Introdução
Ao longo da sua vida, todas as pessoas experienciam pelo menos um evento potencialmente traumático. Contudo, a probabilidade da sua ocorrência varia de indivíduo para indivíduo, dependendo de fatores como o historial pessoal e familiar de perturbações mentais, traços de personalidade, a existência de traumas anteriores ou a ocupação profissional (Kessler et al., 2017). Um evento potencialmente traumático ocorre quando o indivíduo é confrontado com uma situação stressante, podendo desenvolver inicialmente uma reação aguda de stresse, caracterizada por manifestações emocionais, cognitivas, físicas e interpessoais (American Psychiatric Association [APA], 2014). Esta poderá evoluir para uma situação traumática na medida em que a experiência surge de forma inesperada e os mecanismos de proteção para lidar com o sucedido tornam-se insuficientes, surgindo sentimentos de impotência ao tentar evitar a ocorrência do evento (Santos, 2017). A maioria dos indivíduos ultrapassa estas situações de stresse, com base no apoio social e familiar que dispõem (Southwick et al., 2015). Porém, esse apoio poderá não ser suficiente e os sinais e sintomas poderão estender-se no tempo, evoluindo para uma Perturbação de Stresse Pós-Traumático (PPST). Esta perturbação engloba sintomatologia relacionada com pensamentos intrusivos, evitamento, hiperativação e alterações negativas na cognição e humor (APA, 2014).
Dado os ambientes de trabalho nos quais trabalham diariamente, os enfermeiros possuem alta suscetibilidade de exposição a eventos potencialmente traumáticos no decorrer da sua atividade profissional, comprometendo a sua vida pessoal e profissional. Ao cuidar do outro, poderão surgir incidentes críticos relacionados com complicações de saúde repentinas, situações de agressão física ou verbal, erros clínicos ou situações de sofrimento e morte (Wheeler & Phiplips, 2019), situações essas para as quais os enfermeiros poderão não estar psicologicamente preparados para as enfrentar (Kable et al., 2018; Missouridou, 2017).
O conceito de trauma psicológico ou de trauma secundário (quando abordado a nível laboral) tem recebido maior atenção por parte dos investigadores nos últimos anos, principalmente na área da saúde. Arnold (2020) faz uma descrição do fenómeno de stresse traumático secundário em enfermagem como uma perturbação semelhante à PPST, resultante do envolvimento empático e emocional com utentes que experienciaram situações traumáticas, englobando sintomatologia física e psicológica. Para além de acartar consequências a nível individual, familiar e social, como isolamento, ansiedade generalizada, aumento da probabilidade de suicídio, menor saúde física e satisfação com a vida (Bosmans, 2015; DeFraia, 2016), desemprego, dificuldades sociais e económicas (APA, 2014), o trauma psicológico afetará de igual modo a vida laboral. Algumas das consequências organizacionais passam por absentismo, presentismo, maior probabilidade de acidentes de trabalho, perda de produtividade e de capital humano e económico (Alonso et al., 2011; DeFraia, 2016). Assim, torna-se importante perceber o impacto dos eventos potencialmente traumáticos nos enfermeiros, informando-os e apoiando-os, criando um clima organizacional de abertura, tomando medidas efetivas face ao problema (Kable et al., 2018).
Este estudo teve como objetivos identificar o nível de trauma psicológico e analisar a sua variação em função de variáveis sociodemográficas e profissionais em enfermeiros de um hospital.
