Introdução
A Organização Mundial de Saúde (OMS) reconhece a saúde mental como um processo de interdependência das dimensões saúde física, mental e social refletindo-se na perceção de bem-estar. Tal facto influencia, positivamente, a consciencialização do potencial de ação de cada pessoa, da sua capacidade para fazer face a situações problemáticas, ultrapassando-as e, ainda, que cada pessoa faça uso do seu potencial funcional por forma a assumir um papel ativo de cidadania (World Health Organization, 2004).
As perturbações da saúde mental e a sua prevalência em pessoas cada vez mais jovens constitui-se um forte desafio a nível mundial pelo que a promoção da saúde mental é, cada vez mais, uma prioridade da saúde pública. Perante a situação atual de pandemia, pela COVID-19, já se perspetiva que a doença mental seja a próxima pandemia deste século o que nos leva a refletir sobre a importância de um maior investimento nas ações de promoção da saúde mental ao longo do ciclo de vida e nos vários settings.
O conceito de Saúde Mental tem evoluído para uma perspetiva positiva de onde resultam os modelos teóricos associados à Saúde Mental Positiva (SMP). Numa revisão sistemática, neste âmbito, efetuada por Muñoz et al. (2016) emergem os trabalhos de Maria Jahoda, em 1958, onde a autora apresenta um modelo de seis domínios que poderiam caracterizar a SMP das pessoas sãs ou com alguma perturbação mental. Esse modelo foi posteriormente estudado, operacionalizado e avaliado por Lluch-Canut (1999, 2002) e, fruto desta investigação, apresenta-nos a proposta de um Modelo Multifatorial de Saúde Mental Positiva (MMSMP) representado por seis fatores gerais que se interrelacionam e em que a SMP é, em si, um constructo: Satisfação pessoal (F1); Atitude pro-social (F2); Autocontrolo (F3); Autonomia (F4); Resolução de problemas e auto-atualização (F5) e, por último, Habilidades de relacionamento interpessoal (F6) (Lluch-Canut, 2020, 2015, 2002,1999). Além do MMSMP, a sua linha de investigação de cerca de 30 anos, inclui estudos relativos ao Questionário de avaliação deste modelo, o Questionário de Saúde Mental Positiva (Lluch-Canut, 1999, 2002; Sequeira et al., 2014), e do Decálogo da Saúde Mental Positiva, que apresenta dez recomendações para a SMP (Lluch-Canut, 2011). As dez recomendações para a SMP resultam de todo o percurso investigativo de Lluch-Canut, constituindo-se uma forma operativa do MMSMP em que cada recomendação tem um valor próprio podendo ser usadas individualmente ou em conjunto, sendo que quantas mais estratégias de SMP utilizarmos, diariamente, mais cultivamos a nossa Saúde Mental Positiva (Lluch-Canut, 2011, 2015, 2020; Lluch-Canut & Sequeira, 2020).
Lluch-Canut define SMP como
“un estado en que la persona es capaz de mantener um cierto nível de satisfacción personal consigo misma y com su vida, una cierta capacidad de aceptar a los demás y a los hechos diferenciales, um cierto grado de autocontrol emocional y de autonomía, es capaz de ir resolvendo los problemas que se le van presentando manteniendo una actitud de crecimiento y autoactualización y es capaz de estabelecer y mantener relaciones interpersonales satisfactorias” (Lluch-Canut, 2020, p.4 ).
Nesta perspetiva, decidiu-se investir no potencial de desenvolvimento da SMP na pessoa portadora de doença mental.
Considerou-se que o enfermeiro especialista em Saúde Mental e Psiquiatria (ESMP) tem oportunidade de influenciar, positivamente, a vida das pessoas e suas famílias auxiliando-as na tomada de decisão para a mudança (Almeida et al., 2005). No âmbito da relação psicoterapêutica, emerge um Programa de Promoção da SMP desenvolvido em contexto académico, num Curso de Pós-Licenciatura de Especialização em ESMP. Este artigo tem por objetivo descrever este programa, sob a forma de Relato de Experiência, que fez recurso à arte cénica com fins terapêuticos, utilizando o Decálogo da SMP de Lluch-Canut (2011) como guião para a encenação.
