Introdução
A cognição envolve a esfera do funcionamento mental como as habilidades de sentir, pensar, perceber, lembrar, raciocinar, formar estruturas complexas de pensamento e a capacidade de produzir respostas às solicitações e aos estímulos externos (Andrade, Lima, Fidelis, Jerez-Roig e Lima, 2017). O termo envelhecimento cognitivo corresponde a um declínio nas funções cognitivas próprio dessa fase da vida (Gomes, Ruiz e Corrente 2011). Caracteriza-se por alterações na velocidade de processamento das informações, requerendo um tempo maior para processar, ler, compreender e memorizar uma informação podendo ocasionar redução da autonomia, da independência e da adaptabilidade social (Kuiper, Zuidersma, Voshaar, Zuidema, Van Den Heuvel & Stolk, 2015).
Recursos sociais maiores e de boa qualidade, como uma rede de amizade, estão relacionados à melhora do funcionamento da memória (Batty, Deary, & Zaninotto, 2016). Enquanto a estimulação intelectual e social diminui as chances de deterioração cognitiva na velhice (Casemiro, Quirino, Diniz, Pavarini, Gratão e Partezani, 2018). Tanto em comprometimentos cognitivos leves quanto em alterações progressivas, a exemplo da doença de Alzheimer, as relações sociais têm efeito protetivo (Sposito, Neri Yassuda, 2016). O apoio social tem sido definido como a percepção de que se é amado e cuidado, estimado e valorizado, parte de uma rede de comunicação e obrigações mútuas. Essas relações podem vir de um cônjuge ou companheiro(a), parentes, amigos, colegas de trabalho e laços comunitários (Neri, Yassuda, Araújo, Eulálio, Cabral et al. 2013).
Se, por um lado, o apoio social beneficia a saúde cognitiva, por outro, a preservação das funções cognitivas beneficia a manutenção das redes de apoio em um sistema de retroalimentação. As funções cognitivas preservadas em idosos associam-se com melhora nas variáveis de apoio social afetivo (demonstrações físicas de amor e afeto), apoio emocional (habilidade da rede social em satisfazer as necessidades individuais em relação a problemas emocionais) e interação social (contar com pessoas com quem relaxar e divertir-se) (Domingues, Ordonez, Lima-Silva, Nagai e Torres 2012). Idosos que permanecem socialmente ativos tendem a utilizar recursos cognitivos para a resolução de problemas e se beneficiar emocionalmente das interações sociais (Dias, Andrade, Duarte, Santos e Lebrão, 2015).
O objetivo deste estudo foi analisar a associação do apoio social e déficit cognitivo em idosos cadastrados em uma unidade de atenção primária na cidade do Recife, situada na região Nordeste do Brasil.
Método
O estudo, do tipo transversal analítico, foi aprovado pelo Comitê de ética em pesquisa envolvendo seres humanos do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal de Pernambuco, sob CAAE: 51557415.9.0000.5208.
Foram considerados elegíveis para o estudo pessoas com 60 ou mais anos de idade, cadastrados em um serviço de atenção básica na cidade do Recife no período mínimo de um ano. Foram excluídos os idosos que apresentaram incapacidade em compreender e/ou responder as questões por comprometimento auditivo ou verbal, suficientemente graves que impossibilitaram a entrevista.
A população da cidade do Recife concentra 192.110 idosos com 60 ou mais anos. O distrito sanitário IV, que é uma divisão administrativa de saúde, conta com o maior número de idosos (32.166) da cidade (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2018). Neste distrito sanitário, o local de estudo foi escolhido por ser uma unidade de saúde da família (USF) com as três equipes de saúde da família (ESF) completas quanto ao número e especialidade profissional (médicos, enfermeiros, dentistas, auxiliares de consultório dentário, auxiliar de enfermagem e agentes comunitários de saúde).
Considerando a prevalência do déficit cognitivo igual a 5% na população idosa (conforme Machado, Ribeiro, Cotta e Leal, 2011), um universo de 1209 idosos cadastrados na USF onde foi realizado o estudo e um erro aceitável de 5%, foi utilizado o Open Epi versão 3.01 para o cálculo do tamanho da amostra. Calculou-se uma amostra mínima de 73 indivíduos.
Os dados foram recolhidos por 33 graduandos em enfermagem da Universidade Federal de Pernambuco, que foram treinados (40 horas) pela coordenação da pesquisa para o estabelecimento da harmonização prévia a recolha dos dados. A seleção dos idosos se deu por uma lista de idosos cadastrados nas três equipes da unidade. Um a cada cinco idosos foi convidado a participar e visitado em seu domicílio. Durante a visita domiciliar, realizada por uma dupla de pesquisadores e um agente comunitário de saúde, eles foram esclarecidos sobre o projeto e após anuência e assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) responderam a um questionário com questões sociodemográficas (sexo, idade, escolaridade, presença de companheiro (a) e quantas pessoas vivem na casa), apoio social e funções cognitivas.
