Introdução
O uso abusivo de substâncias psicoativas (SPA) é reconhecido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como uma doença crônica e recorrente, responsável por consequências tanto na vida individual dos usuários como na social. Representa um dos principais problemas de saúde pública em todo o mundo e interfere diretamente em fatores econômicos e sociais. Estima-se que, globalmente, 35 milhões de pessoas sofram transtornos causados pelo uso de SPA. Tanto substâncias lícitas, como as derivadas do álcool, quanto ilícitas, como maconha e crack, são uma ameaça à saúde, pois causam dependência, e seu uso pode levar ao desenvolvimento de diversas morbidades clínicas (Paiva, Silva, Galo, Zarzar, & Paiva, 2018).
Além dos danos causados pelo uso nocivo e pela dependência, outro problema crítico enfrentado pelos dependentes é a abstinência, que se manifesta perante a interrupção abrupta ou redução severa do uso da substância por meio de desconfortos físicos e psicológicos. De acordo com o Relatório Mundial sobre Drogas da ONU (Organização das Nações Unidas), de 2019, cerca de uma a cada dez pessoas apresentam sintomas de abstinência, que podem variar de agitação psicomotora até complicações agudas e crônicas, como infarto e hipertensão (Organização das Nações Unidades [ONU], 2019).
Considerando que múltiplas dimensões da vida são afetadas em função do uso/abuso de SPA, como relacionamentos familiares, convívio social, trabalho e saúde, é necessário que setores assistenciais desenvolvam práticas visando a integralidade do cuidado através da prevenção de riscos e de ações educativas, a fim de minimizar os danos decorrentes do uso dessas substâncias. Tais práticas devem ser inseridas não apenas no cotidiano do enfermeiro na atenção primária, mas também no cotidiano hospitalar, durante a assistência, com enfoque na avaliação de risco e no diagnóstico das necessidades de saúde (Santana et al., 2018).
A proposta de intervenção no âmbito hospitalar dá-se a partir da criação da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), instituída através da Portaria nº. 3.088 de 2011, que oferece o atendimento e acompanhamento de pessoas em uso de SPA através de uma rede de serviços que garantem a assistência psicossocial. O hospital geral, como um dispositivo da RAPS, além de disponibilizar leitos de saúde mental para atender às pessoas que apresentem quadros graves de dependência química, deve, ainda, se responsabilizar pela assistência integral, ampliando a percepção para questões decorrentes de outras patologias, capazes de afetar qualquer ser humano (Sousa & Jorge, 2019).
Ressalta-se que, quando essas pessoas precisam interromper o uso de SPA de forma abrupta, devido à internação hospitalar clínica, surgem dificuldades para sua permanência no hospital, causadas pelos sintomas de abstinência, pelo preconceito das pessoas a seu redor, e pela falta de qualificação da equipe assistencial frente às peculiaridades que envolvem as demandas específicas do dependente. Tais lacunas fragmentam a assistência à medida em que fragilizam posturas éticas pautadas na integralidade de cada sujeito, cujo objetivo é guiar a tomada de decisões que refletirão na qualidade do cuidado (Bastos, Dutra, Silva, Pacheco, & Silva, 2016).
Nesse contexto, foi necessário à enfermagem que se reposicionasse, de modo a atender à demanda desses dependentes e refletir sobre a própria - algo desafiador, ao se considerar o desafio representado pelas crises de abstinência, e as dificuldades existentes em se acolher com empatia os dependentes, oferecendo-lhes uma escuta ativa durante o plantão hospitalar. Além disso, é preciso ter em mente que as demandas dos usuários de SPA vão além de uma visita de enfermagem, envolvendo dificuldades práticas que exigem profissionais capacitados. Caso contrário, é possível que o medo e a insegurança a respeito das ações apropriadas façam com que o ambiente de trabalho em si tenha um impacto negativo na saúde mental dos profissionais (Basto et al., 2016).
Frente a esse cenário, faz-se necessário capacitar esses profissionais, a fim de gerar reflexões teóricas assistenciais e qualificá-los na identificação precoce dos sintomas de abstinência, gerando recursos dialógicos para o contato com essas pessoas. Assim, será possível compreender o processo complexo do cuidado em saúde mental, de uma perspectiva que tem em conta a singularidade de cada indivíduo e sua relação com seus familiares (Pellegrini, Friestino & Freitas, 2016).