A utilização do teatro terapêutico, dirigido à pessoa com doença mental, surgiu no Brasil na década de 90 com inspiração no Teatro do Oprimido, orientado pelo teatrólogo Augusto Boal (Santos et al., 2016). Este, pode consubstanciar-se numa estratégia promotora da relação psicoterapêutica, possibilitando ao enfermeiro ESMP e, de acordo com o Regulamento nº 356 da Ordem dos Enfermeiros (OE), identificar “focos de atenção de sentimentos e atitudes que os clientes desenvolvem em direção a si e aos outros, assim como a maneira como estes são expressos” (Ordem dos Enfermeiros, 2015, p. 17040) possibilitando a adequação e/ ou reformulação do seu plano de cuidados por forma a ajustar-se às necessidades da pessoa/família de quem cuida, refletindo-se na qualidade dos cuidados que presta.
Na revisão da literatura sobre esta problemática identificamos outras experiências semelhantes, que colocam o teatro como ferramenta terapêutica dirigida à pessoa portadora de perturbações mentais (Gherardi-Donato et al., 2016; Santos et al., 2016), mas também, como uma estratégia pedagógica integrada no ensino de enfermagem (Machado et al., 2015; Rodrigues et al., 2012). Sublinha-se os trabalhos de Santos et al. (2016), que citam Caldeira (2016) relativamente ao Teatro do Oprimido na saúde mental, mencionando que no contato com a arte cénica “o sujeito vive diversas personagens e, por meio deles, experimenta outras possibilidades de vida e de existência” (p. 639) o que resulta, positivamente, no controlo das emoções, criatividade, relacionamento social, diminuição do uso de fármacos e histórias de superação da doença e, ainda, ganhos na autonomia da pessoa. Nesta perspetiva, planeou-se uma intervenção que articulasse o Teatro Terapêutico ao Decálogo da Saúde Mental Positiva. Este artigo tem, assim, por objetivo descrever um relato de experiência decorrente de um programa de Saúde Mental Positiva desenvolvido num serviço de internamento de agudos de um hospital da Região Norte de Portugal.
Métodos
Trata-se de um relato de experiência de natureza qualitativa, descritiva, em que a revisão da literatura sobre o MMSMP e a relevância do teatro na saúde mental foram palco para esta experiência pedagógica e de aprendizagem. O processo de planeamento e a concretização do programa de SMP, que se descreve neste artigo, fez recurso a metodologias participativas e ativas com contributos para a práxis metodológica da área disciplinar de Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiatria, em contexto clínico.
A experiência foi vivenciada num internamento de agudos com recurso à observação participada e registo contínuo, em diário de bordo, da análise dos comportamentos dos utentes/atores durante as sessões.
A ideia surgiu da visualização e análise de um documentário sobre a Saúde Mental “Pára-me de repente o pensamento” do autor Pelicano (2014), que decorre no Centro Hospitalar Conde de Ferreira. Neste, é documentado o convívio entre o ator, Miguel Borges, e alguns residentes ou frequentadores das oficinas de dia deste Centro Hospitalar. A constatação das emoções positivas evidenciadas pelos utentes/atores deste documentário, levou a que se procurasse transferir esta experiência para a prática clínica e questionou-se: Será que o teatro terapêutico, pela encenação do Decálogo da SMP, poderá contribuir para o potencial de recuperação, para o bem-estar e saúde mental dos utentes internados?
Surgiu, assim, um Programa de SMP com intervenções estruturadas dirigido a uma população de 24 utentes internados. Os utentes foram convidados a participar, conforme os seguintes critérios de inclusão definidos para esta intervenção: presença de um ou mais diagnósticos de enfermagem identificados, segundo a CIPE 2015 (Conselho Internacional de Enfermagem, 2016): Ansiedade (Cod:10002429), Humor Depressivo (Cod:10005784), Baixo Autocontrolo (Cod:10027469) e Comportamento interativo comprometido (Cod:10027430). Como critérios de não inclusão neste tipo de programas, definiu-se os seguintes diagnósticos de enfermagem presentes no momento das sessões, segundo a mesma classificação/ fonte: Agitação psicomotora (Cod:10002035), Alucinação (Cod:10022500), Delírio (Cod:10022091) e Confusão (Cod:10023633).
