Introdução
O sentido de humor tem sido estudado como uma estratégia de coping perante a adversidade, ajudando a lidar com situações difíceis (Santos, Sousa, Carvalho, Severino & José, 2016; Sousa & José, 2016; Sousa et al., 2018.; Sousa, et al., 2019). Além disso, ter sentido de humor ou “usar o humor” tem sido considerado benéfico para lidar com o stress, melhora as interações sociais, a satisfação com a vida e o bem-estar, aumenta a criatividade, assim como, diminui a depressão, a ansiedade e emoções negativas (Ruch, Hofmann, Rusch & Stolz, 2018; Sousa & José, 2016; Sousa et al., 2018).
Na realidade, o humor é um importante mecanismo de coping, que permite lidar com situações de stress e a sua relação com a autoeficácia e apoio social sugerem que o sentido de humor pode desempenhar um papel importante no reforço de abordagens auto-eficazes para a gestão da vida (Brcic, Suedfeld, Johnsin, Huynh & Gushin, 2018).
Nos contextos desportivos, alguns estudos têm salientado as diferenças individuais nas estratégias de coping perante adversidades (Dias, Cruz & Fonseca, 2012). No percurso da excelência no desporto surgem também fatores pessoais e contextuais (Matos, Cruz & Almeida, 2017). Nas características individuais, realçam-se as competências psicológicas de confronto dos atletas quando se preparam para a competição.
Por outro lado, o bem-estar subjetivo tem sido considerado uma variável importante na saúde mental dos atletas em geral (Lundqvist, 2011) e nos atletas de elite (Lundqvist & Sandin, 2014). Estudos recentes têm enfatizado a abordagem benéfica do uso do humor na psicologia do desporto aplicada, particularmente na melhoria da relação entre o treinador e o atleta (Pack, Hemmings, Winter & Arvinen-Barrow, 2019). Contudo, a relação entre estas variáveis necessita de ser melhor compreendida para desenhar intervenções em contextos de saúde mental positiva. De acordo com Lluch (2003), a saúde mental positiva refere-se a um estado de funcionamento ótimo do ser humano o que mostra a relevância da promoção das qualidades da pessoa na otimização do seu potencial. Recentemente, tem aumentado o interesse da investigação na área da saúde pelos conceitos da saúde mental positiva (efeito positivo, bem-estar, benefício), apontando para a promoção da saúde mental positiva e capacitação das pessoas para lidar com os acontecimentos de vida negativos. Neste contexto, o objetivo deste estudo foi verificar a relação entre sentido de humor, o bem-estar subjetivo e as competências de coping desportivo num grupo de atletas.
Métodos
Estudo transversal e correlacional, realizado numa amostra não probabilística de 47 participantes, cujo critério de inclusão era pertencer ao grupo de atletas de atletas de triatlo e moutain bike em início de competição. Os instrumentos utilizados foram: i) a Athletic Coping Skills Inventory-28 (Cruz, 1995) com 28 itens e 7 subescalas tipo likert de 3 pontos que variam entre o zero (quase nunca) e 3 (quase sempre), ii) a versão portuguesa da Multidimensional Sense of Humor Scale (MSHS) (José e Parreira, 2008) com 24 itens e 5 subescalas de tipo likert de 5 pontos, variando entre 1 (concordo totalmente) e 5 (discordo totalmente); iii) a Escala de Felicidade Subjetiva (SHS) de Lyubomirsky e Lepper (Pais-Ribeiro, 2012) com 4 itens numa escala de likert de 7 pontos, que varia entre 1 (não muito feliz) a 7 (muito feliz) e iv) a Positive and Negative Affect Schedule (PANAS) (Galinha e Pais-Ribeiro, 2005) com 20 itens (10 emoções positivas e 10 negativas) numa escala de likert de 5 pontos, que varia entre 1 (nada) e 5 (extremamente) para indicar em que medida sentiu cada uma das emoções.
Na análise dos dados, utilizou-se estatística descritiva (média, desvio-padrão, valor mínimo e valor máximo) e coeficiente de correlação de Spearman (dado que a amostra é de 47 participantes e não segue a distribuição normal); foi calculado o alfa de Cronbach para cada dimensão da escala utilizada, para demonstrar a validade e fiabilidade das medidas; o nível de significância adotado foi p<0,05.