Garantir essa qualificação permite a diminuição do medo e da insegurança, fatores que refletem diretamente na saúde mental desses profissionais e na qualidade da assistência clínica, assegurando acolhimento, cuidados de enfermagem, tratamento e terapia farmacológica adequada, além de promover a integração de serviços e encaminhamentos, quando necessário. Diante do exposto, o presente estudo tem como objetivos: analisar os desafios enfrentados pelos enfermeiros, bem como os reflexos emocionais consequentes da falta de capacitação, para assistir pessoas que apresentam crises de abstinência pelo uso de substâncias psicoativas no âmbito hospitalar.
Métodos
Adotou-se, para o desenvolvimento desse estudo, um método qualitativo, descritivo e exploratório. A etapa de campo foi realizada de setembro a outubro de 2019, com 13 enfermeiros inseridos de forma direta no processo de cuidado, distribuídos em enfermarias masculinas e femininas, nos turnos diurnos e noturnos de um hospital geral num município da Zona da Mata Mineira, no qual se atende com frequência usuários de SPA com outras morbidades.
Os critérios de inclusão foram: enfermeiros que atuavam nas enfermarias do hospital cenário. Como critérios de exclusão, considerou-se enfermeiros que estavam de férias ou de licença médica, assim como aqueles lotados no centro de tratamento intensivo (UTI) e no Centro Cirúrgico (CC), pela dificuldade de acesso das pesquisadoras a esses setores.
Ressalta-se que a amostra do cenário da pesquisa foi inteiramente composta pelos profissionais supracitados, excetuando os que não obedeciam aos critérios mencionados. Todos os participantes apresentavam cursos de especialização em áreas diversas, porém, nenhum tinha especialização em Enfermagem Psiquiátrica ou Saúde Mental.
Como instrumento de coleta de dados utilizou-se a técnica de entrevista semiestruturada, composta por um roteiro de questões norteadoras abertas a respeito do objeto de estudo proposto, para que os enfermeiros falassem a respeito da problemática. Desse modo, as categorias e subcategorias foram construídas a posteriori, ou seja, a partir dos conteúdos verbalizados pelos participantes, sem nenhum tipo de interferência ou indução das respostas, que contribuíram para esclarecer o objeto de investigação.
As entrevistas foram agendadas com os participantes e realizadas em ambiente reservado, durante seu horário de trabalho, cuidando para que sua rotina laboral não fosse alterada. Informou-se aos participantes o tema e os objetivos da pesquisa, seus riscos e benefícios, e que poderiam desistir da pesquisa a qualquer momento. Cada entrevista durou aproximadamente 30 minutos e foi gravada com a permissão do entrevistado. O anonimato dos participantes foi garantido mediante a utilização de códigos alfanuméricos (E1, E2, E3…). As informações foram disponibilizadas pelos participantes de forma voluntária, através da assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, seguindo todos os procedimentos legais para pesquisas envolvendo seres humanos da Resolução nº 466/2012, do Conselho Nacional de Saúde.
Os dados foram coletados por um dispositivo eletrônico de gravação de áudio, um aparelho IPhone sete. A fim de manter maior fidedignidade, os pesquisadores transcreveram as entrevistas imediatamente após sua realização, e disponibilizaram-nas para que os participantes as pudessem ler. Foi permitido a eles que omitissem qualquer trecho ou acrescentassem qualquer informação que pudesse contribuir para o estudo proposto.
Submeteu-se os dados a uma análise de conteúdo subsidiada pela obra de Bardin (2016) e constituída por três polos cronológicos: a pré-análise, momento de organização e reconhecimento dos dados por meio de leituras flutuantes, levado a cabo para que todo material da entrevista transcrita possa ser explorado, fundamentando assim a interpretação; exploração do material, em que se efetua a codificação dos dados e a identificação dos núcleos de sentido, consonante com os objetivos; e tratamento e interpretação dos resultados obtidos.
A partir dos objetivos do estudo e da leitura flutuante realizada, elaborou-se perguntas analíticas. Para análise e interpretação do conteúdo, os discursos foram explorados e utilizados enquanto respostas às questões essenciais e problematizadoras das entrevistas.
Esta pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Ciências Médicas e da Saúde de Juiz de Fora (FCMS-JF-SUPREMA), sob o Parecer Consubstanciado nº. 3.507.911.
Resultados
A partir da análise dos conteúdos, constituiu-se duas categorias temáticas: desafios enfrentados pelos enfermeiros durante a assistência de usuários em abstinência de substâncias psicoativas no hospital geral, e reflexos emocionais causados nos enfermeiros, relacionados à falta de capacitação para assistir usuários de substâncias psicoativas em abstinência. Da segunda categoria emergiu uma subcategoria: variáveis indutoras dos reflexos emocionais.
