Introdução
Em Portugal a aprovação da Lei da Saúde Mental (Lei 36/98, de 24 de julho), determinou que a prestação de cuidados de saúde mental passasse a ser preferencialmente de cariz comunitário. Desta feita, foram valorizadas as unidades de reabilitação psicossocial e estruturas sócio-ocupacionais (Assembleia da República Portuguesa [ARP], 1998).
A Organização Mundial de Saúde [OMS] (1996) refere-se à reabilitação psicossocial como um processo em que é disponibilizado aos indivíduos que sofrem de incapacidade por doença mental, a oportunidade de atingirem o seu nível máximo de funcionamento independente e autónomo na comunidade. Os seus objetivos são: o empoderamento dos utilizadores, a redução da discriminação e do estigma, a otimização das competências individuais e sociais, a redução da sintomatologia, a redução da iatrogenia e o aumento do apoio familiar. A reabilitação psicossocial relaciona-se com autocuidado, incapacidade funcional e adaptação. O termo revela uma viragem da perspetiva focada na doença para uma perspetiva de modelo social de saúde mental. A reabilitação psicossocial é, pois, um modelo de cuidados que cruza com os valores da enfermagem.
Em Portugal, através do Plano Nacional para a Saúde Mental 2007-2016, reconhece-se a necessidade dos serviços de saúde mental promoverem a reabilitação psicossocial orientada para o Recovery (Ministério da Saúde [MS], 2008). Esta moldura normativa possibilita a prática de enfermagem especializada nesse contexto e o desenvolvimento de atividades promotoras de esperança, pois esta é indissociável do conceito de Recovery. O Recovery (recuperação pessoal) é conceptualizado por Anthony (1993) como
…um processo único, profundamente íntimo, de transformação das atitudes, valores, sentimentos, objetivos, aptidões e/ou funções das pessoas. É uma forma de viver uma vida satisfatória, esperançosa e contribuir para a vida mesmo dentro dos limites impostos pela doença mental. A recuperação pessoal envolve o desenvolvimento da nova orientação e objetivo geral na vida de um indivíduo enquanto se supera os efeitos catastróficos da doença mental. (p.527).
O Recovery é considerado uma jornada pessoal dirigida à redescoberta de si mesmo no processo de aprender a conviver com uma doença e da aceitação do estado de saúde. Relaciona-se com autoatualização e com ter controlo sobre a sua vida. A nível individual, trata-se do desenvolvimento da esperança e de uma visão para o futuro.
A reabilitação psicossocial orientada para o Recovery é um processo abrangente que utiliza uma combinação de técnicas, intervenções farmacológicas e não farmacológicas, bem como atividades ocupacionais e condições ambientais específicas que visam a promoção do Recovery (Psychosocial Rehabilitation/Réadaptation Psychosociale [PSR/RPS] Canada, 2021).
O conceito de esperança aparece como basilar para o desenvolvimento do Recovery. O International Council of Nurses [ICN] (2019) define a esperança como um “sentimento de ter possibilidades, confiança nos outros e no futuro, entusiasmo pela vida, expressão de razões para viver e de desejo de viver, paz interior, otimismo; associado ao traçar de objetivos e mobilização de energia.”.
Promover a esperança em saúde mental representa incidir nas potencialidades dos clientes, com enfoque no presente, mas planeando o futuro, com base na confiança, na capacidade de atingir metas realistas, desenvolvendo estratégias de coping eficazes, possibilitando o alcance e manutenção da sua capacidade funcional máxima e qualidade de vida (Querido, 2020).
A promoção da esperança é uma intervenção fundamental a ser desenvolvida por enfermeiros especialistas em saúde mental e psiquiátrica (EESMP), especialmente no contexto de reabilitação psicossocial orientada para o Recovery.
Pretendemos então elaborar uma Revisão Integrativa da Literatura (RIL) que vise identificar estudos ou abordagens teóricas acerca de intervenções de enfermagem especializadas e autónomas promotoras da esperança na reabilitação psicossocial orientada para o Recovery.
Metodologia
Tendo em vista o objetivo que definimos, elaborámos a seguinte questão de investigação “Quais as intervenções especializadas e autónomas de enfermagem de saúde mental utilizadas na promoção da esperança, na população em processo de reabilitação psicossocial?”.