Para a descrição da amostra, a variável sociodemográfica “escolaridade”, que corresponde aos anos de estudos, foi dividida em duas categorias: Até ensino fundamental (onde foram incluídos nenhum ano de estudo/ ensino primário/ ensino fundamental) e Ensino médio e superior. Para a análise de dados, a variável apoio social foi considerada como independente ou de exposição e o déficit cognitivo como variável dependente ou de desfecho.
O apoio social foi mensurado utilizando o Medical Outcomes Study Questions - Social Support Survey (MOS-SSS), desenvolvido por Sherbourne e Stewart (1985) e validado em português brasileiro (Griep, Chor, Faerstein, Werneck e Lopes, 2005). A variável tem como o escore final a soma da pontuação nas 19 questões. As respostas para cada questão variam de acordo com os escores de 1 (nunca) a 5 (sempre), realizando-se, em seguida, a soma dos pontos obtidos em cada pergunta. As pontuações mínima e máxima no questionário correspondem a 19 e 95 pontos, respectivamente. Idosos que apresentam no MOS-SSS escore menor ou igual a 47 foram considerados com baixo apoio social. Idosos que apresentaram 48 pontos ou mais foram considerados com alto apoio social.
O Déficit cognitivo foi avaliado conforme as onze dimensões das funções cognitivas medidas utilizando o Mini Exame do Estado Mental (MEEM) desenvolvido por Folstein e McHugh em 1975 e validado por Bertolucci, Brucki, Campacci e Juliano (1994) no Brasil. A variável tem como o escore final a soma da pontuação nas sete categorias das funções cognitivas. Para cada uma das 30 questões do MEEM, existe um padrão de resposta e elas recebem pontuação entre 0 e 5. Ressalta-se que, se o escore de alguma categoria for igual a zero, isso significa que o idoso não pontuou naquela questão. Ao final é apresentado um escore total, resultado da soma de cada categoria. Neste estudo, como recomendado para avaliação global da cognição na atenção primária à saúde pela Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade e Academia Brasileira de Neurologia (2009) foi utilizado o escore de 24 pontos no MEEM, sendo estabelecido Menor ou igual a 24 pontos= com déficit cognitivo e Maior que 24= sem déficit cognitivo. Em seguida, a fim de avaliar a existência do déficit cognitivo, os escores totais do MEEM foram dicotomizados em presença e ausência do déficit cognitivo (ver Tabela 1).
Para a análise de dados foi utilizado o software Rstudio. Foram realizadas análises descritivas (frequência absoluta e relativa, média, mediana, desvio padrão, mínimo e máximo) das variáveis. A análise bivariada foi utilizada para verificar a associação entre apoio social e déficit cognitivo considerando cada uma das categorias do MEEM. Todas as variáveis sociodemográficas foram testadas como potenciais confundidoras para a associação entre apoio social e o déficit cognitivo por meio de análises estratificadas, mas nenhuma delas mostrou-se estatisticamente significante.
Resultados
Os resultados apresentados demonstraram que dos 88 idosos estudados, 70,5% eram do sexo feminino e 73,9% tinham nível de escolaridade até o ensino fundamental. Mais que a maioria vive sem companheiro (a) (61,4%) e mora com pessoas da família (84,1%). A prevalência do déficit cognitivo foi estimada em 70,5% e presença do alto apoio social foi igual a 86,4% (Tabela 2).
Observando as dimensões do apoio social propostas no MOS-SSS, nota-se que os idosos relatam elevados escores em todas as dimensões: alto apoio social tangível (92,0%), seguido do alto apoio social afetivo (84,1%), alto apoio social emocional (78,4%), alto apoio social de informação (76,1%) e alto apoio de interação social (76,1%).
Analisando as dimensões das funções cognitivas, o déficit cognitivo foi mais frequente nas seguintes dimensões: cálculo (87,5%), escrever frase (60,22%), fazer desenho (59,09%), repetir palavra depois de um intervalo de tempo (43,18%), ler e executar ordem (40,90%). O déficit também esteve presente nas dimensões repetir frase (18,18%), orientação temporal (12,5%), repetir palavra imediatamente após ser dita pelo pesquisador (10,22%), orientação espacial (4,54%) e seguir ordens (3,40%). Nenhum idoso pesquisado apresentou déficit ao nomear objetos.
Ao analisar a associação entre apoio social e déficit cognitivo no geral e nas suas dimensões, o estudo revelou associações significativas apoio social e déficit cognitivo nas dimensões orientação temporal (OR= 8,33; IC 95% 2,01-34,42), orientação espacial (OR= 25,00; IC 95% 2,34-266,48), repetir frase (OR= 4,22; IC 95% 1,13-15,69) e seguir ordem (OR= 15,00; IC 95% 1,24-180,82), conforme apresentado na Tabela 3.
