A saúde mental na infância e adolescência é inequivocamente reconhecida como uma prioridade e um desafio nas políticas de saúde pública. Há uma preocupação crescente com a área da saúde mental infanto-juvenil espelhada não só nas recomendações nacionais como nas recomendações europeias. Apostar na promoção da saúde mental e na prevenção da doença, principalmente nesta fase da vida, traz não só benefícios como poupança a longo prazo, nomeadamente nos anos de vida perdidos ajustados à incapacidade em adulto (Disability Adjusted Life Years [DALYs]). Em Portugal, sabe-se que entre os 5 e os 14 anos de idade, entre doenças com maior impacto na qualidade de vida estão também incluídas as perturbações mentais e comportamentais (Institute of Health Metrics and Evaluation, 2019; Conselho Nacional de Saúde [CNS], 2018). Não obstante, os dados epidemiológicos sobre a saúde mental de crianças e adolescentes na Europa, e especificamente em Portugal, são muito limitados. Torna-se assim fundamental que se constitua como prioridade a investigação em saúde mental na infância e adolescência de forma a possibilitar a análise detalhada e o planeamento de ações dirigidas às necessidades encontradas.
A evidência científica tem vindo a comprovar que muitas das patologias psiquiátricas no adulto têm início antes dos 18 anos de idade. Juntando este dado à prevalência dos problemas de saúde mental nesta faixa etária e às comorbilidades muitas vezes associadas, facilmente se reconhece o custo económico e social que a doença mental tem (Ministério da Saúde [MS], 2017). Destaca-se, assim, a importância da intervenção na saúde mental o mais prematuramente possível e em idades mais precoces.
A fase da gravidez e da primeira infância é um momento-chave para se iniciar a promoção da saúde mental e prevenir problemas futuros, principalmente quando existem fatores de risco familiares, como violência familiar, toxicodependência, doença mental materna, entre outros. Promover o desenvolvimento de competências parentais e apoiar as famílias é essencial para o crescimento harmonioso da criança, estimulando precocemente o estabelecimento de uma vinculação segura e prevenindo o risco de futuras dificuldades comportamentais, emocionais, sociais e de aprendizagem (CNS, 2019; Direção-Geral da Saúde [DGS], 2006). Sabe-se que as intervenções destinadas a apoiar e encorajar o desenvolvimento de competências parentais são fundamentais para quebrar ciclos transgeracionais de parentalidade desadequada e, deste modo, promover um ambiente adequado e promotor da saúde mental.
O estudo Health Behaviour in School-Aged Children (HBSC), estudo colaborativo da Organização Mundial de Saúde que pretende estudar os estilos de vida dos adolescentes e os seus comportamentos nos vários cenários das suas vidas, nos seus dados de 2018, demonstra que a saúde mental é um problema relevante nos estudantes portugueses. Estes referiram sintomas de mal-estar, por vezes mesmo tristeza extrema, desregulação emocional e preocupações intensas. Cerca de 27,6% dos adolescentes sentia-se preocupado todos os dias, várias vezes por dia, 27,6% referia que nunca ou quase nunca sente que as coisas lhe correm como queriam, e 26,2% nunca ou quase nunca se sentia confiante com a sua capacidade para lidar com problemas pessoais. Dos jovens inquiridos, 9,2% disseram sentir-se tristes quase todos os dias e 5,9% revelaram tristeza extrema (os valores mais elevados de todas as edições do estudo). De referir ainda que 51,8% considera-se um estudante com pouco ou nenhum sucesso académico e que os inquiridos relatam que diariamente se sentem nervosos (13,6%), irritados (12,6%), tristes (9,2%), com medo (6,3%). Do seu conhecimento, 11,2% tomaram pelo menos uma vez no último mês medicação para a ansiedade, 9% para as dificuldades de adormecer, 6,5% para a tristeza e 6% para défice de atenção/hiperatividade, e 19,6% refere ainda ter tido comportamentos autolesivos pelo menos uma vez no último ano (Matos & Equipa Aventura Social, 2018).
Quando se trabalha na área da saúde mental é essencial ter sempre em consideração a estreita relação entre os fatores de risco de desenvolvimento de doença mental e os fatores protetores. Os fatores de risco podem estar associados à criança, à família e ao contexto/eventos de vida. Sabe-se que os fatores de risco são cumulativos. Quantos mais fatores de risco forem identificados, maior a probabilidade de se desenvolver problemas de saúde mental. São fatores de risco muito relevantes: perdas ou separações, em resultado de morte, separação parental/divórcio, hospitalização, perda de amizades, desmembramento familiar; mudanças na vida, como o nascimento de um irmão, mudança de casa ou de escola; eventos traumáticos, como o abuso, violência, acidentes, conflitos ou desastres naturais; aparecimento de doenças crónicas, incluindo diabetes tipo 1, entre outras. Para equilibrar, quantos mais fatores de risco, mais fatores protetores serão necessários, os chamados fatores de resiliência. Estes podem também ser específicos da criança, da família ou do contexto. Os fatores protetores estão relacionados com competências de comunicação da criança, o desenvolvimento de relações familiares estáveis, seguras e protetoras, e com a existência de uma comunidade com redes de suporte, escolas inclusivas e capazes de apoiar os estudantes do ponto de vista escolar e extracurricular (MS, 2017). É na promoção destes ambientes protetores que a escola tem um papel fundamental, promovendo a autoestima e a confiança das crianças/jovens, uma crença na capacidade em lidar com a mudança e adaptação, e uma série de abordagens de resolução de problemas sociais, assim como são também uma forte rede de suporte quando estão presentes fatores de risco.