Desafios enfrentados pelos enfermeiros durante a assistência a usuários em abstinência de substâncias psicoativas no hospital geral
Os resultados deste estudo suscitam reflexões sobre os desafios enfrentados pelos enfermeiros, no hospital geral, para assistir usuários em abstinência de SPA. Segundo os enfermeiros, os desafios envolvidos são o desconhecimento da especialidade e a falta de capacitação. Os relatos evidenciam como tais desafios recaem sobre a dificuldade teórica-assistencial dos enfermeiros, levando a reflexões sobre quão imprescindível é capacitar esses profissionais.
[...] Olha, são bastantes os desafios, pois não sabemos o que fazer quando o paciente quer fugir, evadir, agredir a equipe, principalmente pra nós que não temos experiência. (E5)
[...] é uma questão de abordagem, o que devemos fazer? Como vou reagir diante dessa situação? Será que só a assistente social vai dar conta disso? Acho que tem que ser uma equipe multiprofissional [...]. (E6)
O desafio é o processo do atendimento, com os outros pacientes é mais tranquilo e natural, o paciente em abstinência é mais agressivo e ansioso, fica muito difícil, fora da rotina, vira um desafio a forma de lidar e a forma com que nós tentamos humanizar o cuidado. (E9)
Quando houve perguntas acerca da capacitação na área da saúde mental, os participantes reconhecem que não houve, e que a falta de um treinamento tão essencial é uma fragilidade da equipe durante a assistência às pessoas em abstinência:
Na instituição, não tive ainda. (E1)
[...] fazemos capacitação para cuidarmos de lesões por pressão, também seria ideal fazer com outros temas, precisamos muito dessas atualizações, porque hoje a área de psiquiatria está dominando, predominando, e nós somos pouco assistidas. (E2)
Dentro do tempo que eu estou aqui na instituição, já vai fazer três anos, eu nunca fui orientada, o que eu sei é diante da minha experiência do dia a dia [...]. (E3)
Não, eu não recebi capacitação para atuar com estes pacientes, mas a vivência nos ajuda. (E4)
Não temos capacitação. Recentemente li um livro sobre a reforma psiquiátrica, e assisti dois filmes, ia até fazer uma visita em uma clínica para entender um pouco mais, comecei a usar técnicas que aprendi no filme, e a mãe de um, me relatou que durante a noite ele ficou tranquilo e no outro plantão apresentava-se nervoso. Não foi capacitação, foi curiosidade mesmo. (E11)
A instituição oferece muitos treinamentos para a equipe de enfermagem, mas nunca abordou esse tipo de paciente não. (E12)
Reflexos emocionais causados nos enfermeiros, relacionados à falta de capacitação para assistir usuários de substâncias psicoativas em abstinência
Os participantes relataram fenômenos relacionados à falta de capacitação nessa clínica. Fizeram-se claros os reflexos emocionais sofridos por eles devido às condições de trabalho, reflexos estes que levaram a dificuldades assistenciais e sentimentos de descontentamento relacionados ao serviço. Identifica-se um cenário de insegurança, o que gera insatisfação profissional, angústia, e medo de agressões física e verbal. A consequência são posturas de cuidado na contramão de uma assistência psicossocial apropriada.
[...] a gente também fica com medo e certo receio, porque querendo ou não eles saem de si, ele não responde por ele naquele momento [...]. (E4)
[...] para administrar a medicação tem que fazer força, e muitas vezes precisa de muita gente para conter o paciente, então sentimos medo de agressão [...]. (E6)
[...] não saber como agir, porque como eu disse cada situação é diferente, cada paciente tem um sinal, e não sabemos no momento o que fazer, por mais que tentamos fazer o que sabemos é difícil [...] preocupação, medo de o paciente ficar agressivo e é isso que gera esse conflito. (E8)
A questão da agressividade com certeza, nós como profissionais ficamos receosos de sermos agredidos verbalmente, fisicamente, é a dificuldade em assistir o paciente, porque é um paciente que se apresenta muito agitado, a assistência a esse paciente acaba sendo negada, juntando a agitação e a agressividade, ficamos muito vulneráveis a essas situações [...]. (E9)
Variáveis indutoras dos reflexos emocionais
Identificou-se que, na assistência, enfermeiros encontram-se em situações-limite, impactantes do ponto de vista de sua saúde mental. Tais situações fizeram-se claras à medida em que os profissionais ressaltaram ser necessário o uso de drogas psicoativas com potencial de ação calmante para abrandar o estresse gerado pela falta de conhecimento a respeito da especialidade. Corroborando o já descrito, as dificuldades da enfermagem referem-se à falta de paciência no manejo do dependente, bem como ao medo de agressão. Observa-se que a enfermagem, desse modo, alinha-se a uma concepção de cuidado derivada do modelo manicomial, utilizando-se de práticas reducionistas, focadas na medicalização dos sintomas e na busca por intervenções médicas, ratificando a hipótese de que o desfecho explicativo de tais problemas seria a falta de capacitação.