Metodologia
Estudo quantitativo, descritivo, correlacional, transversal integrado no Projeto Internacional INT-SO (ESEP/CINTESIS). A população-alvo foram enfermeiros de uma unidade hospitalar de uma das ilhas dos Açores. Os participantes foram selecionados através de uma amostragem não probabilística, amostra de conveniência, sendo que os critérios de inclusão foram trabalhar há pelo menos seis meses na instituição e estar no ativo durante a colheita de dados. Aplicou-se um questionário para a colheita de dados constituído por duas partes, sendo a primeira relativa à caracterização sociodemográfica e profissional dos enfermeiros e a segunda parte composta por duas questões, onde foi solicitado aos participantes que descrevessem o incidente crítico que mais os marcou ao longo da sua vida profissional e há quanto tempo o mesmo ocorreu e pela Impact Event Scale Revised (IES-R) (Weiss & Marmar, 1997; Matos et al., 2011), de forma a avaliar o nível de trauma psicológico. A IES-R é uma escala com 22 itens, relativos às subescalas de pensamentos intrusivos, evitamento e hiperativação, indo ao encontro dos critérios de diagnóstico da PPST. É uma escala tipo Likert, de 5 pontos (0-4), sendo a pontuação mínima de 0 e a máxima de 88. Pontuações iguais ou superiores a 33 são indicativas de probabilidade elevada de trauma psicológico. Neste estudo, o Alfa de Cronbach da IES-R total foi de 0,94, para a subescala de pensamentos intrusivos de 0,88 e para as subescalas de evitamento e hiperativação de 0,82. Foram pedidas as devidas autorizações formais ao Conselho de Administração e à Comissão de Ética do hospital. Depois de concedidas, foi marcada uma reunião com o Enfermeiro Diretor da instituição de modo a apresentar o estudo e articular os procedimentos de aplicação do questionário com os enfermeiros chefes de cada serviço. A colheita decorreu no mês de setembro de 2020, com base nos princípios éticos da Declaração de Helsínquia da Associação Médica Mundial e da Convenção de Oviedo e após obtenção do Consentimento Informado.
Resultados
A amostra foi constituída por 75 enfermeiros, 92% eram do sexo feminino, com média de idade de 39,6 anos, 73,3% tinham parceiro, 66,7% tinham filho(s), 46,7% tinham uma pessoa dependente a cargo, 57,3% realizavam atividades de lazer fora do horário de trabalho, 69,3% dos enfermeiros tinham licenciatura, 70,7% eram enfermeiros generalistas, 52% tinham horário fixo, 96% tinham vínculo definitivo com a instituição e uma média de experiência profissional de 16,5 anos. Todos os enfermeiros vivenciaram pelo menos um incidente crítico que marcou o seu percurso profissional, sendo a situação de morte a mais referida (48%), seguindo-se a situação de impotência profissional (29,3%), outra situação (10,7%) (como morte de criança, bullying e conflitos inter-pares), contacto com vítima de acidente (6,7%) e situações de agressão (5,3%). Para 72% dos enfermeiros, o incidente crítico mais marcante ocorreu há mais de 12 meses, seguindo-se o período de há menos de 6 meses (16%) e o período de 6 a 12 meses (9,3%). Identificou-se também uma prevalência de 21,3% de enfermeiros com trauma psicológico, ou seja, com scores superiores ou iguais a 33. Quanto aos dados da IES-R total e subescalas (Tabela 1), a média para a IES-R total foi de 23,63 (DP=14,36), sendo que a subescala que apresentou valores superiores foi a de pensamentos intrusivos e a que apresentou valores inferiores a subescala de hiperativação.
No que diz respeito às variáveis sociodemográficas e profissionais, apenas se obtiveram resultados estatisticamente significativos para as variáveis presença de filhos, atividades de lazer, horário de trabalho e vínculo com a instituição (Tabela 2 e 3). Os enfermeiros com filhos apresentaram médias superiores na subescala pensamentos intrusivos. Os enfermeiros com horário de trabalho fixo e que não possuem atividades de lazer apresentaram médias superiores na IES-R total e em todas as subescalas (Tabela 3). Por último, os enfermeiros com vínculo definitivo posicionam-se num nível superior na IES-R total e nas subescalas pensamentos intrusivos e evitamento (Tabela 4).
Discussão
Embora tenham sido encontrados níveis baixos de trauma psicológico nos enfermeiros, resultados que vão ao encontro dos estudos de Lima e colaboradores (2018) e Marques (2020), é importante ressaltar o efeito do trabalhador saudável e a sua possível influência nos mesmos. Assim, os enfermeiros que apresentam sofrimento psicológico, ou não se demonstram disponíveis para participar no estudo ou já abandonaram a profissão, sendo que os profissionais que efetivamente participam no estudo, encontram-se saudáveis (Fonseca et al., 2019). Torna-se importante salientar também que o estudo foi realizado durante a pandemia COVID-19 e no seio de uma comunidade rural. O fator da pandemia, por si só, poderá ser considerado um evento potencialmente traumático, dado todos os stressores adicionais presentes no dia-a-dia dos profissionais de saúde (Rudolph et al., 2020). Em relação ao segundo fator, este poderá acartar dificuldades acrescidas às equipas de saúde devido à possível falta de recursos humanos e materiais (US Department of Health and Human Services, 2020).