Este programa foi promovido e dinamizado pela primeira autora deste artigo, enquanto estudante do curso de ESMP e contou com a participação ativa e conjunta dos utentes internados, da enfermeira ESMP (responsável pelas dinâmicas de grupo desenvolvidas diariamente no serviço) e de seis estudantes do 4º ano do Curso de Licenciatura em Enfermagem, na construção do guião e na encenação do Decálogo da SMP que prevê as seguintes recomendações: Recomendação nº1: ”Valorizar positivamente as coisas boas que temos na nossa vida”; Recomendação nº2: “Colocar carinho nas atividades da vida quotidiana”; Recomendação nº3: “Não ser muito duro connosco nem com os outros”; Recomendação nº4: “Não deixar que as emoções negativas bloqueiam as nossas vidas”; Recomendação nº5: “Tomar consciência dos bons momentos que passam na nossa vida quando estão a acontecer”; Recomendação nº6: “Não ter medo de chorar e sentir”; Recomendação nº7: “Procurar espaços e atividades para relaxarmos mentalmente”; Recomendação nº8: “Tentar resolver os problemas que vão surgindo”; Recomendação nº9: “Cuidar das nossas relações interpessoais” e a Recomendação nº10: “Não esquecer de pintar a vida com humor para que esta tenha mais cor”.
Planeou-se nove sessões, negociadas com os utentes e dirigidas ao planeamento da Festa de Natal, estimulando decisões consensuais entre todos os participantes envolvidos. O programa contou com intervenções de Arteterapia, Musicoterapia e Escrita criativa, que decorreram durante três sessões e que antecederam a experiência de encenação. A par dos objetivos terapêuticos inerentes a estas intervenções, revê-se o seu contributo na construção da relação terapêutica, promovendo a adesão e envolvimento dos utentes às sessões posteriores. Já o Teatro terapêutico, com a encenação do Decálogo da SMP, decorreu ao longo de seis sessões, num período de três semanas, tendo cada sessão uma duração média de noventa minutos. A intervenção dirigida à encenação do decálogo da SMP (Lluch-Canut, 2011), apresentada neste artigo, procurou seguir o Modelo procedimental das intervenções psicoterapêuticas (Modelo C - Programa) inscrito no Padrão de Documentação em Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiátrica da Ordem dos Enfermeiros (Ordem dos Enfermeiros, 2018), na seguinte sequência:
1ª sessão: Leitura, análise e reflexão das dez recomendações de SMP inscritas no Decálogo.
2ª sessão: Construção do guião, onde se desenharam os vários cenários adequados a cada recomendação, para a peça de teatro baseada no relato de experiências vivenciadas e/ou observadas ou fruto do imaginário dos utentes e atribuição das personagens aos utentes/atores.
3ª sessão: Ensaio da peça teatral.
4ª sessão: Preparação do ambiente e ensaio geral.
5ª sessão: Representação da encenação do Decálogo da SMP na Festa de Natal.
6ª sessão: Análise e avaliação desta experiência, por parte dos utentes.
Os objetivos terapêuticos encontravam-se inscritos no Programa de atividades estruturadas de intervenções psicoterapêuticas em grupo do serviço, de que são exemplo: estimular a expressão de emoções, promover o autoconhecimento, reduzir níveis de ansiedade, estimular a imaginação e criatividade e, ainda, promover a discussão em grupo.
Como indicadores de avaliação deste programa definimos: (i) adesão e participação dos utentes ao programa; (ii) contributos da encenação do Decálogo SMP (Lluch-Canut, 2011) na conquista dos seis fatores componentes do MMSMP (Lluch-Canut, 2002, 1999); iii) avaliação na perspetiva dos atores e iv) alcance de objetivos terapêuticos. Estes indicadores de avaliação serão foco de análise e reflexão no capítulo que se segue.
Resultados
Adesão e participação dos utentes
Constatou-se que os utentes aderiram ao programa, focaram-se na leitura, análise e reflexão das dez recomendações da SMP e partilharam experiências vivenciadas/observadas/ou recriadas por eles, para cada uma das recomendações do decálogo. Em resultado, emerge a elaboração de um guião com uma diversidade de cenas teatrais representadas na peça de teatro.
Considerou-se que este indicador de avaliação foi alcançado, registando-se o envolvimento de todos os utentes internados na Festa de Natal. Acresce que participaram na totalidade das sessões, de forma crítica e ativa, um total de vinte e um utentes, traduzido numa média de nove utentes por sessão. A não participação de três utentes é justificada pelo facto de um utente ter sido admitido no serviço, no dia da festa, outra utente, por ter patologia orgânica agravada e ter sido transferida de outro serviço e, por fim, um utente com alucinação cenestésica persistente. Participaram, ainda, neste evento uma enfermeira ESMP e estudantes do CLE. A apresentação foi feita pela estudante do curso de PLESMP e por um utente.
