Introdução
O início e o fim da adolescência não é consensual, devido a algumas variações neste período etário, inerentes ao contexto sociodemográfico e cultural, considerado um período do desenvolvimento do ciclo vital que vai desde a puberdade até à idade adulta, onde estão comtemplados todos os indivíduos com idade entre os dez e os dezanove anos, de acordo com a World Heatlh Organization (WHO,2011).
Esta etapa carateriza-se por um período de profundas transformações, físicas e psicológicas mas sobretudo esforço de construção de autonomia em relação à família e de edificação de um self integrado que conduza à identidade, tornando o adolescente mais vulnerável ao desenvolvimento de alguns comportamentos autolesivos. Os motivos que o levam a ter este comportamento estão geralmente relacionados com fatores psicológicos, sociais e biológicos, sendo os de natureza psicológica os mais comuns e nos quais as alterações do comportamento têm um pico de incidência que se manifesta sobretudo por comportamentos autolesivos, uso de substâncias aditivas, perturbações alimentares, entre outros no período intermédio e final da adolescência (Matos, Simões & Tomé, 2012).
O adolescente que adota um comportamento autolesivo vive grandes conflitos familiares, ou processos de doença, com grandes dificuldades de adaptação social e nas relações interpessoais. Na génese de um comportamento autolesivo existe um modelo de causalidade multifatorial complexa, sendo apontados como potencialmente relevantes aspetos de relacionamento interpessoal com particular incidência na família (Santos& Neves,2014).
As interações desenvolvidas pelos vários elementos de uma família organizam-se em sequências de trocas verbais e não-verbais, que se vão edificando no dia-a-dia familiar, resultando em adaptações recíprocas, implícitas e explícitas, entre os vários elementos, existindo assim a necessidade de uma sintonização entre o mundo da família e o do adolescente, descobrindo as duas experiências em simultâneo, ajudando-se a crescer numa sintonia harmoniosa (Alarcão, 2006).
As relações familiares assumem um papel determinante, uma vez que podem ser um fator protetor com impacto direto na saúde e bem-estar dos seus elementos ou, pelo contrário, podem converter-se num fator determinante para a desestruturação psíquica do adolescente, servindo como fator promotor de comportamentos autolesivos (Tomé, Camacho, Matos, & Diniz, 2011).
A estrutura familiar pauta-se por conjunto invisível de requisitos funcionais que organiza a maneira pela qual os membros da família interagem. É fulcral ter em atenção que esta estrutura tem que tolerar, e até fomentar, certas transformações no seu ciclo vital, como é o crescimento dos filhos, facultando o seu acesso à autonomia e à separação (Alarcão, 2006).
Assim sendo, a família deve ser vista numa abordagem sistémica, pois só assim podemos conceptualizá-la num contexto de multiplicidade que ultrapassa a visão nuclear, seguindo a evolução do conceito de família, modificando e reconstruindo a par da evolução dos contextos e estruturas sociais. Neste aspeto, deve ser considerada como um sistema aberto que interage com o contexto sociocultural onde está integrado, onde qualquer alteração num dos seus membros vai afetar toda a estrutura e dinâmica familiar (Wright & Leahey, 2009).
Ao papel da família acrescem todas as dúvidas, incertezas e receios que um comportamento desta natureza acarreta, tornando-se desta forma a própria família alvo fundamental de análise, infelizmente por vezes pouco valorizada (Santos, 2007).
Quando um comportamento autolesivo de um adolescente leva a uma admissão/internamento hospitalar, a família vivencia um processo de hospitalização que constitui uma experiência única, onde a mudança de um dos seus membros afeta toda a família. Os comportamentos dos membros da família são melhor percebidos sob um ponto de vista de uma causalidade circular e não linear (Wright & Leahey, 2009). O estudo de Trinco e Santos (2015) diz-nos que cerca de 8% dos adolescentes admitidos num serviço de urgência de um hospital pediátrico apresentam pelo menos uma alteração do comportamento, onde os ajustes/reajustes são decorrentes de processos de transição, quer sejam resultantes do próprio desenvolvimento, quer do processo saúde/doença.
Com base no exposto a perceção da família perante este tipo de comportamento no adolescente tornou-se para nós motivo de especial atenção. Desta forma, definimos como pergunta de partida: Qual a experiência da família perante um comportamento autolesivo de um adolescente?
