradas nas demandas singulares de cada um, como acontece com os diferentes moradores de uma casa que se refletem nos atos do cotidiano com os quais nós humanos executamos com naturalidade e liberdade (Saraceno, 2001).
Os seres humanos necessitam do contato com o outro para se reconhecer, faz parte da vida cotidiana estabelecer relações interpessoais, sejam elas comerciais, afetivas, materiais e até mesmo de poder. Estas trocas podem acontecer em qualquer espaço seja nas ruas, nos bares, no mercado, nas escolas, nas instituições religiosas, de saúde, enfim em qualquer lugar onde existam mais de uma pessoa disposta a estabelecer trocas. A participação nessa troca com o outro, ou dos lugares onde essa troca torna-se possível constitui a chamada rede social.
De acordo com os resultados, percebemos que para os profissionais há uma limitação na possibilidade de reabilitar aqueles que não têm família, ou que possuem uma família que não acolhe, e que na experiência cotidiana revela ser a realidade de grande parte dos usuários dos serviços de saúde mental.
Saraceno (2001) afirma que a desabilitação dos sujeitos com sofrimento psíquico também é o empobrecimento da sua rede social, que conta com perda qualitativa e quantitativa desde a primeira rede social disponível que é o núcleo familiar.
Entendemos que certamente é mais "simples" conceber como âmbito de intervenção acerca da rede social o que é mais restrito à família, pois se trata de um universo mais reduzido e definido socialmente (para o paciente e para o profissional), em detrimento da intervenção na rede social mais ampla (Saraceno, 2001).
As intervenções que possibilitam uma melhora no cenário familiar consequentemente geram expansões na rede social como um todo, o que também é demonstrado em estudos internacionais que enfatizam o suporte social no tratamento como um facilitador na remoção de atritos, melhorando a interação interpessoal dos usuários de drogas e a sociedade, auxiliando o usuário de drogas a assumir um novo papel social (Malhotra A, Maihotra S, Basu D, 2001).
O carinho (apoio) da família também é considerado pelos profissionais importante para a reabilitação, e vai ao encontro de estudos internacionais que afirmam que o suporte social oferecido pela família, amigos e outros participantes na recuperação dos usuários de drogas podem ter um papel vital na prevenção/desenvolvimento da recaída (Malhotra A, Maihotra S, Basu D., 2001; McMahon RC., 2001).
Corroborando com esta visão, Fleeman (1997) demonstra uma forte evidência de que o suporte social auxilia e efetiva o tratamento ambulatorial e a desintoxicação residencial. Existem também outras vantagens, como a redução do estigma do paciente internado e o maior envolvimento da família no suporte.
Vale ressaltar que não foi detectada nenhuma frase relacionada à rede social excetuando-se a família, entretanto como já apontamos, a rede social é muito mais do que a família e inclui a comunidade em geral.
Propiciar o desenvolvimento e a ampliação da rede social, em outras palavras, favorecer as trocas sociais dos usuários de álcool e outras drogas, envolve além da intervenção familiar, a transformação da realidade cultural na qual estão inseridos todos os atores envolvidos.
A rede social pode ser entendida, ainda, numa vertente mais ampliada, como conjunto de dispositivos extra-hospitalares que, ao estabelecerem conexões com os usuários, compõe com estes últimos um campo de produção de sociabilidade, de sentido, de troca (Santos, 1997).
A psiquiatria, desde seu surgimento, associou o transtorno psíquico à falta de adaptabilidade do homem ao processo produtivo, tomando-o como um critério diagnóstico que considera como saudável e normal somente àquele que dispõe de condições físicas e psíquicas para ser considerado habilitado como mão-de-obra ou força de trabalho disponível para a subordinação e inclusão ao processo de produção (Aranha e Silva, 1997).
O trabalho, neste sentido, designado para o portador de sofrimento psíquico/usuário de álcool e outras drogas, foi um trabalho de "faz de conta", aquele que conhecemos nas décadas de 70/80, do século passado, em nossa formação técnica, dentro de grandes asilos que não nasceram como um lugar de cuidado médico da loucura, mas sim, como um espaço de exclusão, determinada, entre outras coisas, pela obrigação moral do trabalho.
O paradigma psiquiátrico tradicional, que prioriza o olhar sobre a doença, compreende o trabalho como um dispositivo de tratamento desenvolvido no interior das instituições que não considera as necessidades do indivíduo, mas reproduz um valor moral e ético produzido pelo nascimento do capitalismo, onde a ociosidade deve ser banida e todos devem se adequar às relações sociais de produção da forma capitalista. O trabalho, nessa concepção, teria uma função terapêutica e pedagógica, normatizante e integradora, que buscaria restituir a produtividade dos elementos desviantes da ordem social.
Segundo Aranha e Silva (1997) na perspectiva da Reabilitação Psicossocial, o trabalho do usuário deixa de ocupar um lugar restrito a um dispositivo de tratamento, como era no tratamento moral, não servindo mais como dispositivo de adaptação social proposto pelas ciências comportamentais.
A utilização do trabalho nas propostas reabilitadoras deve se configurar como um instrumento de inclusão social e promoção de cidadania das pessoas com transtorno mental, subvertendo a lógica exploratória e terapêutica do modelo manicomial (Brasil, 2005).