A análise dos resultados de Carpentier et al. (2019), sobre o(s) conceito(s) de participação, permite concluir que a participação ativa e democrática dos utentes na tomada de decisão das cenas a incluir no guião do Decálogo da SMP, estimulou o envolvimento de todos os atores e que, pela interação social, resultou num processo transformativo destes e na satisfação grupal.
Constatou-se que, as recomendações do Decálogo da SMP com maior número de cenas representadas na peça de teatro, foram a Recomendação nº 7 “pesquisa espaços e atividades para relaxar mentalmente” (com sete cenas), envolvendo utentes (n=8) e estudantes (n=6), e as Recomendações dois “colocar carinho nas atividades da vida diária” e a nove “cuidar das nossas relações tanto da esfera pessoal e íntima como no trabalho”, com três cenas cada. Torna-se, ainda, oportuno referir que as Recomendações oito “tentar resolver os problemas quando eles surgirem” e nove “Cuidar das nossas relações interpessoais” resultaram em cenas que mais divertiram atores e espectadores, na medida em que se viram retratados pelas cenas humoristas e por representarem situações vivenciadas em “horas de ponta” no trânsito e com os vizinhos.
Contributos da encenação do Decálogo SMP
Analisando os resultados, na perspetiva dos seis fatores que integram o MMSMP de Lluch-Canut (1999), constatou-se que a encenação do Decálogo da SMP contribuiu para o alcance destes fatores e dos seus critérios definidores, nomeadamente:
F1 - Satisfação pessoal. Pela concretização da encenação e a expressão de emoções positivas como a felicidade, a alegria, o afeto, entusiasmo, gratidão, humor e satisfação, que se refletiram na qualidade dos vários cenários recriados para o Decálogo da SMP.
F2 - Atitude pro-social. Constatou-se que cada relato de experiência foi escutado com atenção, com respeito pelos sentimentos e opiniões expressos, e aceites as propostas de melhoria por eles apresentadas. Considerou-se, ainda, que foi fácil obter consensos no grupo.
F3 - Autocontrolo, pois conseguiram gerir os níveis de ansiedade e stress inerente à exposição ao “público”, ao que se acresce gestão emocional nos relatos de acontecimentos vivenciados.
F4 - Autonomia. Foi possível verificar autoconfiança no papel atribuído nas cenas e notória criatividade no desenho das que constituíram o guião.
F5 - Resolução de problemas e Auto-atualização. Assistiu-se à capacidade de análise e reflexão do grupo, relativamente aos problemas do quotidiano que relataram. Perante os mesmos, procuraram encontrar soluções para as ultrapassar. A alta de alguns utentes (antes da encenação do Decálogo da SMP) e a ausência de um utente no ensaio geral e encenação, constituíram-se oportunidades de avaliação da capacidade de improviso, grau de envolvimento e compromisso dos utentes que, com eficácia, conseguiram fazer face ao imprevisto/ “problema”, reorganizando papeis e assumindo “novas” personagens, revelando capacidade de adaptação à mudança e flexibilidade.
F6 - Habilidades de relacionamento interpessoais. Este fator foi, comparativamente aos demais, o mais conseguido, na medida em que foi passível de identificar espírito de equipa e coesão de grupo, com manifestações de cumplicidade e respeito mútuo. O facto de relatarem vivências pessoais, possibilitou a habilidade de expressarem sentimentos e emoções, com significado.
Avaliação na perspetiva dos atores
Ainda que a avaliação fosse on-going, em cada sessão, a última foi exclusiva à avaliação do programa. Os atores partilharam aos seus novos colegas de internamento esta experiência, que caracterizaram, nas suas palavras, de “feliz” e “inesquecível” e que possibilitou “estabelecer laços de amizade”. Quiseram, ainda, sublinhar a relevância dos momentos vivenciados e decidiram eleger a recomendação que lhes foi mais significativa, a Recomendação número um “Valorize positivamente as coisas boas da vida!” que ficou exposta no serviço para ser lida pelos utentes internados, profissionais de saúde e familiares, conforme propuseram.
Alcance de objetivos terapêuticos
Constatou-se alcance dos objetivos terapêuticos definidos no programa de intervenções em Saúde Mental e Psiquiátrica do serviço, nomeadamente, o autoconhecimento, a imaginação e criatividade e a diminuição dos níveis de ansiedade. Destaca-se os seguintes objetivos terapêuticos:
Expressão de emoções: através do relato de experiências vivenciadas, partilhadas e discutidas em grupo, sobre as recomendações da SMP.