Perante esta problemática e a escassez de estudos sobre este assunto, o objetivo desta revisão da literatura foi compreender a perceção da família quando se vê perante um comportamento autodestrutivo de um adolescente, visando contribuir para a melhoria dos cuidados às famílias que experienciam uma tal situação.
Métodos
A estratégia metodológica foi orientada pela questão: Qual a experiência da família perante um comportamento autolesivo do adolescente? em concordância com a mnemónica PICo (The Joanna Briggs Institute, 2014).
A pesquisa foi feita em bases de dados como a MEDLINE e outras integradas no alojador EBSCO, considerando os estudos publicados no horizonte temporal posterior a 2000, disponíveis em texto integral e nos idiomas português, inglês, francês ou espanhol, atendendo à exequibilidade de acesso às bases de dados e após a seleção das palavras-chave utilizando os descritores MeSh DeCS 2013: adolescent*, familiy*, Self-Injurious Behavior, self-harm, suicide attempts, parents, life change events., e ainda: adolescência, adolescente, comportamentos autodestrutivos e autolesivos, auto mutilação, tentativa de suicídio, pais, acontecimentos que mudam a vida., família, com modo de pesquisa booleano e smart texto, de forma a alargar a sensibilidade da pesquisa, utilizando as combinações OR e AND, nas mais variadas conjugações dos descritores de forma a ampliar o leque da pesquisa.
Foram feitas pesquisas on-line através dos fornecedores de bases de dados Ebsco-Medline, Pubmed, Cinahl, Crochrane Database of Systematic Reviews, British Nursing Index,Medicilatina, Academic Search Complete, Psychology and Behavioral Sciences Collection, Library, Information Science & technology Abstrats, pelo portal de pesquisa B-on, Lilacs Scielo, foram ainda realizadas pesquisas nas bases de dados do repositório científico de acesso aberto de Portugal.
Os estudos selecionados foram rastreados pelos seguintes critérios de inclusão: família, pais, estudos sobre a família com adolescentes com comportamento autolesivo, e estudos qualitativos e quantitativos com acesso em full-text.. Foram excluídos os artigos que abordassem estudos sobre a experiência do adolescente, estudos que incluíssem a família e o adolescente com outra experiência, estudos que incluíssem família de jovens com idade superior a 18 anos e estudos que não possuíssem texto completo.
Os estudos selecionados e apresentados no fluxograma (Figura 1), foram identificados, triados e avaliados na sua qualidade metodológica recorrendo a análise do conteúdo para identificação de temas recorrentes ou evidentes nos estudos, e ainda a análise comparativa dos resultados em novas classificações temáticas que englobam e extrapolam os significados dos estudos que constituem a nossa amostra (Sandelowski & Barroso, 2007).
De um total de 1027 artigos identificados, verificámos que 621 eram repetidos em duas ou mais bases de dados, após a leitura do título excluímos 229 e após a leitura do resumo foram eliminados 61 que não cumpriam os critérios de inclusão pré-definidos, ficando assim 13 artigos. Estes foram analisados à luz de um teste de relevância final ancorado na coerência metodológica, análise das evidências, confiabilidade e credibilidade dos resultados conforme é recomendado por Sandelowski e Barroso (2007).
Após esta análise optámos pela inclusão de 10 artigos que cumprem os nossos critérios de inclusão, que após uma leitura exploratória de cada um, foi feita a análise do seu conteúdo de forma a identificar os temas mais comuns, conceitos e frases que contribuíssem para o desenvolvimento de uma compreensão profícua das evidências, sendo realizada, igualmente, uma análise comparativa dos conceitos mais significativos para a inclusão interpretativa dos resultados e consequentes categorizações temáticas dos estudos integrantes da amostra.
Resultados
De acordo com a pesquisa, parece-nos existir uma lacuna na publicação de evidência científica sobre o assunto em estudo, anterior a janeiro de 2005, levando-nos a acreditar que esta problemática só recentemente sensibilizou a comunidade científica para a sua investigação.
Conforme apresentado no Quadro 1, no intervalo de tempo pesquisado foram selecionados 10 artigos onde estão contempladas as informações detalhadas acerca de cada pesquisa, tais como o número do estudo, autor (es), ano de publicação e país, tipo de estudo, caracterização da amostra, objetivos, instrumento de colheita de dados e principais resultados, esta análise foi feita por um dos investigadores.