Na estratégia de pesquisa utilizamos o acrónimo PICO (População, Intervenção, Contexto e Outcome (Resultado)): P - População adulta portadora de doença mental, sem défices cognitivos, em processo de reabilitação psicossocial orientada para o Recovery; I - Intervenções especializadas e autónomas de ESMP utilizadas na promoção da esperança; C - Não se aplica; O - Otimização da esperança.
A pesquisa decorreu entre os meses de outubro e dezembro de 2021, utilizaram-se onze recursos informáticos, sendo seis bases de dados eletrónicas (Medline, Cinahl, BDENF, Cochrane Plus, Nursing & Allied Health Collection, Elsevier), o RCAAP (Repositório Científico de Acesso Aberto de Portugal, duas bibliotecas digitais (ESEL, Scielo), uma revista científica (American Journal of Nursing) e o Google Académico. Usámos os descritores: “Hope”, “Psychiatric Nursing”, “Mental Health Recovery” e “Psychiatric Reahbilitation” com os quais efetuámos a pesquisa. Utilizámos os operadores booleanos AND e OR e desta forma obtivemos a frase de pesquisa (“Hope” AND “Psychiatric Nursing” AND (“Mental Health Recovery” OR “Psychiatric Reahbilitation”)). Em português utilizámos os descritores traduzidos “Esperança” e “Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiátrica” e (“Recovery em saúde mental” ou “Reabilitação psicossocial”).
Seleção dos estudos
A pesquisa foi limitada a artigos, teses e relatórios de estágio dos últimos 10 anos, pois verificámos que os últimos cinco anos foram pobres na produção de estudos direcionados para este assunto. Os critérios de seleção dos artigos foram: que apresentassem resumo e texto completo; tivesse sido efetuada revisão por pares; e estivessem publicados nas línguas português, inglês e espanhol. Foram incluídos os artigos, teses e relatórios de estágio que permitiam responder à questão de investigação e excluídos os que referiam intervenções de outros profissionais que não enfermeiros de saúde mental e psiquiátrica; que apenas tratavam do assunto “Esperança”; que avaliavam o efeito da esperança noutra população e noutro contexto; se a finalidade fosse validação de escalas; e se se tratasse de editoriais ou artigos de opinião. Por forma a minimizar o viés, a inclusão dos estudos foi avaliada independentemente por dois revisores, um terceiro revisor seria consultado em caso de desacordo ou dúvidas. A estratégia de seleção encontra-se demonstrada na Figura 1.
Foram incluídos nesta revisão integrativa 7 artigos. Todos apresentam um nível de evidência fidedigno segundo o Joanna Briggs Institute (JBI >50%), após terem sido aplicadas as grelhas correspondentes a cada artigo segundo os níveis de evidência JBI. Esta etapa foi realizada pelos mesmos dois revisores de forma independente e os desacordos relativos à avaliação da qualidade dos estudos foram resolvidos com o terceiro revisor.
Resultados
A extração de dados foi efetuada utilizando os instrumentos propostos pelo JBI (2020) para estudos qualitativos e publicações de texto para extrair informações de acordo com as questões de pesquisa. Esta foi realizada pelos mesmos dois revisores de forma independente e as dúvidas e desacordos foram resolvidas consultando um terceiro revisor. Passamos a apresentar os resultados obtidos no Quadro 1.
Discussão
Esta RIL inclui estudos de natureza bidirecional, ou seja, por um lado defendem que devem ser criados processos formais de instilação da esperança, por outro, realçam que a importância desta intervenção dever ser personalizada. De todo modo, esta dupla perspetiva relaciona-se intimamente com a prática do EESMP, que decorre em vários contextos, tanto sistémicos como no das relações interpessoais
Apesar da promoção da esperança ser reconhecida como elemento essencial para a reabilitação psicossocial orientada para o Recovery, verifica-se que não existem modelos de intervenção estruturados (Monteiro, 2014).
O Modelo de Dufault e Martochio, a teoria de Snyder alinhada com a teoria de Autoeficácia de Bandura constituem bases teóricas e conceptuais adequadas para a perspetivação da esperança como foco de atenção em ESMP (Dias, Valentim, Seabra, & Nogueira, 2020).
