Introdução
A adolescência é um período de fragilidade que pode potencializar o surgimento de eventos estressores e crises decorrentes das mudanças físicas, psicológicas, sociais e culturais (Ribeiro, Correa, Oliveira e Cade, 2020). Por ser uma fase de transição entre a vida infantil e a vida adulta, é um momento marcado por muitas escolhas que podem vir acompanhadas de conflitos e angústias (Moreira e Bastos, 2015).
Diversos fatores psicossociais têm sido associados a problemas de saúde mental no adolescente, como os próprios do indivíduo, da família, da escola e da comunidade (Pinto et al., 2014). A família é um eixo fundamental a ser avaliado, pois pode apresentar fatores de proteção e risco para o adolescente dependendo de como os vínculos são estabelecidos, da capacidade de comunicação, do estilo de parentalidade e da relação que as forças oriundas da comunidade intervêm nesse processo (Ministério da Saúde, 2017).
Interações familiares conflituosas e negativas desempenham papel significativo no desenvolvimento de problemas emocionais e de comportamento em adolescentes repercutindo na autoestima, competência social, resolução de problemas, além de colaborar para o aparecimento de transtornos mentais (Paixão, Patias e Dell'Aglio, 2018).
Em muitos casos, antes do diagnóstico de um transtorno mental é possível encontrar indícios de sofrimento mental em adolescentes e, a partir da identificação precoce desse sofrimento e dos fatores de risco relacionados podem ser planejadas e implementadas estratégias de enfrentamento mais efetivas ao longo de todo o processo de desenvolvimento da adolescência (Lopes et al., 2016) bem como da fase adulta visto que os problemas podem perdurar associando-se a comportamento antissocial, problemas conjugais, saúde física deficitária e delinquência (Garcia, Santos e Machado, 2015).
Neste contexto, investigar o sofrimento mental de adolescentes torna-se fundamental em virtude das suas consequências no desenvolvimento desse grupo populacional que refletem em diferentes áreas de suas vidas, seja individual, familiar ou socialmente (Mosmann, Costa, Einsfield, Silva e Koch, 2017).
Embora os estudos sobre saúde mental na adolescência tenham ganhado destaque nos últimos anos, ainda é um tema que carece de estudos que sintetizem a relação entre o contexto familiar e o sofrimento mental do adolescente. Diante disso, o estudo tem como objetivo identificar situações do contexto familiar que ocasionam sofrimento mental em adolescentes.
Métodos
Trata-se de uma revisão integrativa da literatura, método cujo objetivo é viabilizar a síntese e análise do conhecimento científico já produzido sobre o tema investigado propiciando ao pesquisador aproximar-se da problemática que deseja apreciar e traçar um panorama sobre a sua produção científica de forma a conhecer a evolução do tema ao longo do tempo e, com isso, visualizar possíveis oportunidades de pesquisa (Botelho, Cunha e Macedo, 2011).
Para construção da pergunta de pesquisa, utilizou-se o modelo recomendado por Biruel e Pinto (2011), empregado em estudos que objetivam gerar hipóteses sem obrigatoriamente testar intervenções específicas. Essa estratégia utiliza o mnemônico P.V.O. (P - População, V - Variável e O - Desfecho). Nesta revisão foram definidos: P - adolescentes, V - situações vivenciadas no contexto familiar e O - sofrimento mental. Com base nessas definições, foi elaborada a pergunta norteadora: “Quais situações do contexto familiar causam sofrimento mental em adolescentes?”
A busca das publicações científicas foi realizada nos meses de junho e julho de 2020 nas bases de dados: USA National Library of Medicine (PubMed), Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS) e Scientific Eletronic Library Online (SciELO), utilizando os descritores: "adolescent", "mental health" e "family relations” combinados pelo operador booleano AND. Os termos utilizados na estratégia de busca foram selecionados no Descritores em Ciências da Saúde (DeCs) e no Medical Subject Headings (MeSh).
Os critérios de seleção adotados foram artigos originais disponíveis eletronicamente na íntegra, publicados no período de 2014 e 2019, nos idiomas português, inglês ou espanhol. Foram considerados adolescentes, os indivíduos de 10 a 19 anos de idade, seguindo a definição cronológica da Organização Mundial da Saúde (1986). Foram excluídos artigos repetidos, aqueles que focassem em outro grupo populacional, dissertações, teses, artigos de revisão e do tipo caso clínico, e ainda artigos em que os adolescentes já possuíam doença ou condição crônica que por si só podem impactar na saúde mental.
O processo de busca e seleção dos artigos nas respectivas bases de dados pautou-se nas recomendações estabelecidos pelo guia Preferred Reporting Items for Systematic Review and Meta-Analyses (PRISMA) (Galvão, Pansani e Harrad, 2015). A Figura 1 mostra os resultados obtidos na busca inicial, seguido pelas etapas de triagem, elegibilidade e inclusão.