Estimulação cognitiva: pela promoção de competências de atenção e concentração na leitura, aprendizagem e transferência das dez recomendações da SMP para o quotidiano e a memória remota pelo relato de experiências/ vivências do passado, datas e objetos característicos da época e vivencias natalícias.
Estimulação Psicomotora: suportado no facto da representação teatral implicar habilidade de coordenação motora e expressão corporal dos utentes/atores, não descurando a preparação do ambiente e criação do cenário.
Socialização e cooperação grupal justificadas pela discussão dos participantes.
Em síntese, na Tabela 1, destacam-se os principais resultados obtidos neste relato de experiência, considerando os indicadores de avaliação definidos para este programa de SMP.
Discussão
A análise dos resultados revela evidência de que este programa, em que o teatro é utilizado como estratégia terapêutica (Santos et al., 2016) e tendo por guião as dez recomendações da SMP (Lluch-Canut, 2011), permitiu alcançar resultados sensíveis aos cuidados de enfermagem especializados em SMP. Tal facto, reforça a ideia de que o MMSMP (Lluch-Canut, 1999) pode constituir-se relevante no alcance de objetivos terapêuticos, dirigidos à pessoa com doença mental internada num serviço de Psiquiatria e que apresentem diagnósticos de enfermagem inscritos no Padrão de Documentação em Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiatria (Ordem dos Enfermeiros, 2018).
Destaca-se a elevada adesão e participação dos doentes internados (n=24), sendo, ainda, de realçar os ganhos em saúde que se observaram nos doentes que adotaram outras formas de participação (Carpentier et al., 2019). Esta experiência exigiu flexibilidade e negociação entre enfermeiros e utentes e foi complementada por intervenções individualizadas com os doentes que não reuniam critérios de inclusão no grupo, de acordo com as necessidades evidenciadas e respetivos diagnósticos de enfermagem.
Sublinha-se a participação de alguns utentes que, considerando o(s) diagnóstico(s) de enfermagem identificado(s), observou-se resultados sensíveis às intervenções autónomas de enfermagem de SMP e que, pela sua relevância, decidiu-se partilhar neste artigo.
Uma das situações que marcou este programa diz respeito a um utente com os diagnósticos de enfermagem Delírio de negação e Alucinação (cenestésica) (Ordem dos Enfermeiros, 2018) e diagnóstico médico de Psicose Esquizofrénica que, não participando nas sessões anteriores à encenação do decálogo, conforme critérios de não inclusão definidos, mostrou interesse em assistir à sessão de ensaio geral e, no espetáculo, optou por sentar-se junto ao palco e vivenciar a encenação completamente abstraído do seu delírio, com foco no teatro. Respondeu com a manifestação de emoções positivas, sorrindo. Neste sentido, Santos et al. (2016, p.639) citam os estudos de Boal relativamente à utilização do teatro do oprimido dirigido à saúde mental, no Centro de Teatro do Oprimido, questionando-se de que forma “o delírio criativo da atividade artística poderia dialogar com delírios considerados patológicos”.
Noutra perspetiva, outra utente com o diagnóstico de enfermagem Humor Eufórico, Comportamento Compulsivo e Autocontrolo comprometido (Ordem dos Enfermeiros, 2018), e com o diagnóstico médico de Doença Bipolar, manteve um papel ativo em todas as sessões: leu o Decálogo em espanhol (para um utente internado desta nacionalidade, integrando-o no grupo) e ofereceu-se para participar na maioria das cenas. Tal facto permitiu-lhe desenvolver, gradualmente, habilidades de autocontrolo uma vez que os exercícios implicados na atividade teatral promovem o prazer e têm potencial de “ampliar a capacidade de compreensão de si e do outro” (Santos et al., 2016, p.639).
Perante o mesmo diagnóstico de enfermagem Autocontrolo comprometido (Ordem dos Enfermeiros, 2018), e diagnóstico médico de Perturbação do Desenvolvimento Intelectual, um utente jovem assumiu a apresentação do espetáculo, respondendo com grande satisfação e sentido de responsabilidade, preocupando-se com a forma como iria apresentar-se ao público, com a preparação do cenário e construção do guião de apresentação do evento.