No presente estudo o facto dos enfermeiros terem filhos, especialmente pequenos, poderá não se demonstrar como fator protetor, mas sim de risco. Na prestação de cuidados a crianças, os enfermeiros poderão rever as situações de doença nos seus próprios filhos ou estabelecer ligações fortes com as mesmas, pelo que, na ocorrência de um evento crítico, poderá surgir um grande sofrimento psicológico (Lima et al., 2018).
Quanto às atividades de lazer, os resultados vão ao encontro do estudo de Pehlivan e Güner (2018), os quais concluíram que enfermeiros que não apresentavam comportamentos de autocuidado, potenciadores de bem-estar, estavam mais expostos a stresse traumático secundário.
O facto dos participantes com horário de trabalho fixo e vínculo definitivo com a instituição terem apresentado valores superiores de trauma psicológico, poderá ser justificado pela prestação de cuidados prolongados aos mesmos utentes e, consequentemente, pela criação de ligações emocionais com os mesmos, sendo que ambos foram identificados como fatores de risco para o desenvolvimento de trauma psicológico em profissionais de enfermagem (Arnold, 2020).
Desta forma, os enfermeiros, independentemente do período em que estejam, estão sujeitos a experienciar eventos adversos no seu local de trabalho, acartando sofrimento psicológico e emoções avassaladoras, podendo evoluir para uma situação de PPST. Desta forma, torna-se importante a consciencialização de enfermeiros e gestores de enfermagem para este tema, de forma a avaliar as situações e poder atuar de acordo com as necessidades de profissionais, grupos e serviços (Missouridou, 2017).
A fomentação de ambientes de trabalho saudáveis em enfermagem é urgente, nomeadamente a nível de trabalho digno, proteção da saúde e segurança dos enfermeiros e a sua retenção nos locais de trabalho. Assim, continuar a apostar em estudos que foquem a saúde ocupacional dos enfermeiros é importante, pois apenas conhecendo as realidades se poderá atuar (WHO, 2020).
As limitações deste estudo prenderam-se com o facto de ter como base uma amostra de conveniência e ser um estudo transversal, não permitindo mais do que uma avaliação dos níveis de trauma nos enfermeiros, o que, em altura de pandemia, seria muito interessante. Os poucos estudos na área, utilizando a IES-R, especificamente em enfermeiros portugueses, também condicionou a discussão dos dados.
Conclusão
Os níveis encontrados de trauma psicológico dos enfermeiros foram baixos, sendo que a subescala de pensamentos intrusivos apresentou valores mais elevados. Todos os enfermeiros experienciaram um evento adverso que marcou a sua vida profissional, sendo que a maioria dos casos estiveram relacionados com situações de morte e ocorreram há mais de 12 meses. Enfermeiros com filhos apresentaram médias superiores na subescala de pensamentos intrusivos e enfermeiros com horário de trabalho fixo, com vínculo definitivo com a instituição e que não praticavam atividades de lazer apresentaram maiores níveis de trauma psicológico.
Implicações para a Prática Clínica
Torna-se importante informar e apoiar os enfermeiros relativamente aos eventos adversos no local de trabalho, minimizando consequências e fortalecendo a comunicação inter-pares. É importante que exista consciencialização do problema, de forma a que possam ser tomadas medidas adequadas, promovendo ambientes de trabalho saudáveis, levando, consequentemente, a cuidados de enfermagem seguros e de qualidade. No caso das comunidades rurais, há que ter em conta o fator da sobreposição de papéis destes profissionais (membro da comunidade e profissional de saúde), onde o cuidar de pessoas próximas é mais comum do que noutros contextos, podendo levar a sofrimento psicológico mais elevado. Algumas das sugestões de estratégias que propomos são, a nível organizacional, a criação de equipas intra-hospitalares de apoio psicológico, apostar na formação dos profissionais sobre situações traumáticas e estratégias de coping, garantir supervisão e equilíbrio trabalho-família adequados e criação de um serviço interno de saúde ocupacional que fique encarregue da gestão, implementação e avaliação destas mesmas estratégias. A nível individual, propomos sessões de mindfulness, treino cognitivo-comportamental, relaxamento, exercício físico e educação em hábitos de vida saudáveis e gestão de tempo.