Os princípios éticos constantes na declaração de Helsínquia foram respeitados, sendo garantida a confidencialidade dos dados e o anonimato. Requereu-se a autorização dos autores para utilizar as escalas e da comissão de ética da Atlântica, Escola Universitária de Ciências empresariais, Saúde, Tecnologias e Engenharia para a realização do estudo. A cada pessoa da amostra, após esclarecimento sobre os objetivos do estudo, processo de colheita de dados e confidencialidade, solicitou-se o consentimento livre e esclarecido e a participação voluntária, consoante o princípio da autonomia. Os dados foram recolhidos no início da época de competição.
Resultados
Os resultados indicaram que a amostra de 47 atletas de triatlo e mountain Bike, é caracterizada por 41 (87,5%) homens e seis mulheres. Em média têm 25,2 anos (DP=14,7), a maioria possui o ensino básico/secundário (80,8%), são solteiros (68,1%), não fumadores (100%) e não apresentam doenças crónicas (85,1%).
Da tabela 1 constam os resultados relativos às cinco subescalas do Humor (HSHS), Afetividade (PANAS) e Escala de Felicidade Subjetiva (SHS).
Dimensões | nº itens | Min | Max | M (n.º itens/M) | DP |
---|---|---|---|---|---|
Produção e Uso Social do Humor (MSHS) | 12 | 22 | 58 | 39,68 (3,30) | 8,44 |
Humor Adaptativo (MSHS) | 4 | 4 | 20 | 13,70 (3,42) | 3,68 |
Objeção ao Uso do Humor (MSHS) | 3 | 7 | 15 | 13,09 (4,36) | 1,80 |
Atitude Pessoal Face ao Humor (MSHS) | 3 | 10 | 15 | 14,02 (4,67) | 1,48 |
Apreciação do Humor (MSHS) | 2 | 2 | 10 | 8,49 (4,24) | 1,78 |
Afetividade Positiva (PANAS) | 10 | 13 | 43 | 29,72 (2,97) | 7,98 |
Afetividade Negativa (PANAS) | 10 | 10 | 28 | 13,06 (1,30) | 4,48 |
Felicidade Subjetiva (SHS) | 4 | 11 | 28 | 21,81 (5,45) | 3,68 |
Legenda: MSHS: Multidimensional Sense of Humor Scale; PANAS: Positive and Negative Affect Schedule; SHS: Subjective Happiness Scale
Analisando a tabela 1, observou-se que os valores médios obtidos nas dimensões do Humor apresentaram-se acima do ponto médio da escala. Destacam-se as dimensões com médias mais elevadas: Objeção ao Uso do Humor e a Atitude Pessoal Face ao Humor.
No que se refere à dimensão da Afetividade Positiva, a média é superior à afetividade negativa, ou seja, os participantes manifestam sobretudo entusiasmo com a vida e menos intensidade relativamente ao sentir-se indispostos ou perturbados. Relativamente à Felicidade Subjetiva obteve-se um valor médio de felicidade.
Na tabela 2 apresentam-se os resultados relativos às dimensões de competências desportivas.
Dimensões | nº itens | Min | Max | M | DP |
---|---|---|---|---|---|
Confronto com a Adversidade | 4 | 1 | 11 | 6,26 | 2,48 |
Rendimento sob Pressão | 4 | 0 | 12 | 6,30 | 3,46 |
Ausência de Preocupações | 4 | 0 | 12 | 6,04 | 3,19 |
Concentração | 4 | 2 | 11 | 7,45 | 2,54 |
Formulação de Objetivos e Preparação Mental | 4 | 1 | 12 | 7,28 | 2,70 |
Confiança e Motivação para a Realização | 4 | 4 | 12 | 8,06 | 2,15 |
Disponibilidade para a Aprendizagem a Partir do Treino | 4 | 3 | 12 | 8,72 | 2,24 |
Analisando a tabela 2, verificou-se que os valores médios obtidos nas competências psicológicas de confronto são superiores ao ponto médio da escala, destacando-se duas dimensões com médias mais elevadas: Confiança e Motivação para a Realização; Disponibilidade para a Aprendizagem a Partir do Treino.
Estudou-se a correlação (Spearman) entre as subescalas do Humor, Felicidade Subjetiva, Afetividade e Competências Desportivas (tabela 3 e 4). Salienta-se, no entanto, que apenas serão apresentadas as dimensões onde se verificaram resultados estatisticamente significativos.
