A supervisão clínica em enfermagem não é um fenómeno recente em Portugal e no mundo. A nível internacional é consensual que a supervisão clínica é um meio para: providenciar suporte e promover a formação/educação nos profissionais, incentivando mudanças nas práticas; promover a comunicação entre profissionais; e providenciar suporte formal para uma prática reflexiva (Dilworth et al., 2013; White & Winstanley, 2010).
De acordo com a Ordem dos Enfermeiros (OE, 2010), a supervisão clínica é “um processo formal de acompanhamento da prática profissional, que visa promover a tomada de decisão autónoma, valorizando a proteção da pessoa e a segurança dos cuidados, através de processos de reflexão e análise da prática clínica” (p.5). A supervisão clínica tem como elementos centrais a ação, a reflexão e a colaboração, e permite que o enfermeiro adquira autonomia gradual no processo de tomada de decisão e na aquisição de novas competências, através do acompanhamento contínuo.
A supervisão clínica pode ser aplicada em diferentes âmbitos, designadamente na supervisão de estudantes, na indução à vida profissional e na supervisão de pares, esta última designada por supervisão clínica em enfermagem, a qual tem vindo a revelar efeitos benéficos para as organizações de saúde, profissionais e pessoas (Martin et al., 2021), os quais se influenciam reciprocamente.
Nos profissionais de saúde a evidência aponta efeitos positivos na redução do stress e burnout, satisfação e bem-estar no trabalho (Martin et al., 2021), melhor suporte na atividade profissional, desenvolvimento pessoal e profissional de cada membro da equipa, e da equipa em geral, inclusive, com benefícios na satisfação, relação, saúde e bem-estar da equipa (Cummings et al., 2018; Snowdon et al., 2017).
A nível organizacional, a supervisão clínica revela resultados positivos sobre fatores ambientais, produtividade e eficácia (Cummings et al., 2018), na relação entre os mecanismos de governança em saúde e os resultados nos profissionais, nomeadamente, a rotatividade de pessoal e a satisfação e qualidade de vida no trabalho (Hastings et al., 2014; Hyrkäs, 2005), com impacto no recrutamento e retenção de profissionais e no absenteísmo (Martin et al., 2014).
Quanto aos resultados na pessoa, há uma crescente base de evidências que apontam para o impacto positivo da supervisão clínica na redução do risco de mortalidade, redução do risco de complicações e cuidados mais eficazes (Bambling et al., 2006; Snowdon et al., 2017).
Face à produção do discurso, verifica-se que a supervisão clínica em enfermagem pode constituir uma ferramenta crucial para que os contextos da prática clínica desenvolvam as condições necessárias à estruturação dos requisitos que permitam o reconhecimento e certificação da idoneidade formativa, preconizada pela Ordem dos Enfermeiros. Efetivamente, a evidência demonstra que a supervisão clínica tem resultados positivos na dimensão pessoal dos profissionais e nas equipas que estes integram, o que contribui para o desenvolvimento dos ambientes da prática clínica, para melhoria da qualidade e segurança dos cuidados, e para elevados padrões clínicos, o que vai ao encontro dos pressupostos da acreditação da idoneidade formativa dos contextos.
Os contextos de saúde caraterizam-se pela sua permanente imprevisibilidade, sendo a pandemia pela COVID-19 um exemplo muito evidente dos desafios constantes que estes enfrentam. Podemos dizer que a pandemia COVID-19 se tem revelado um motor muito importante para a reflexão sobre algumas questões, nomeadamente: a saúde mental e necessidade de suporte emocional dos enfermeiros; a qualidade e segurança dos cuidados; o desenvolvimento profissional; por último, e não menos importante, a oportunidade de repensar as práticas e as necessidades de mudança e melhoria nos diversos contextos.
De acordo com alguns estudos (Martin et al., 2022), a pandemia COVID-19 também trouxe disrupções que tiveram impacto nos processos supervisivos quer dos profissionais, sobretudo na integração de novos elementos nos contextos de trabalho, quer dos estudantes nos diversos ciclos de estudo. Por outro lado, reforçou, mais do que nunca, a importância da existência de mecanismos formais de suporte no âmbito da promoção da saúde mental dos profissionais de saúde, nomeadamente dos enfermeiros.
Face a estes desenvolvimentos, é premente debater e enfrentar o desafio da implementação da supervisão clínica em enfermagem, nomeadamente nos contextos de saúde mental e psiquiatria, fomentando a supervisão entre pares, de forma a impulsionar a melhoria contínua da qualidade dos cuidados, sustentados numa enfermagem em saúde mental baseada na evidência e providenciar mecanismos de suporte ao exercício profissional dos enfermeiros dirigidos para a promoção da sua própria saúde mental.
Os enfermeiros que trabalham em contextos da saúde mental e psiquiatria, deparam-se diariamente com uma natureza do cuidar complexa e desafiante, testando a sua resiliência, empatia e capacidade de estabelecer e manter a relação terapêutica. Esta última, como sabemos, o pilar para o desenvolvimento de intervenções com resultados positivos para a pessoa/família/comunidade. A supervisão clínica, quando implementada nestes contextos, tem-se revelado muito útil, pois os enfermeiros reportam menor stress, melhor coping e maior satisfação profissional (Gonge & Buus, 2011; Howard & Eddy-Imishue, 2020).