Percebemos, de acordo com os resultados, que no eixo referente ao trabalho os profissionais ainda centram-se em parcerias ou oficinas, que acontecem na instituição, com o fim de possibilitar algum ganho financeiro aos usuários em detrimento de ações propostas pelo Ministério da Saúde.
Segundo o Ministério da Saúde (Brasil, 2005), o novo modelo de atenção tem apresentado muitas experiências de "geração de renda", "cooperativas", "trabalho protegido" entre outras, e todas, tem como determinante ético, a produção da autonomia e a inclusão social dos usuários frente às novas exigências de compreensão que a vida diária com o mercado capitalista e com a sociedade excludente impõe. Nesse campo, o Ministério da Saúde em parceria com a Economia Solidária vem estimulando a criação de empreendimentos solidários no contexto da Reforma Psiquiátrica brasileira, por meio do programa de inclusão social pelo trabalho, que entre outras coisas, estabelece um incentivo financeiro para os serviços que desenvolvam tais ações.
Ainda, para Macedo (2005), o trabalho não pode estar desvinculado da vida do sujeito, nem da sua história e, portanto, é um dos pontos com o qual os profissionais devem estar atentos quando pensam em trabalho para a população que atendem.
Segundo Brescia (2005), somente a partir deste resgate laboral é que o trabalho pode assumir um significado singular para cada um, pois na perspectiva da Reabilitação Psicossocial, o trabalho está relacionado à produção de sentido na vida do usuário, além de permitir ao indivíduo o acesso aos bens materiais necessários à sua sobrevivência.
Conforme pesquisa realizada por Aranha e Silva (1997, p.97):
Observa-se por meio da afirmação do usuário trabalhador que o exercício de uma atividade produtiva, associado a um tratamento, amplia seu potencial de relação intersubjetiva, altera o rigor com que julga sua auto-imagem, interfere e modifica a trama da rede familiar nuclear, além de alterar a qualidade da convivência no seu meio social mais próximo, com parentes e vizinhos.
Observou-se, nesse estudo, que a prática reabilitatória nos seus três eixos ainda é vista pelos profissionais como de difícil execução sobretudo no eixo que se refere ao morar/habitar, visto que é trabalhado somente o aspecto do morar, em relação ao eixo da rede social as intervenções são direcionadas à família em detrimento da intervenção na rede social mais ampla e no eixo do trabalho as ações estão voltadas às parcerias e oficinas que na grande maioria das vezes está vinculada a uma das principais características da psiquiatria tradicional, o entretenimento do doente. Entreter significa ter dentro e também passar prazerosamente o tempo, esperando que o doente melhore, ou piore e até que ocorra uma mudança no estado do indivíduo, este permanece entretido com medicamentos, conversas, atividades recreativas e atividades ergoterápicas, que não possuem a capacidade de transformar a vida dos usuários (Saraceno, 2001).
Desta forma, não diferente da Reabilitação Psicossocial das pessoas com transtornos mentais, percebe-se que a construção de um referencial balizador teórico nesta área, e especificamente no campo das substâncias psicoativas é um processo ainda complexo que envolve várias instâncias, desde o nível micro individual/familiar/institucional até o macro comunidade, sociedade e políticas de saúde mental. Portanto, trata- se de uma prática à espera da teoria, situação transitória, pois não se pode pensar que há práticas eternamente sem teorias (Saraceno, 2001). Será no diálogo entre os saberes científicos e políticos e as práticas por eles subsidiadas que se dará o reordenamento da atenção em saúde mental.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Percebe-se que o conceito de Reabilitação Psicossocial que mais se evidencia ainda está associado ao modelo psiquiátrico tradicional, ou seja, atrelado à lógica da normalidade social, sendo esse o principal desafio a ser superado quando se considera o modelo psicossocial de atenção. Para que as ações reabilitatórias desenvolvidas no serviço não reforcem o caráter regulatório, mas desconstruam o paradigma psiquiátrico de exclusão e controle social, o serviço deve estar compromissado com a transformação das condições de vida dos usuários.
Colocamos então, a necessidade de cada projeto da instituição estar vinculado preferencialmente à questão dos direitos fundamentais da pessoa humana. O direito ao trabalho nos serviços de saúde mental tem que extrapolar o terapêutico propriamente dito para buscar a reinserção das pessoas sob os seus cuidados nas redes de produção, troca e de consumo. O direito ao lazer, à arte, à cultura e à educação também deve ser um eixo diferencial dos projetos direcionados aos usuários, assim como o direito fundamental à liberdade e o respeito à dignidade humana e à integridade devem constituir a base do conjunto de estratégias terapêuticas utilizadas para o acolhimento, tratamento e acompanhamento destes sujeitos. Destarte, pode-se dizer que o terapêutico em si, encontra-se inegavelmente associado ao efetivo reconhecimento do usuário dos serviços de saúde como um sujeito portador de direitos, como cidadão, em um ambiente favorecedor da autonomia criativa e da participação democrática.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Aranha e Silva, A.L. (1997). O Projeto Copiadora do CAPS: do trabalho de reproduzir coisas à produção de vida. Dissertação de mestrado. Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo. São Paulo (SP), Brasil. [ Links ]
Bertolote, J.M. (2001). Em busca de uma identidade para a reabilitação psicossocial. In: Pitta, A. organizadora. Reabilitação psicossocial no Brasil. 2ª ed. São Paulo: Hucitec; p. 155-8. [ Links ]
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Recebido para publicação em: 30.03.2013
Aceite para publicação em: 20.05.2013