Subescalas | 1 | 2 | 3 | 4 | 5 | 6 | 7 |
---|---|---|---|---|---|---|---|
1. Prod. Uso Social Humor | (0,89) | ||||||
2. Apreciação Humor | 0,60** | (0,84) | |||||
3. Humor Adaptativo | 0,61** | 0,42** | (0,86) | ||||
4.Felicidadde Subjetiva | 0,63** | 0,50** | 0,29 | (0,73) | |||
5.Afetividade Positiva | 0,37* | 0,13 | 0,52** | 0,28 | (0,87) | ||
6. Ausência Preocupações | -0,29* | -0,31** | -0,11 | -0,22 | -0,15 | (0,78) | |
7.Rendimento sob Pressão | 0,31* | 0,10 | 0,36* | 0,26 | 0,29* | 0,06 | (0,90) |
Nota: ** A correlação é significativa ao nível p <0,01 *A correlação é significativa ao nível p <0,05.
Os resultados indicaram que as dimensões Produção e Uso Social do Humor e Apreciação do Humor estavam positivamente correlacionadas com a Felicidade Subjetiva (rs, rho de spearman)=0,63, p<0,0001; rs=0,50, p<0,0001).
Verificou-se, também, que o Humor Adaptativo e a Produção e Uso Social do Humor estavam positivamente correlacionados com a dimensão Afetividade Positivado bem-estar subjetivo (rs=0,52, p<0,0001; rs=0,37, p=0,01). Estas duas dimensões da Escala de Humor também estavam positivamente correlacionadas com a dimensão Rendimento sob Pressão da Escala de Competências de Coping Desportivo, respetivamente, Humor Adaptativo com um valor de rs=0,36, p=0,012 e Uso Social do Humor com um valor de rs=0,31, p=0,037.
As dimensões Produção e Uso Social do Humor e Apreciação do Humor estavam negativamente correlacionadas com a Ausência de Preocupações (rs=-0,29, p=0,048; rs=-0,31, p=0,036) (tabela 3).
Subescalas | 1 | 2 | 3 | 4 | 5 | 6 | 7 | 8 |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|
1. Rendimento sob Pressão | (0,90) | |||||||
2. F. Objetivos e Prep Mental | 0,12 | (0,69) | ||||||
3. Conf. e Motivação Realiz | 0,36* | 0,37* | (0,60) | |||||
4. Confronto com Adversidade | 0,68** | 0,27 | 0,55** | (0,66) | ||||
5. Disponibilidade Aprendizagem | 0,22 | 0,19 | 0,35* | 0,42** | (0,50) | |||
6. Afetividade Positiva | 0,29* | 0,39** | 0,43** | 0,43** | 0,16 | (0,87) | ||
7. Afetividade negativa | -0,22 | -0,19 | -0,02 | -0,22 | -0,38** | 0,21 | (0,80) | |
8. Felicidade Subjetiva | 0,17 | 0,04 | 0,16 | 0,12 | 0,29* | 0,28 | -0,05 | (0,73) |
Nota: **A correlação é significativa ao nível p <0,01; *A correlação é significativa ao nível p <0,05.
Relativamente às Competências de Coping Desportivo, existem correlações positivas entre diversas dimensões e a Afetividade Positiva: Rendimento sob Pressão (rs=0,29, p=0,047); Formulação de Objetivos e Preparação Mental (rs=0,39, p=0,007); Confiança e Motivação para a Realização (rs=0,43, p=0,003) e Confronto com a Adversidade (rs=0,43, p=0,003;
A dimensão Disponibilidade para a Aprendizagem a Partir do Treino está negativamente correlacionada com a Afetividade Negativa (rs=-0,38, p=0,009) e positivamente correlacionada com a Felicidade Subjetiva (rs=0,29, p=0,048) (tabela 4).
Discussão
Os estados de humor são indicadores que coadjuvam o rendimento e a prevenção da saúde do atleta (Pack, Hemmings, Winter & Arvinen-Barrow, 2019). Em relação aos dados descritivos a partir dos scores da Escala do Humor, destacam-se as dimensões: Objeção ao Uso do Humor e Atitude Pessoal Face ao Humor, com valores mais elevados. Estes resultados mostraram que as médias das dimensões do sentido do humor são elevadas, sugerindo a possibilidade de haver elevada autoestima, empatia e atração interpessoal, o que poderá repercutir-se positivamente na vida das pessoas, ao contribuir para a sua adaptação às situações da vida diária (José e Parreira, 2008).
Nas competências psicológicas de confronto verificamos que o nosso grupo de atletas é confiante e positivamente motivado, trabalhando sempre para melhorar em situações de treino ou competição. Por outro lado, é um grupo aberto e disponível para aprender a partir daquilo que lhe é ensinado no treino, aceitando de forma positiva e construtiva as críticas de treinadores. Estas características são congruentes com os valores da Afetividade Positiva, em que o grupo manifesta entusiasmo com a vida.
