Serviços Personalizados
Journal
Artigo
Indicadores
- Citado por SciELO
- Acessos
Links relacionados
- Similares em SciELO
Compartilhar
Revista Portuguesa de Enfermagem de Saúde Mental
versão impressa ISSN 1647-2160
Revista Portuguesa de Enfermagem de Saúde Mental no.24 Porto dez. 2020
https://doi.org/10.19131/rpesm.0275
EDITORIAL CONVIDADO
Neste nosso tempo atípico
Lucília Nunes*
*Enfermeira especialista em Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiátrica; Mestre em Ciências de Enfermagem; Mestre em História Cultural e Política; Doutora em Filosofia; Agregação em Filosofia, especialidade Ética; Agregação em Enfermagem; Conselheira designada pela Assembleia da República na Comissão Nacional de Ética para as Ciências da Vida; Coordenadora da Unidade de Investigação em Enfermagem Sul e Ilhas (NURSEIN); Professora Coordenadora no Instituto Politécnico de Setúbal, Escola Superior de Saúde, Campus do Instituto Politécnico de Setúbal, Estefanilha, 2914-503 Setúbal, Portugal. E-mail: lucilia.nunes@ess.ips.pt
Uma das referências que tem aparecido com frequência é que vivemos um tempo atípico, que 2020 é um ano atípico. Tomamos por «atípico» o que se afasta do normal ou do esperado, o que é anómalo, o que se nos apresenta como anormal, irregular, fora da regra ou do habitual. Provavelmente, é uma expressão suficientemente clara e, ao mesmo tempo, equívoca, para caracterizar este nosso tempo.
O surgimento e a rápida disseminação do novo coronavírus colocaram desafios inesperados a todas as entidades e em todos setores - nenhum país, sistema de saúde ou instituição estava preparado para uma pandemia com a dimensão e as repercussões que vivemos. A pandemia constitui, por um período que se estima poder ser longo, um teste difícil para todos. Em bom rigor, não conhecemos uma ameaça infeciosa desta magnitude desde a pandemia de influenza de 1918. Em poucos meses, entrámos em modo de emergência, os serviços de saúde focados no combate à infeção por SARS-COV-2, as famílias voluntária ou compulsivamente confinadas e a economia quase paralisada.
Tempo atípico significa que vivemos um tempo marcado pela situação pandémica, que é complexa e evolutiva, suscita incerteza e instabilidade, requer de nós, seres sociais, que mantenhamos distanciamento social. Como se afirma no parecer do CNECV A necessidade de tomar decisões, numa escalada necessariamente modelada pelo próprio desenvolvimento da situação pandémica, confronta-se com princípios, valores e direitos das pessoas e da sociedade em geral. (Comissão Nacional de Ética para as Ciências da Vida, 2020). Desde logo, emergiram questões éticas, de proteção da vida e da dignidade humana, relacionadas com os princípios da necessidade, da precaução, da proporcionalidade, da solidariedade.
Também se foi tornando claro que algumas consequências deste ano atípico poderão alastrar aos próximos anos e pensemos concretamente na Saúde Mental.
A vivência da pandemia não trouxe apenas o confinamento ou o distanciamento físico. Alguns medos agigantaram-se; o medo da doença, o aumento do stress e da ansiedade, a incerteza do futuro. O que tem sido designado por impacto psicológico da pandemia, mas também as consequências concretas relacionadas com o aumento do desemprego, a crise económica, e uma conjugação complexa de fatores que potencia angústia existencial.
Vejamos algumas coisas que sabemos, das evidências existentes.
Sabemos que o isolamento e a quarentena podem desencadear um conjunto de sintomas psicopatológicos, designadamente perturbações depressivas e perturbações de stress pós-traumático.
Sabemos que a pandemia aumenta a vulnerabilidade, quer do ponto de vista emocional quer pelas dificuldades económicas existe uma forte relação entre saúde mental e privação social e evidências que o aumento do desemprego se relaciona com agravamento da saúde mental.
Sabemos que as pessoas morrem neste tempo de pandemia e os seus familiares e amigos vivem a privação da despedida, o sofrimento da perda em isolamento no período de luto, o que pode vir a ter repercussões sérias na saúde mental.
Também sabemos que a saúde dos enfermeiros está a ser afetada pela sobrecarga, a exaustão e as exigências do contexto pandémico, acrescidas do risco e do receio de adoecer e de infetar amigos e família, receios que se traduzem em maiores níveis de ansiedade, stress e sintomas depressivos (Sampaio, Sequeira, & Teixeira, 2020).
Sabemos que os problemas de saúde mental têm consequências severas na vida das pessoas e dos que as rodeiam, incluindo familiares e outros cuidadores.
Não conseguimos, naturalmente, ajuizar sobre os impactos de médio e longo prazo destes tempos atípicos. Todavia, como Enfermeiros de Saúde Mental, temos recursos e meios para ajudar, para intervir. "O enfermeiro especialista em saúde mental compreende os processos de sofrimento, alteração e perturbação mental do cliente assim como as implicações para o seu projeto de vida, o potencial de recuperação e a forma como a saúde mental é afetada pelos fatores contextuais. (Regulamento n.º 515/2018).
A especificidade da prática clínica em Enfermagem de Saúde Mental permite estabelecer relações de confiança e parceria com a pessoa, aumentar o insight sobre os problemas e a capacidade de encontrar novas vias de resolução. Não teria dúvidas em afirmar que a primeira responsabilidade do enfermeiro especialista em Saúde Mental é respeitar a dignidade da pessoa (Franco, Caldeira, & Nunes, 2020) e proteger os seus direitos, zelando pela qualidade e a segurança dos cuidados.
Claro que acabámos de passar para o território da ética profissional, que regula a relação do enfermeiro com aqueles a quem presta cuidados, tendo em conta a dignidade humana, os direitos das pessoas e as competências necessárias para o exercício. Em situação de necessidade, as pessoas podem ter diminuída a sua liberdade e nem ter consciência (ou capacidade) de pedir ajuda. Evitando psiquiatrizar a atual vida social, ainda assim importa reconhecer a especial delicadeza deste nosso tempo atípico, em que cruzam e entretecem a Ética e a Enfermagem de Saúde Mental. Diria mais: é tempo de visibilizar e valorizar os contributos da Enfermagem de Saúde Mental na promoção, a prevenção, a intervenção, tratamento, reabilitação e reinserção psicossocial.
Este nosso tempo atípico é também tempo de focar na dignidade humana, na compaixão e solidariedade, na justiça e equidade. Que o sentido de estarmos sitiados não nos imobilize que, antes, nos sirva de impulso para a resiliência e a intervenção profissional.
Referências Bibliográficas
Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida. (2020). Posição sobre a situação de emergência de saúde pública pela pandemia covid-19: Aspetos éticos relevantes. Disponível em https://www.cnecv.pt/pt/comunicacoes/tomada-de-posicao [ Links ]
Franco, H., Caldeira, S., & Nunes, L. (2020). Dignity in nursing: A synthesis review of concept analysis studies. Nursing Ethics. doi: 10.1177/0969733020961822 [ Links ]
Regulamento n.º 515/2018 (2018). Regulamento de competências específicas do enfermeiro especialista em enfermagem de saúde mental e psiquiátrica. Disponível em https://dre.pt/application/conteudo/115932570
Sampaio, F., Sequeira, C., & Teixeira, L. (2020). Nurses' mental health during the covid-19 outbreak: A cross-sectional study. Journal of Occupational and Environmental Medicine, 62(10), 783-787. doi: 10.1097/JOM.0000000000001987 [ Links ]