[...] as pessoas possuem medo quando chegam pacientes da psiquiatria/saúde mental eles dizem que isso não é para eles, possuem pouca paciência para lidar eles, são muito queixosos e as pessoas não possuem muita paciência para isso [...]. (E5)
As vezes a equipe não tem tempo suficiente para conversar, não tem essa qualificação, e isso atrapalha um pouco, achamos que a psiquiatria é somente loucos, pessoas que estão surtando, matando, mas não, nós mesmos estamos trabalhando e chegamos em um nível de estresse que necessita do uso de medicamentos como calmantes. (E11)
[...] é um paciente difícil, é complicado, ele quer a droga, temos que conversar, ter muito cuidado, ele depende também da parte médica que é a contenção química para que possa aliviar a ansiedade é até pecado o deixar sofrer sem nada que possa tirar dele essa ansiedade. Conversamos com o médico, falamos que o paciente precisa de uma contenção química, pois se não ele também não dá conta, temos que ajudá-lo. (E13)
Discussão
A assistência de enfermagem em saúde mental deve ampliar as possibilidades para uma terapia de qualidade. Os relatos evidenciam que, para esses enfermeiros, oferecê-la torna-se um desafio constante, devido às fragilidades relacionadas à carência de conhecimento teórico-prático na área da saúde mental e psiquiátrica.
A partir dos relatos, percebe-se que, mesmo diante das fragilidades geradas por sua falta de conhecimento ao lidar com essa demanda, enfermeiros desdobram-se para conceder ao usuário em crise de abstinência uma assistência humanizada, que contemple seus aspectos biopsicossociais, pois percebem que tais questões são de extrema relevância durante a internação.
É pertinente compreender que o profissional que busca o exercício autônomo da enfermagem deve se preparar para oferecer um cuidado baseado em um modelo psicossocial, utilizando ferramentas que incluem a criação de vínculo, o acolhimento, a reabilitação e a ressocialização. Deste modo, torna-se possível oferecer um cuidado humanizado, em sintonia com as ações de uma equipe multiprofissional, e, portanto, direcionado à superação de um modelo de assistência centrado na figura do médico, modelo este que reduz sobremaneira a subjetividade do assistido (Marques et al., 2020; Silva et al., 2017).
Os relatos revelam, ainda, que a ausência de capacitação é reflexo da inexistência de subsídios institucionais, uma vez que os enfermeiros indicaram a existência de capacitação em outras especialidades, relacionada a questões clínicas, pontuais e mecanizadas. Neste sentido, a necessidade de compreender a doença mental além de seus aspectos fisiopatológicos, permanece distante graças à falta de envolvimento das instituições com a atual reforma psiquiátrica (RP). Assim, os enfermeiros buscam conhecimento através de livros, filmes e serviços especializados, para adquirir o mínimo de compreensão sobre como atuar com segurança profissional no manejo das crises de abstinência dos usuários internados. A escassez na especialização e capacitação, que tornariam possível que os profissionais atuassem nesta clínica, bem como as lacunas na formação acadêmica destes enfermeiros, refletem numa assistência aquém do que é preconizado pelas Políticas de Saúde Mental (Santana et al.,2018).
Cabe, portanto, a crítica de que as imposições legais, verticalmente aplicadas no campo político, não subsidiarão por si só a desconstrução das práticas manicomiais. Pelo contrário, é preciso um processo de revalidação da formação crítica e reflexiva que permeie as questões relativas ao direito pleno a uma assistência equânime. À luz dessa concepção, espera-se dos profissionais um posicionamento crítico acerca das Políticas Públicas de Saúde conquistadas através do SUS, que colocam a capacitação profissional como essencial na assistência em saúde. Neste sentido, é necessária a busca incessante pelo conhecimento (Ministério da Saúde, 2018).