De acordo com outros estudos, verificamos que o bem-estar subjetivo é uma variável importante para os atletas antes de iniciar uma época de competição (Lundqvist, 2011).
Os nossos resultados indicam que o Humor Adaptativo e a Produção e Uso Social do Humor estão relacionados com um estado emocional mais positivo na preparação destes atletas. De forma congruente, o Humor Adaptativo e uso social do humor estão também positivamente relacionados com a Felicidade Subjetiva, evidenciando o papel benéfico destas dimensões no aumento do bem-estar e na Felicidade Subjetiva, de acordo com aquilo que alguns estudos têm demonstrado (Ruch, Hofmann, Rusch & Stolz, 2018; Sousa & José, 2016; Sousa et al., 2018).
Na adversidade, ou seja, no Rendimento sob Pressão, o Humor Adaptativo e a Produção e Uso Social do Humor aumentam, podendo assim ser considerados como estratégias de coping, para lidar com situações difíceis, tal como outros estudos têm enfatizado noutros contextos (Santos, Sousa, Carvalho, Severino & José, 2016; Sousa & José, 2016; Sousa et al., 2018; Sousa et al., 2019). Como estratégia, a Produção e o uso social do humor parecem aumentar na presença das preocupações, bem como a Apreciação do Humor. Estes resultados estão de acordo com estudos anteriores que evidenciam o papel importante do sentido de humor como uma abordagem na gestão de eventos stressantes no desporto e na vida (Brcic, et al., 2018).
As correlações positivas encontradas entre as competências psicológicas Rendimento sob Pressão, Formulação de Objetivos e Preparação Mental; Confiança e Motivação para a Realização; Confronto com a Adversidade e Afetividade Positiva vão ao encontro dos estudos que enfatizam a importância do bem-estar subjetivo na preparação psicológica dos atletas (Lundqvist, 2011; Lundqvist & Sandin, 2014). A disponibilidade para a Aprendizagem a Partir do Treino aumenta a Felicidade Subjetiva e diminui a afetividade negativa.
Assim, a relação entre as competências psicológicas do atleta e o bem-estar subjetivo começa na disponibilidade para o treino e de acordo com alguns estudos é na relação entre o treinador e o atleta que se pode começar a ensinar os benefícios da utilização do humor nos contextos desportivos, tal como se tem feito noutros contextos, particularmente na relação entre técnico de saúde mental e utentes (Pack, Hemmings, Winter & Arvinen-Barrow, 2019).
Conclusão
Neste estudo, verificou-se que a dimensão Produção e Uso Social do Humor, bem como o Uso do Humor Adaptativo aumenta quando a competência Rendimento sob Pressão aumenta. Este resultado, parece ser congruente com o facto do sentido de Humor poder constituir uma estratégia importante em contextos de stress desportivo, aumentando, assim, o bem-estar e a felicidade subjetiva dos atletas.
Este estudo, é um contributo relevante para o conhecimento do papel do sentido de humor e suas dimensões na Felicidade Subjetiva dos atletas e nas suas competências psicológicas, podendo constituir uma variável importante nos programas específicos de promoção de estratégias de coping e de saúde mental nestes grupos. Se na relação entre o treinador e o atleta os benefícios da utilização do humor têm sido reconhecidos, é particularmente importante que essa utilização se faça também na relação entre técnico de saúde mental e os atletas.
São necessários mais estudos que permitam caracterizar a compreensão do uso de sentido de humor e de competências de coping desportivo em atletas, nomeadamente estudos longitudinais. As limitações deste estudo envolvem a dimensão da amostra de 47 participantes e o tipo de amostragem utilizado condicionando assim a extrapolação dos resultados. Uma outra limitação são os valores de fiabilidade de algumas dimensões da Escala Athletic Coping Skills Inventory-28, sendo inferiores a 0,70, no entanto são similares ao estudo de validação da versão brasileira (Miranda, Coimbra, Bara Filho, Miranda Júnior & Andrade, 2018).
Implicações para a Prática Clínica
Os resultados deste estudo podem contribuir positivamente para a prática clínica. Os participantes apresentaram valores mais baixos na Escala do Humor nas dimensões com Produção e Uso Social do Humor, Humor Adaptativo e nas Competências Desportivas no Confronto com a Adversidade, Rendimento sob Pressão e Ausência de Preocupações. Esta informação é relevante uma vez que os profissionais de saúde mental poderão intervir quer na avaliação quer na forma de delinear intervenções complementares de promoção de estados emocionais positivos, contribuindo para o controlo dos fatores de ansiedade e melhoria das relações interpessoais, sociais e de confronto no desporto.