Para que os outcomes positivos sejam alcançados, importa que pensemos na existência de fatores facilitadores. Os enfermeiros que conhecem a supervisão clínica e tiveram previamente uma experiência significativa tendem a envolver-se mais facilmente. A base do processo de supervisão passa pela reflexão, pelo que, o tempo despendido para tal, e a facilitação do processo, são valorizados nos estudos (Howard & Eddy-Imishue, 2020). Esta reflexão, segundo alguns autores, é importante para explorar e clarificar os valores pessoais enquanto profissional, a tomada de decisão, o conhecimento de Si e as competências profissionais (Buus et al., 2011). Contudo, existem barreiras para a sua efetiva implementação que podem ser relativas ao profissional (ex. desconhecimento e crenças associadas à supervisão clínica), ao processo supervisivo (ex. perfil e características do enfermeiro supervisor clínico; a relação supervisiva) e ao contexto organizacional (ex. recursos humanos, materiais e estruturais; cultura organizacional). O conhecimento e identificação destas barreiras é importante para o sucesso da implementação. Para tal, importa reconhecer e identificar as necessidades dos enfermeiros e as características dos contextos.
Alguns autores (Howard & Eddy-Imishue, 2020) propõem uma abordagem para a implementação da supervisão clínica em saúde mental e psiquiatria, seguindo algumas etapas. Numa primeira etapa propõe-se: a promoção de uma cultura organizacional de suporte à supervisão clínica; a identificação precoce de barreiras organizacionais; equipas de enfermeiros supervisores clínicos com formação e treino; identificar junto dos enfermeiros supervisados as necessidades em supervisão clínica, bem como conhecimento do processo e experiência prévia; considerar a necessidade de formação prévia sobre supervisão clínica aos enfermeiros supervisados. Numa segunda etapa deve-se: analisar as opções para a implementação da supervisão clínica, de acordo com as necessidades e características dos enfermeiros supervisados (ex. supervisão em grupo ou individual; procedimento para a seleção do enfermeiro supervisor clínico) e as estratégias de supervisão a implementar. Numa terceira etapa considerar a avaliação de todos os intervenientes de acordo com as necessidades de supervisão clínica trabalhadas e do processo, elaborando indicadores prévios relacionados com os enfermeiros (ex. satisfação profissional, burnout) mas também com o processo e a sua eficácia (avaliação efetuada por todos os intervenientes), bem como com o impacto nos cuidados prestados à pessoa (ex. satisfação com os cuidados).
Em Portugal, tem havido nos últimos anos investigação nesta área, nomeadamente, na conceção e implementação do Modelo SafeCare em diversos contextos (Augusto et al., 2021; Barroso et al., 2020; Rocha et al., 2021). Este, é um modelo de supervisão clínica centrado nos contextos de cuidados que assenta em quatro eixos: o contexto; cuidados de enfermagem; desenvolvimento profissional; e supervisão. Em saúde mental e psiquiatria a natureza das necessidades que emergem nas sessões de supervisão é diversa, relacionada com a interação que existe entre o enfermeiro, a pessoa e a organização (Sharrock et al., 2013). Assim, as principais necessidades decorrem: da relação terapêutica e resolução de problemas no relacionamento interpessoal e terapêutico entre o enfermeiro e a pessoa; do contexto e resolução de problemas que emergem da interação da pessoa com a organização; do exercício profissional, que decorre da interação do enfermeiro com a organização.
Nesta conjuntura, a supervisão clínica pode contribuir para o crescimento pessoal e profissional do enfermeiro na sua expertise, uma vez que identifica as necessidades individuais e coletivas de formação e investigação, orienta os percursos formativos, auxilia na reflexão sobre as práticas e experimentação da inovação e transformação induzida por esses mesmos percursos, visando a melhoria contínua dos cuidados e contribuindo para uma enfermagem em saúde mental baseada na evidência. Facilita e suporta uma prática baseada na evidência, promovendo a translação do conhecimento para os contextos da prática clínica em saúde mental e psiquiatria, e a implementação/adoção da inovação e mudança induzidos por esse mesmo conhecimento (Schriger et al., 2021; Teixeira et al., 2021). Assim, o processo supervisivo procurará ir ao encontro das necessidades pessoais e profissionais, por forma a manter a motivação, bem-estar e satisfação profissional, mas também integrar as necessidades específicas dos contextos da prática clínica em que o enfermeiro atua e as competências necessárias a desenvolver, visando desta forma a melhoria contínua da qualidade dos cuidados.
Dada a natureza do cuidar em saúde mental, a importância da tomada de consciência de Si na relação terapêutica e a realização de intervenções de âmbito psicoterapêutico, socio terapêutico, psicossociais e psicoeducativas, deixamos a seguinte questão: para quando uma efetiva implementação da supervisão clínica nos contextos de saúde mental e psiquiatria que dê suporte aos enfermeiros no seu exercício profissional e promova o seu crescimento pessoal e profissional?