A esperança pode ser concebida como um sentimento do presente, com ligação ao passado e orientada para o futuro. Desta forma as intervenções propostas pelos autores abrangem este sentido de continuum temporal.
Eriksen, Arman, Davidson, Sundfør & Karlsson (2014) referem que a esperança é especialmente importante no processo de reabilitação psicossocial orientada para o Recovery, devido à vulnerabilidade dos clientes e a sua sensibilidade à presença dos profissionais de saúde, que são vetores da consolidação da esperança, otimismo e empoderamento através da relação terapêutica estabelecida.
Num estudo efetuado por Çam, Eskisu, Kardas, Saatcioglu, & Gelibolu (2020) concluiu-se que a autoeficácia foi significativamente prevista pela resolução de problemas, enquanto a esperança foi significativamente prevista pela resolução de problemas e a autoeficácia.
Roberts & Boardman (2013) refere a existência de uma associação estreita entre a capacidade de definir objetivos e resolver problemas, com a promoção da esperança.
Shekarabi-Ahari, Younesi, Borjali, & Ansari-Damavandi (2012) identificaram relevância estatística na otimização da esperança, pela utilização de terapia de grupo numa população de mães com depressão, cujos filhos eram portadores de doença oncológica.
Segrin & Taylor (2007) verificaram que as relações positivas com outras pessoas medeiam a associação entre habilidades sociais e bem-estar psicológico, onde se inclui ser detentor do sentimento de esperança.
As intervenções promotoras de esperança como identificação de símbolos de esperança, elaboração de diários e kits (estojos) de esperança, bem como a utilização de cartas terapêuticas de alta são defendidas por Querido (2020).
O Recovery em pessoas portadoras de esquizofrenia e a adesão ao regime medicamentoso são potenciados pela esperança, sendo esta considerada uma componente essencial ao êxito dos processos. A promoção da esperança impacta vários domínios da vida da pessoa, como o seu bem-estar e qualidade de vida (Kelly & Gamble, 2005; Usher, 2001).
Embora apenas dois dos artigos incluídos na RIL aludissem às intervenções de ESMP promotoras de esperança no processo de reabilitação psicossocial orientada para o Recovery, podemos verificar após a síntese integrativa, que as intervenções propostas são as mesmas que as utilizadas noutros processos de tratamento e recuperação de doença mental; o que nos permite argumentar que as intervenções de ESMP promotoras de esperança não devem ser excluídas dos processos de tratamento e recuperação da doença mental.
Conclusão
A elaboração desta RIL permitiu identificar as intervenções especializadas e autónomas de enfermagem utilizadas na promoção da esperança em reabilitação psicossocial orientada para o Recovery, fundamentando a prática do EESMP nas dimensões de intervenção de grupo e no contexto da relação terapêutica individual.
A RIL salienta o valor da relação terapêutica como contexto onde pode ocorrer a promoção da esperança, e a necessidade do EESMP se mobilizar como instrumento promotor de esperança incutindo o sentimento no cliente. As intervenções de enfermagem promotoras de esperança (IEPE) dirigidas à população em processo de reabilitação psicossocial orientada para o Recovery devem assentar na facilitação da consolidação das relações interpessoais e sociais, bem como no robustecimento das suas redes de apoio. É também necessário a identificação e fortalecimento dos atributos pessoais da esperança; a identificação e mobilização de emoções positivas associadas à esperança; a elaboração de recursos materiais promotores do sentimento; a aprendizagem de formulação de objetivos realistas; e dar atenção à sua dimensão transcendente e espiritual.
As IEPE identificadas nesta RIL, evidenciam a necessidade e importância da integração destas na prática dos EESMP que prestam cuidados a pessoas em processo de reabilitação psicossocial orientada para o Recovery.
O fenómeno da “Esperança” carece de investimento por parte dos investigadores em saúde mental e psiquiátrica, particularmente na população em processo de reabilitação psicossocial orientada para o Recovery, pois apesar de ser consensual que a esperança é um conceito integrante deste processo, apenas identificámos um estudo dirigido a esta população em particular.