Ao analisarmos os reflexos emocionais sofridos pelos enfermeiros no enfrentamento a essa demanda, os dados apresentados evidenciam que esses profissionais expressaram energicamente sentimentos relacionados ao descontentamento profissional, ao medo e à angústia. Tais questões são resultantes da falta de capacitação ou orientação na prática do cuidado de enfermagem, bem como da lacuna relacionada à gestão política e institucional.
O estudo de Hidelbrandt e Marcolan (2016) ratifica essas questões que podem refletir no sofrimento psíquico da categoria, revelando que os sentimentos relatados pelos profissionais de enfermagem diante do usuário em crise de abstinência são de medo, ansiedade, alta tensão e estresse, e são desencadeados graças ao imaginário social, segundo o qual o comportamento agressivo é habitual e esperado em momentos de crise.
Estudos corroboram que as deficiências de conhecimentos qualificados, associadas a atitudes desfavoráveis a uma assistência de qualidade, geram falhas, pois a assistência é focada apenas nos cuidados físicos, enquanto os cuidados oferecidos aos aspectos psíquicos e emocionais dos pacientes têm ficado aquém do desejável. As dificuldades encontradas para a atuação, geradas pela falta de capacitação nos serviços, impactam na saúde mental desses profissionais, que relatam medo, preocupação, ansiedade e angústia (Melo, Pegoraro, Santos, & Pillon, 2016; Santana et al.,2018).
É possível identificar que o medo de atuar na crise se relaciona a agressões físicas e verbais, como também à falta de paciência, de empatia, e ao estigma social ainda muito forte, gerando a fragmentação da assistência de enfermagem. No cerne dessa discussão, observa-se, no hospital geral que serviu de cenário a essa pesquisa, um cuidado de enfermagem fragilizado, graças à falta de conhecimento técnico e científico quanto ao manejo dos usuários em abstinência de SPA, tornando-o um cenário potencial para o esgotamento físico e mental dos profissionais inseridos no cuidado diário beira-leito.
No que se refere ao estigma social, torna-se fundamental ressaltar que, quando relacionada aos usuários de SPA, essa conjuntura se torna ainda mais melindrosa, pois ainda existe um forte preconceito em relação aos dependentes, segundo o qual seriam pessoas perigosas, improdutivas e indesejáveis, situação que os coloca em uma posição mais baixa na hierarquia social (Amarante, 2017).
Ratificando essa problemática, um estudo sobre o cuidado clínico e o processo de enfermagem em saúde mental evidenciou uma resistência velada entre profissionais de enfermagem à assistência a transtornos psíquicos, uma vez que carregam ainda, em plena RP, a ideia reducionista de que essas pessoas são agressivas e perigosas para a sociedade. Por esse motivo, o prejulgamento gera na equipe sofrimento, angústia, ansiedade, e o medo de atender, desencadeando erros no processo que envolve o cuidado, e falhas na comunicação terapêutica, ferramenta fundamental na assistência (Oliveira et al., 2018).
Relatos externam tensões vivenciadas pelos enfermeiros para assistir os usuários em abstinência no hospital geral, ao narrarem que o nível de estresse experimentado diariamente coloca-os na posição de dependentes de drogas psicoativas com potencial de ação calmante. É possível notar os sentimentos de insatisfação profissional frente a um modelo de administração que não oferece subsídios para que esses profissionais atuem no gerenciamento das crises de abstinência. O desânimo pelo trabalho neste cenário é visível, e tais questões são gatilhos para o adoecimento mental da categoria.
Os reflexos emocionais que o cenário de trabalho impõe fazem com que os enfermeiros busquem alternativas para reduzir os problemas ocasionados pelo processo de trabalho conflitante. Essas atitudes expõem a saúde desses trabalhadores ao risco, bem como tornam mais provável a irracionalidade no consumo de drogas psicoativas, que pode gerar dependência quando ocorre a automedicação (Souza, Pereira, Oliveira, Pinho, & Gonçalves, 2015; Pereira et al., 2017).
Assim, o sofrimento moral dos profissionais de enfermagem, no que diz respeito a sua prática profissional, reflete-se em ações entendidas como incorretas pelos próprios enfermeiros, mas ainda assim executadas, graças às dificuldades na assistência que impossibilitam a oferta de um cuidado apropriado, seja por falta de conhecimento, falha pessoal, julgamento equivocado, ou como resultado de situações que escapam ao controle do profissional. Como consequência, há dificuldades em desenvolver ações moralmente adequadas, o que é demonstrado quando os profissionais de enfermagem recorrem ao profissional médico para prescrição e medicalização do paciente que apresenta abstinência devido ao uso abusivo de SPA (Oliveira, Oliveira, Cardoso, Aragão, & Bittencourt, 2020).