Discussão
O perfil dos idosos pesquisados é semelhante com os achados de outros estudos realizados na atenção primária em saúde (Sposito,Neri e Yassuda, 2016). Neste estudo, a predominância de idosos do sexo feminino reforça os dados que mostram as mulheres com maior expectativa de vida no Brasil. Esse achado denomina-se fenômeno de feminização da velhice, pode estar relacionado ao fato de que os homens vivem menos e são mais vulneráveis a sofrer de condições crônicas como as doenças do coração, câncer e diabetes por consequência de procurar menos os serviços de saúde (Silva, Alvarenga, Barbosa e Rocha, 2010). A respeito do perfil da escolaridade, neste estudo, houve um predomínio de idosos com nível de escolaridade baixo e isso pode ser explicado pelo restrito acesso dos idosos à educação formal no passado, quando eram crianças ou adultos jovens.
Observou-se que muitos dos idosos não moram sozinhos e viver com familiares e na comunidade tem contribuição significativa para independência funcional e nas atividades básicas de vida diária (Silva, Barbosa, Pinho, Figueiredo, Amaral et al, 2018). Em contrapartida, torna-se necessário um olhar mais sensível aos idosos que moram sozinhos por parte dos profissionais de saúde. A dependência nas atividades básicas de vida diária pode funcionar como um indicador do risco de mortalidade, morar sozinho interfere negativamente tanto para um declínio na qualidade de vida quanto para o aumento das morbidades (Campos, Almeida, Campos e Bogutchi ,2016).
Evidencia-se no presente estudo a associação entre apoio social e déficit cognitivo nas dimensões orientação temporal, orientação espacial, repetir frase e seguir ordem. Enfatiza-se que a função cognitiva da orientação temporal é um marcador precoce e de alta especificidade para problemas cognitivos apresentando-se menos dependente do nível educacional do que outras tarefas, tais como atenção e cálculo, orientação espacial, linguagem e desenho (Beydoun, Beydoun, Gamaldo, Teel, Zonderman et al, 2014). Além disso, no estudo de Xavier, d´Orsi Sigulem e Ramos (2010), realizado com 1.667 idosos acima de 60 anos, verificou-se que a variável orientação temporal mostrou-se como o principal preditor modificável do risco de óbito e pode auxiliar clínicos e planejadores na promoção da saúde do idoso, objetivando-se a redução da mortalidade. O déficit na orientação espacial e em repetir frases e seguir ordens, também associados ao apoio social, estão relacionados respectivamente ao maior risco de quedas dos idosos e outras consequentes comorbidades (Xavier, d´Orsi Sigulem e Ramos, 2010; Monin, Doyle., Van Ness, Schulz, Marottoli, Birditt, &Kershaw, 2018 ).
Esperava-se que outras variáveis se mantivessem associadas ao desfecho ao nível bivariado, tais como as cinco dimensões do apoio social (tangível, emocional, interação social, afetivo e informação). Entretanto, a frequência do desfecho nas cinco dimensões do apoio social foi baixa e não se mostrou estatisticamente significante, dificultando as comparações. Apenas a variável apoio social global que se apresentou estatisticamente significante nas análises bivariadas foi incluída no modelo.
Esses achados podem ser explicados a partir do pressuposto de que a percepção em ter ou não apoio social do tipo emocional, afetivo, interação social, informação e tangível tem certo grau de complexidade, que durante a vida pode ser influenciada pela relação de solidariedade e interdependência entre gerações. A qualidade de vida que as pessoas terão ao envelhecer resulta também da maneira como as gerações posteriores irão oferecer ajuda e apoio mútuos quando necessário.
Embora devam ser consideradas as limitações do estudo, como a sequência temporal imperfeita própria dos estudos transversais e a amostragem restrita a uma única USF que reduziu o número de pesquisados, o estudo demonstrou a associação entre o apoio social e o déficit cognitivo dos idosos pesquisados.
Conclusão
Concluiu-se que o baixo apoio social está associado com o déficit cognitivo nas dimensões orientação temporal, orientação espacial, repetir frase e seguir ordem, indicando um potencial efeito protetor do alto apoio social. Esse resultado reforça a ideia da relevância das redes de apoio social na vida dos idosos, favorecendo o envelhecimento cognitivo de forma saudável.
Implicações para a Prática Clínica
Estimativas de prevalência são necessárias para avaliar o panorama de desenvolvimento do déficit cognitivo na atenção primária e auxiliar no planejamento de ações de prevenção e de manejo adequado as especificidades da população. O estudo, além de prover informações que podem fomentar discussões sobre o envelhecimento sadio, pode levar ao desenvolvimento de práticas de cuidado em rede dentro dos serviços de saúde, onde os idosos sejam estimulados ao autocuidado e ao cuidado do outro.
Assim, identificar a presença do déficit cognitivo precocemente possibilita que a prática dos cuidados em enfermagem direcione ações voltadas às individualidades da saúde mental do idoso e facilite a participação deste em seu processo de envelhecimento ativo, bem como a reinserção em grupos sociais e comunitários que promovam acolhimento e afetividade, com isso, buscar a construção de uma melhor saúde mental e qualidade de vida desta população.