No desenrolar do programa vivenciou-se uma situação complexa, de uma utente recém-internada, com o diagnóstico de enfermagem de Humor Depressivo e Luto Disfuncional (Ordem dos Enfermeiros, 2018), diagnóstico médico de Depressão Major, pela perda de um filho. Apresentava anedonia e labilidade emocional, contudo, foi possível observar exteriorização de sentimentos de felicidade e bem-estar ao participar na cena representativa da Recomendação nº 2 “Colocar carinho nas atividades da vida quotidiana” do Decálogo de SMP (Lluch-Canut, 2011). Nesta cena um jovem utente manifesta afeto e carinho pela idosa oferecendo-lhe uma flor. A expressão desta emoção positiva registou-se além do momento da encenação, com manifestação de humor eutímico.
Noutra utente, com o diagnóstico de enfermagem de Humor Depressivo (Ordem dos Enfermeiros, 2018) e diagnóstico médico Depressão Major, com manifestação de anedonia, foi possível registar a sua participação ativa em todas as sessões o que resultou em humor eutímico no final do programa. Depreende-se que pelo facto de ter experienciado diversidade de papeis, vivenciando diferentes personagens, possibilitou “descobrir” outras possibilidades de vida (Santos et al., 2016) e que a utente procurou incorporar na sua vida, numa perspetiva otimista de futuro, constituindo-se num dos critérios definidores do F1 Satisfação Pessoal do MMSMP (Lluch-Canut, 1999).
No final da encenação, de forma espontânea, os atores abraçaram-se em resposta aos laços que criaram e pela concretização e sucesso da peça teatral. Os sorrisos que expressaram validam a importância de “colocarmos humor nas nossas vidas”, tal como nos sugere a décima recomendação da SMP (Lluch-Canut, 2011). Mais se acresce que, o teatro, porque assenta na “diversão e no prazer, tem o poder de encantar, fazer rir e chorar, a partir do debate e reflexão de temas importantes, expondo a realidade do mundo e dos homens” e ainda que, pela dramatização, se “consegue alterar a rotina e impor desafios que só podem ser superados em grupo” (Machado et al., 2015, p. 125) tal como foi vivenciado nesta experiência que envolveu utentes, enfermeiros e estudantes de enfermagem.
A análise dos registos de enfermagem no Sclínico (Sistema de informação evolutivo que prevê a uniformização dos registos clínicos, centrada no doente e comum aos prestadores de cuidados de saúde), relativamente à participação e resposta comportamental da pessoa portadora de doença mental a este tipo de programas, permitiu reconhecer o alcance de resultados de enfermagem, nomeadamente, para o diagnóstico de enfermagem potencial de recuperação da pessoa com doença mental. Os registos de enfermagem são, por este motivo, imprescindíveis no decurso deste processo pelo facto de documentarem os indicadores de resultado para cada sessão, assim como, a verificação dos resultados de enfermagem definidos para o final do programa de intervenções psicoterapêuticas.
Como constrangimento salienta-se o facto do programa não ter sido planeado por forma a avaliar-se a SMP dos participantes, antes e após sessões, com recurso ao Questionário de avaliação da SMP de Lluch-Canut (1999, 2002) e validado, em Portugal, por Sequeira et al. (2014) pelo que se considera relevante que futuros programas, com intervenções autónomas desta natureza e área de especialização, sigam a estrutura apresentada por Teixeira et al. (2020) e Lluch-Canut (2020) para programas de promoção da SMP.
Conclusão
A encenação do Decálogo da SMP foi eficaz na expressão de emoções positivas e resultou na satisfação e bem-estar de todas as pessoas envolvidas: utentes, enfermeiros e estudantes. Revelou-se uma experiência significativa, pois contribuiu para o alcance do equilíbrio, que os seis fatores do MMSMP oferecem, pelo que se sugere um maior investimento neste tipo de intervenções psicoterapêuticas por parte do enfermeiro ESMP.
Iniciativas que promovam a valorização, reconhecimento e divulgação das capacidades criativas da pessoa com doença mental devem ser incentivadas e fazer parte da prática clínica, pois contribuem para o autoconhecimento, autoestima e bem-estar destas pessoas. A encenação contribuiu, ainda, para a redução do estigma em saúde mental, uma vez que nesta experiência não existiram doentes, enfermeiros e estudantes, apenas pessoas.
Agradecimentos
As autoras deste artigo agradecem ao serviço o apoio na concretização deste programa e, especialmente, aos utentes envolvidos uma vez que sem estes não seria possível esta experiência. À doutora Lluch-Canut, agradecem pelo seu legado na promoção da SMP e, porque assim que soube desta experiência, incentivou e apoiou a divulgá-la aos pares.