É desta forma fácil de compreender a importância de as equipas na saúde mental infanto-juvenil serem multidisciplinares e trabalharem em rede. Os problemas de saúde mental nesta faixa etária têm repercussões não só a nível pessoal, como social, académico e muitas vezes judicial. Os problemas de saúde mental podem aumentar o risco de delinquência, problemas com a justiça, abuso de substâncias, problemas disciplinares, absentismo, retenção ou abandono escolar. Os profissionais de saúde que trabalham na área da saúde mental infanto-juvenil não podem trabalhar sozinhos. Uma estreita articulação intersectorial entre a comunidade educativa, equipa de saúde escolar, cuidados de saúde primários, cuidados de saúde diferenciados e a criança/adolescente e sua família tem de ser mantida.
O Programa Nacional de Saúde Escolar (2015) tem prevista a área da saúde mental como prioritária, destacando a necessidade de se criarem projetos de desenvolvimento de competências socioemocionais; promoção da autoestima, autonomia e resiliência; prevenção de comportamentos de risco; prevenção da violência e do bullying; combate ao abandono e exclusão escolar; prevenção de comportamentos aditivos com e sem substância (DGS, 2015). As necessidades identificadas são comuns às também identificadas no Plano Nacional para a Saúde Mental, assim como no Plano de Ação em Saúde Mental 2013-2020 da Organização Mundial de Saúde. Pretende-se, essencialmente, a criação de ambientes favoráveis ao fortalecimento dos fatores protetores e de resiliência das crianças e adolescentes, seja numa fase mais precoce de promoção de relações parentais seguras e estáveis; na intervenção precoce através da identificação, prevenção e tratamento de problemas emocionais e comportamentais; e na criação de programas ou redes de proteção da comunidade (abuso infantil, violência,…) (World Health Organization [WHO], 2013; Coordenação Nacional para a Saúde Mental [CNSM], 2008).
Infelizmente, o acesso aos serviços especializados de saúde mental na infância e adolescência não é equitativo em todo o país. Há uma grande escassez de profissionais especializados nesta área que se traduz em zonas do país com poucos recursos humanos, equipas que não se conseguem multidisciplinares e que, consequentemente, vão invalidar uma intervenção atempada e de qualidade. A distribuição geográfica de enfermeiros Especialistas em Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiátrica (EESMP) predomina também no litoral, entre Lisboa e Porto, conduzindo a uma escassez nas zonas do interior e do Sul do país. Concentra-se a grande maioria nos hospitais e há uma grande percentagem de enfermeiros EESMP a desempenhar cuidados gerais e não cuidados especializados (Ordem dos Enfermeiros, 2020). Ora, estes dados são contraditórios ao que se pretende, que é uma distribuição uniforme pelo país, com enfermeiros EESMP na comunidade, nas escolas e nos cuidados de saúde primários a desenvolverem o seu relevante papel de promoção, avaliação e intervenção precoce.
A Comissão Técnica de acompanhamento da reforma da saúde mental, na sua avaliação do Plano Nacional de Saúde Mental 2007-2016, com propostas prioritárias para a extensão a 2020, refere que em Portugal existem vários obstáculos, nomeadamente: escassos dados epidemiológicos sustentados em estudos científicos; desigualdade na acessibilidade aos cuidados de saúde mental; escassez de camas de internamento; poucos serviços locais de Saúde Mental Infantil; ausência de estruturas de reabilitação psicossocial; escassez de recursos humanos; inadequação do modelo de financiamento dos Serviços de Saúde Mental (privilegia-se o número de consultas e internamentos realizados, não favorecendo o desenvolvimento de programas de promoção e prevenção, nem a constituição de parcerias e de processos de articulação que promovam a formação e supervisão de outros profissionais, que possam desenvolver a sua atividade na área da saúde mental da infância e adolescência, ao nível dos Cuidados de Saúde Primários, escolas e outras estruturas da comunidade) (MS, 2017, p. 54).
Ser enfermeiro especialista nesta área traz muitos desafios. Começando pelo cliente de cuidados, que não é só a criança/adolescente, mas também a sua família. Outro desafio é o conhecimento e a articulação com a rede com a qual necessita de trabalhar. A discussão, partilha e referenciação tem de ser bidirecional e muitas vezes é necessária intervenção complementar em paralelo. E, como abordado anteriormente, o papel do enfermeiro EESMP pode passar também pela formação de outros profissionais, promovendo o desenvolvimento de competências na promoção de saúde mental e deteção/encaminhamento precoce de situações de risco. Em qualquer contexto em que esteja um enfermeiro EESMP deve este promover a literacia em saúde mental, assim como combater o estigma. O grande foco deve ser a promoção da saúde mental e o desenvolvimento de projetos, particularmente projetos e programas validados e replicáveis e, por outro lado, a intervenção deve ser dirigida à criança e adolescente, mas também à sua família e comunidade.
Importa não esquecer ainda que na saúde mental infanto-juvenil os diagnósticos são muitas vezes difíceis de efetuar. É necessário contextualizar a sintomatologia e perceber a sua evolução. Pode algumas vezes ser situacional e de adaptação a uma nova realidade, mas pode outras vezes ser de evolução prolongada e preditor de doença mental na fase adulta. É importante estar atento a sinais como a diminuição do rendimento escolar, o desinteresse na aprendizagem, o isolamento, as alterações de comportamento, uma vez que são sinais de sofrimento psicológico, sofrimento esse que é necessário avaliar com consequente programação de uma intervenção breve ou prolongada no tempo.