Neste sentido, cabe refletir sobre a fala do participante E13, que entende a contenção química como terapia de cuidado ao alívio da ansiedade. Ressaltamos que, no Brasil e no mundo, a medicalização da doença mental tem sido pouco questionada, tanto em quantidade quanto em duração, refletindo em um aumento significativo do uso de psicofármacos diante de qualquer sinal ou sintoma psíquico. Essa percepção de tratamento está na contramão da proposta de atenção aos aspectos biopsicossociais de cada indivíduo, e gera preocupação quanto ao retorno a práticas medicalizantes e segregacionistas no campo da saúde mental, fragmentando um cuidado que deveria ser centrado na particularidade de cada sujeito (Gonçalves & Campos, 2017).
Deve-se fazer uma reflexão crítica e cuidadosa a partir da dificuldade dos enfermeiros em assumir sua parcela de responsabilidade pela assistência neste cenário, o que revela dificuldades na definição de seu objeto de trabalho de acordo com o paradigma de atenção psicossocial que prevê, a partir da RP, um engajamento no campo assistencial da saúde mental, orientando a desconstrução de representações sociais, estigmas e preconceitos (Amarante, 2017; Pitta & Guljor, 2019).
A atuação na assistência em saúde mental, sem subsídios teórico-práticos, está diariamente predisposta à reprodução de práticas iatrogênicas, que se opõem ao paradigma de atenção psicossocial. Destarte, é fundamental a discussão científica acerca dos preceitos da RP e sua progressão, buscando consolidar a compreensão da sociedade quanto ao modo de lidar com usuários de SPA em crise de abstinência. A situação de crise deve ser contextualizada em relação à rede de apoio social do usuário, sua vulnerabilidade e seus vínculos sociais (Amarante, 2017; Pitta & Guljor, 2019).
Considerando o exposto, são essenciais as discussões que reflitam sobre condições de trabalho de profissionais de enfermagem e situações relacionadas a elas, refletindo ou não em sentimentos de instabilidade no processo de trabalho. Faz-se fundamental o debate científico sobre como hospitais gerais estão se preparando para atender a essa especialidade, com o objetivo de propor, através das experiências investigadas, melhorias no cuidado em saúde mental, considerando que, para o avanço da RP, os recursos humanos devem ser valorizados e qualificados.
Conclusões
A assistência às pessoas com transtorno mental no hospital geral ainda precisa superar os paradigmas do modelo manicomial, ampliando as possibilidades de cuidado psicossocial. Práticas assistenciais orientadas pelo modelo biomédico refletem-se em fragmentações na atuação da enfermagem, provocando dificuldades em um espaço de cuidado que deve constantemente rever sua prática, de acordo com os pressupostos da RP.
Esta pesquisa mostra que a instituição não capacita seus enfermeiros como estratégia para o enfrentamento das crises de abstinência apresentadas por usuários de SPA internados no hospital geral. Os discursos apresentados pelos participantes revelam a necessidade de os enfermeiros se reposicionarem acerca das questões que demandam o cuidado em saúde mental, que, graças à falta de especialização na área e de capacitação na instituição, fragmentam continuamente o modo de trabalho e a qualidade de vida destes profissionais, refletindo no adoecimento mental da categoria.
O cenário encontrado é passível de preocupação, levando-nos a uma reflexão sobre a necessidade de reformular o processo de trabalho do enfermeiro no hospital geral, compreendendo esse espaço como repleto de possibilidades para a assistência integrada e holística junto à equipe multiprofissional.
Implicações para a prática clínica
Este trabalho possibilita discussões em âmbito institucional sobre a importância de qualificar os recursos humanos através de cursos de capacitação, juntamente a gestores e profissionais de saúde que prestam assistência a usuários em abstinência do uso de substâncias psicoativas. Desse modo, possibilita a oferta de cuidados de qualidade e segurança, especialmente na área da enfermagem, a partir do modelo psicossocial. O estudo, além disso, viabiliza, através do conhecimento científico, a identificação de condições de trabalho que possam interferir na qualidade de vida desses profissionais, a fim de diminuir o sofrimento laboral da categoria.