Resultados
A estratégia de busca identificou 1.850 publicações. Após a leitura dos títulos e/ou resumos, selecionaram-se 314 artigos que preenchiam os critérios de inclusão, dos quais foram excluídos 295 após a leitura da metodologia e verificação dos critérios de elegibilidade, resultando na inclusão de 19 artigos.
A Tabela 1 apresenta a caracterização das publicações incluídas. Os artigos foram identificados conforme autoria, ano de publicação, país onde a pesquisa foi realizada, delineamento do estudo, amostra, objetivo e principais resultados.
Dos estudos que compuseram esta revisão, 57,9% (n=11) foram do tipo transversal e 42,1% (n=8) foram conduzidos segundo abordagem longitudinal. Quanto ao ano de publicação, prevaleceram artigos do ano de 2018, correspondendo a 31,5% (n=6). As pesquisas foram realizadas em diferentes países, predominando as publicações em língua inglesa e realizadas nos países europeus e Estados Unidos da América.
Estilo parental adotado, sofrimento mental dos pais, conflito e violência intrafamiliar, abuso de substâncias psicoativas por familiares, divórcio, migração e encarceramento parental foram as situações do contexto familiar que se associaram ao sofrimento mental de adolescentes. Sintomas internalizantes e externalizantes, risco aumentado de automutilação e tentativa de suicídio, além do uso nocivo de substâncias psicoativas foram evidências desse sofrimento mental.
Os artigos foram agrupados em três categorias por similaridade de conteúdo: (1) Influência das práticas parentais no sofrimento mental dos filhos, (2) Sofrimento mental e abuso de substâncias psicoativas na família e (3) Impacto da separação: repercussões do divórcio, migração e encarceramento parental.
Discussão
Influência das práticas parentais no sofrimento mental dos filhos
O estilo parental utilizado na criação dos filhos e a relação com problemas de saúde mental na adolescência tem sido foco de diversas pesquisas ao redor do mundo. Três dos artigos incluídos (Eun, Paksarian, He & Merikangas, 2018; León-del-Barco, Mendo-Lázaro, Polo-del-Río & López-Ramos, 2019; Weitkamp & Seiffge-Krenke, 2019) encontraram relação entre ter pais controladores e aumento na probabilidade de apresentar problemas de saúde mental, de internalização e externalização, maiores chances de transtornos depressivos, ansiosos, alimentares, comportamentais, agorafobia e abuso de álcool.
Práticas parentais negligentes também se associaram a desordens internalizantes e externalizantes nos adolescentes (León-del-Barco, Fajardo-Bullón, Mendo-Lázaro, Rasskin-Gutman & Iglesias-Gallego, 2018; Obimakinde, Omigbodun, Adejumo & Adedokun, 2019). Os efeitos negativos dessas práticas na saúde mental são ainda maiores em famílias com menos calor e afeto e, onde a violência é provavelmente o principal meio de comunicação entre pais e filhos (Moraes, Sampaio, Reichenheim e Veiga, 2018). Ambientes familiares onde predominam conflitos e violências acarretam prejuízos às habilidades adaptativas e acentuam a internalização de problemas em adolescentes (Díez, Fontanil, Alonso, Ezama & Gómez, 2018; Kelly et al., 2016).
A literatura confirma que as práticas educativas parentais estão entre as principais variáveis associadas ao equilíbrio do ambiente familiar. Práticas parentais coercitivas podem acarretar prejuízos ao desenvolvimento do adolescente produzindo sentimentos intensos de medo, ansiedade, depressão, hostilidade, baixa autoestima, entre outros sentimentos negativos (Patias, Siqueira e Dias, 2013). Faria e Ponciano (2018) corroboram afirmando que a competência emocional desenvolvida ao longo da infância e adolescência depende, em parte, da colaboração dos cuidadores como facilitadores nesse processo.
Sofrimento mental e abuso de substâncias psicoativas na família
Os artigos incluídos nessa categoria demonstram que a convivência com pais que vivenciam sofrimento mental leva os adolescentes a ficarem sobrecarregados de responsabilidades em casa e, com isso, eles deixam de expressar seus problemas porque sentem que seus pais têm problemas suficientes (Van Loon, Van de Ven, Van Doesum, Hosman & Witteman, 2017). Como consequência, apresentam níveis mais altos de sintomas depressivos (Nilsen, Karevold, Kaasboll & Kjeldsen, 2018), maiores chances de desenvolverem ansiedade, depressão e auto-mutilação (Pearson et al., 2018) inclusive sendo apontado como importante preditor de infelicidade para as filhas (Webb et al., 2017).
O histórico familiar de transtorno mental continua sendo um indicador poderoso para o desenvolvimento de doença mental grave (Sandstrom, Sahiti, Pavlova & Uher, 2019). Rasic, Hajek, Alda & Uher (2014) alertam que um em cada três filhos de pais com transtorno mental grave tem risco de desenvolver um transtorno psicótico ou transtorno de humor importante.