A maioria dos estudos (7) recorrem a uma metodologia qualitativa, sendo a entrevista a técnica de recolha de dados mais utilizada. Este tipo de metodologia permite analisar com profundidade as construções de significado acerca da experiência da família sobre um comportamento autolesivo do adolescente. Os restantes estudos utilizaram uma metodologia qualitativa, sendo que um deles (E6) avaliou a eficácia de um programa de intervenção feito por uma equipa pluridisciplinar, incluindo enfermeiros.
Todas as investigações analisaram a família do adolescente com comportamento autolesivo. Embora com objetivos diferentes os resultados são similares, tendo emergido três categorias centrais: Sofrimento Psíquico, Crise Familiar e Necessidades da Família, que terão o seu desenvolvimento na discussão.
Discussão
A abordagem da família, como sujeito dos estudos, demonstra uma preocupação dos investigadores quanto à vivência da família perante um comportamento autolesivo por parte do adolescente, sendo este comportamento motivador de múltiplos desafios e mudanças na família, assim e após a análise detalhada de cada artigo e como referido anteriormente o sofrimento psíquico, a crise familiar e as necessidades da família são as categorias temáticas principais que desta revisão da literatura e que passamos a desenvolver.
O Sofrimento Psíquico familiar pauta-se principalmente pela vinculação existente entre o adolescente e a família, pois esta vê-se como uma extensão do adolescente e do seu sofrimento, associando-se à dor física, psicológica, cultural e social, deixando antever a premissa de uma rutura na coesão da unidade familiar assim como na sua própria identidade.
Nesta categoria os estudos de Daly (2005); Ferrey et al.,(2016), Greene-Palmer et al., (2015); Morgan,et al., (2013); Raphael et al., (2006); vêm corroborar que o Sofrimento Psíquico sentido pela família revela uma diversidade de interpretações e de perceção sobre a parentalidade positiva, ancorando esta perceção nas questões da ansiedade e da tristeza num misto de sentimentos, sobressaindo a ansiedade como causadora de maior sofrimento.
Nas pesquisas realizadas por Buus et al., (2014); Oldershaw et al., (2008); Power et al., (2009); Raphael et al.,(2006); Sinead et al., (2008); existem também outros sentimentos que concorrem para aumentar o sofrimento das famílias, destacando-se: a culpa, a vergonha, a desesperança, a raiva e a desilusão, a deceção no desempenho de uma parentalidade positiva, a tristeza, o isolamento e a complexidade em lidar com a situação, que são mencionados como a génese do isolamento social e familiar, contribuindo para um aumento exponencial do sofrimento da família.
Da mesma forma, o estudo de Greene-Palmer et al. (2015), menciona que 40% dos pais relatam que se sentem culpados pelo comportamento do filho. Igualmente Sinead, et al. (2008), referem o sofrimento psíquico como uma experiência angustiante e frustrante para os pais. Emerge dos estudos de Daly (2005) e Morgan et al. (2013), que os pais sentem falta de confiança no adolescente, que têm medo e desesperança em relação ao futuro, e a possibilidade de este repetir o ato é relatada como um desafio emocional que afeta a saúde mental de toda a família.
Na sua maioria os achados indicam que o sofrimento psíquico está presente na família que convive com um adolescente que concretiza um comportamento autolesivo, sendo este sofrimento mais ou menos proporcional à letalidade, à frequência do ato e à motivação do jovem.
Por sua vez, a Crise Familiar está associada ao efeito traumático e desorganizador que o próprio ato desencadeia na família, sendo que os achados indicam que um comportamento autolesivo põe em causa o passado, o presente, mas sobretudo as expectativas futuras.
Dos estudos analisados por Greene-Palmer et al. (2015), Ferrey et al. (2016) e Sinead et al. (2008); pode inferir-se que a família que se encontra perante uma crise tem que reorganizar os seus padrões transicionais para poder responder funcionalmente ao stress causado pelas próprias situações. Uma Crise Familiar surge porque o sistema sente-se ameaçado pela imprevisibilidade que a mudança comporta na sua resolução, sendo extremamente importante o grau de flexibilidade com que o sistema familiar vive.
De acordo com os achados nos estudos de Buus et al. (2014) e Power et al. (2009), os pais descrevem que o comportamento autolesivo por parte de um filho é uma situação extremamente perturbadora, em que têm que lidar com a situação de perigo para a vida do filho, e em simultâneo têm que enfrentar o estigma social/moral associado a este ato.
Os estudos de McDonald & Jackson, (2007) e de Oldershaw et al. (2008), dizem-nos que a crise desencadeada por um comportamento autolesivo é uma experiência complexa, que reflete mudanças na dinâmica familiar, verificando-se um elevado impacto no funcionamento familiar e dificuldade na resolução da crise. É de realçar que o estudo de Daly, (2005), refere que as mães sentem um grande fracasso como mães, sentindo o estigma familiar e social de ter um filho com comportamento autolesivo, o que as leva ao isolamento social.
Nestes contextos, a Crise Familiar é sentida como uma situação de dualidade. Reações hostis por parte da família, processo compulsório de reorganização da sua dinâmica como sistema, com um crescendo positivo dos laços afetivos, onde muitas vezes o luto está presente em todas as suas fases (negação, aceitação, depressão e isolamento).
Por ultimo, as Necessidades da Família tornam-se de definição complexa, sobretudo porque são muito diversificadas conforme as caraterísticas e circunstâncias de cada família. As necessidades estão quase sempre associadas à procura dos serviços de saúde perante uma alteração física ou um sofrimento psíquico, ou algo que seja reconhecido e descrito como uma falta na resolução de fatores determinantes da história de vida de cada elemento e do seu agregado familiar.
Essas mesmas necessidades são identificadas por situações ou eventos de carácter emocional, sendo vivenciadas de acordo com a perigosidade de cada situação. Desta forma e de acordo com os achados dos estudos efetuados por Raphael et al. (2006) e Sinead et al. (2008), as necessidades sentidas pelos pais, são essencialmente a ajuda para si próprios, de forma a adquirir estratégias de coping para lidar com os filhos, e a necessidade de apoio para os próprios adolescentes, para que estes consigam resolver os seus dilemas e não repitam o ato.
Neste sentido, Power et al. (2009), desenvolveram um estudo piloto onde os pais frequentaram programas de apoio, tendo concluído que os pais que frequentaram o programa adotavam um maior nível de controlo e de parentalidade positiva, utilizando mais a comunicação comparativamente aos que não tiveram apoio.
Conclusões
Esta revisão da literatura permitiu perceber que cada família vivencia a experiência do comportamento autolesivo do adolescente de forma particular, podendo este evento ajudá-la a superar as suas vulnerabilidades e fragilidades, agir e reagir, lutar e enfrentar esta crise familiar que lhe é imposta, sendo de suma importância compreender que os comportamentos autolesivos na adolescência são um problema de saúde pública que compromete o presente e empenha o futuro do próprio e da família, revelando-se premente a necessidade de compreensão deste fenómeno por parte da enfermagem com vista a uma abordagem sistémica direcionada não só ao adolescente mas também à família como sistema interativo e interdependente, com enfoque nas suas necessidades.
Assim sendo, para algumas famílias as mudanças e situações vivenciadas neste contexto servem para fortalecer os vínculos afetivos entre os seus elementos, criando sinergias positivas e unificação para a resolução ou melhoria da situação. Outras famílias são acometidas por um sofrimento extremamente perturbador, desencadeando uma crise familiar, despoletando um processo compulsório de reorganização da sua dinâmica que poderá resultar em mudanças positivas ou negativas, dependendo da resiliência e capacidade da família para se restruturar como sistema e para fazer a catarse de conflito vivido.
Limitações do estudo
As limitações do estudo prendem-se essencialmente com a escassez de estudos que abordem exclusivamente as famílias dos adolescentes com comportamento autolesivo, não tendo sido encontrado nenhum estudo nacional.
Implicações para a prática clínica
Refletindo sobre a análise efetuada aos estudos e a sua utilidade na compreensão da família perante a vivência de um comportamento autolesivo de um filho adolescente, e no desenvolvimento de cuidados de enfermagem de excelência, salienta-se a importância de uma abordagem sistémica, onde a par de uma visão individual a família surge como foco primordial dos cuidados. Além disso, destaca-se a pertinência da continuidade de estudos que contribuam para elucidar o exercício da enfermagem e que sejam promotores de projetos e intervenções neste âmbito.