Outro importante fator de risco à saúde mental de adolescentes são as famílias cujos membros abusam de substâncias psicoativas estando associadas à maior prevalência de sofrimento psíquico, ocorrência de transtornos mentais e uso de substâncias psicoativas pelos adolescentes (Jääskeläinen, Holmila, Notkola & Raitasalo, 2016; Pereira, Pimentel, Espínola, Azevedo e Ferreira Filha, 2015). Outros artigos confirmam essa associação, seja pelas consequências diretas do consumo de substâncias psicoativas, seja pelos efeitos indiretos, como abandono e descuido, falta de carinho e atenção e maus-tratos gerados pelo consumo (Marin, Peuker e Kessler, 2019; Sanchez et al., 2013).
Impacto da separação: repercussões do divórcio, migração e encarceramento parental
Os artigos que compõem essa categoria apresentam consenso ao afirmar que existe associação entre separações traumáticas como o divórcio (Gobbi et al., 2015; Hagquist, 2016), a migração (Lorenzo-Blanco et al., 2016; Wang et al., 2019) e o encarceramento parental (Davis & Shlafer, 2017) com o sofrimento mental de adolescentes.
Quanto ao divórcio, os achados demonstram que viver em famílias não intactas aumenta a probabilidade de problemas psicossomáticos em adolescentes. Além disso, após a dissolução da família, costuma haver um aumento da carga sobre as mães, podendo gerar tensão e ansiedade entre os filhos (Gobbi et al., 2015; Hagquist, 2016). O caráter corriqueiro que os divórcios têm assumido pode causar a impressão de uma menor repercussão emocional decorrente do fim da união, entretanto, a qualidade das relações e a interação entre os pais após a dissolução do casamento tem sido apontadas como fortes indicadores de saúde mental e do bem-estar psicológico dos filhos. O modo como essas relações se processam é fundamental para a determinação dos impactos do divórcio a curto, médio e longo prazo (Vieira, Neumann e Zordan, 2019).
A migração parental também foi apontada como geradora de efeitos negativos na saúde mental, acarretando níveis mais altos de sintomas emocionais, problemas de conduta e consumo de substâncias psicoativas pelos adolescentes (Lorenzo-Blanco et al., 2016; Wang et al., 2019). Schwartz et al., (2015) alertam que a migração não é um evento individual e, além de afetar os vínculos relacionais, gera uma complexidade de situações estressantes como sentimento de abandono, falta de suporte emocional e discriminação que surgem a partir da migração.
O encarceramento parental esteve fortemente associado a maiores índices de internalização, comportamentos prejudiciais e tentativa de suicídio entre os adolescentes pesquisados (Davis & Shlafer, 2017). O aprisionamento parental atua modificando a dinâmica familiar e tende a ser bastante doloroso para os filhos, uma vez que eles são expostos a diversas situações constrangedoras e angustiantes como testemunhar a prisão dos pais, perda de renda familiar, instabilidade de moradia, mudanças na forma de cuidar, visitas estressantes ao progenitor encarcerado e estigma associado a ter um pai no sistema prisional (Murray, Farrington & Sekol, 2012).
Os resultados desta pesquisa expressam o quanto a temática da saúde mental na adolescência é relevante e deve ser continuamente discutida em todos os cenários em que os adolescentes estão inseridos, incluindo o contexto escolar e educacional. Cita-se como uma limitação do estudo a captação de artigos em apenas três idiomas, havendo a possibilidade de não identificação de estudos publicados sobre o tema em outros idiomas e realidades.
Conclusões
A revisão de literatura apontou que o sofrimento mental em adolescentes foi afetado pelas seguintes situações do contexto familiar: práticas parentais negativas, sofrimento mental dos pais, abuso de substâncias psicoativas pelos familiares, divórcio, migração e encarceramento parental. Nesse contexto, o estabelecimento de vínculo afetivo entre pais e filhos apresenta-se como importante fator de proteção, mesmo em condições adversas. Aquelas famílias que tem como base o afeto, a comunicação não-violenta e a confiança têm maiores chances de proteger a saúde mental de seus adolescentes.
Esses achados reforçam a vulnerabilidade dos adolescentes ao sofrimento mental e apontam a necessidade de desenvolver intervenções eficazes no enfrentamento desse importante problema de saúde pública além do fortalecimento das redes de apoio aos adolescentes e famílias.
Implicações para a prática clínica
Identificar os principais fatores de risco associados ao sofrimento mental em adolescentes contribui para a adoção de medidas preventivas e promotoras de saúde. Logo, os achados desse estudo permitem subsidiar avaliações de intervenções junto aos adolescentes e suas famílias e contribuir para o planejamento de políticas públicas mais efetivas.
Além disso, os resultados dessa revisão podem contribuir em ações intersetoriais envolvendo os setores de saúde e educação, tendo em vista que a escola constitui importante espaço de convívio dos adolescentes e construção coletiva de saberes