Introdução
A gestação ocasiona diversas mudanças fisiológicas, anatômicas, hormonais e psicológicas na mulher, que podem afetar o seu cotidiano (Alves e Bezerra, 2020). As modificações gravídicas podem repercutir no padrão de sono no período gravídico. O sono possui papel essencial na consolidação da memória, termorregulação corporal e na restauração energética, sendo essencial para diversos sistemas, como o cardiovascular, momento na qual a frequência cardíaca e pressão arterial diminuem (Moura et al., 2021).
As alterações do sono durante o período gravídico podem causar efeitos diretos na qualidade e duração do sono, tornando-o menos eficiente, dificultando o processo de adormecer e ocasionando despertares noturnos (Crude et al., 2013). O sono inadequado pode causar diminuição no desempenho no trabalho, irritabilidade, dificuldade na concentração, inquietação e diminuição na capacidade de suportar a dor, além de outras alterações sistêmicas que podem afetar tanto a gestante quanto o feto (Crude et al., 2013; Silvestri & Aricò, 2019).
Dentre alterações sistêmicas, a alteração do sono nas gestantes torna propício o desenvolvimento de diabetes mellitus gestacional, cardiomiopatias, tromboembolismos venosos, restrições do crescimento e parto pré-maturo fetal (Silvestri et al., 2019). O tempo de sono reduzido a seis horas aumenta o risco de parto prematuro, pré-eclâmpsia, trabalho de parto prolongado, diminuição dos níveis de progesterona e baixo peso ao nascer (Anbesaw et al., 2021). Condições de saúde mental ocorridas durante a gravidez, incluindo depressão, ideações suicidas e psicose pós-parto também são influenciadas por problemas no sono (Anbesaw et al., 2021). Essas alterações são esperadas na gestação e, dada as consequências para o binômio materno-fetal, torna-se essencial o rastreio e identificação das alterações no sono por profissionais da saúde, visando uma intervenção precoce e resolutiva (Alves e Bezerra, 2020; Calou et al., 2018; Sedov et al., 2018).
Na gestação há o aumento de alterações do sono, com impactos relevantes na saúde das mães e crianças durante e após gravidez. O levantamento dos dados sobre a prevalência deste fenômeno e os seus fatores associados tem potencial de subsidiar ações de prevenção, diagnóstico precoce e tratamento adequado no cuidado pré-natal. No entanto, ainda são limitadas as evidências de estudos para este público (Sedov et al., 2018), incluindo o cenário do norte de Minas Gerais. O presente trabalho teve como objetivo verificar a prevalência de alteração do sono em gestantes e os fatores associados.
Metodologia
Trata-se de um estudo integrante da pesquisa intitulada “Estudo ALGE - Avaliação das condições de saúde das gestantes de Montes Claros-MG: estudo longitudinal”. Consiste em um estudo epidemiológico, transversal e analítico realizado na zona urbana do município de Montes Claros, norte de Minas Gerais, com gestantes.
Constituiu-se como a população do estudo, as gestantes cadastradas nas equipes da Estratégia Saúde da Família (ESF), da zona urbana do município de Montes Claros, no ano de 2018. O cálculo amostral foi estabelecido visando a estimar parâmetros populacionais com prevalência de 50% (para maximizar o tamanho amostral e devido ao projeto contemplar diversos eventos), intervalo de 95% de confiança (IC 95%), e nível de precisão de 2,0%. Fez-se correção para população finita (N=1.661 gestantes) e para compensar as possíveis não respostas e perdas, estabeleceu-se um acréscimo de 20%. Os cálculos evidenciaram a necessidade de participação de, no mínimo, 1.180 gestantes. A seleção da amostra considerou todos os polos da ESF do município, que no período desta pesquisa totalizavam 15. O número de gestantes amostradas em cada polo foi proporcional à sua representatividade em relação à população total de gestantes cadastradas.
Foi realizado o contato com os gestores da coordenação da APS do município, para sensibilização e explicação sobre o propósito da pesquisa e sua autorização. Em seguida, os pesquisadores visitaram as equipes de saúde da família para esclarecimentos sobre o estudo e identificação das gestantes da área de abrangência. Uma equipe de entrevistadores (formada por profissionais da área da saúde e por acadêmicos de iniciação científica) realizou contato telefônico inicial com as mulheres, com realização do convite e explicações para a sua participação no estudo. Após anuência, foi agendado o dia e horário, nas unidades de saúde da ESF ou nos domicílios das participantes conforme a disponibilidade da gestante para a coleta dos dados. O período de coleta de dados abarcou os meses entre outubro de 2018 a novembro de 2019. Incluiu-se no estudo as gestantes que estavam cadastradas em uma equipe de saúde da família da APS, em qualquer idade gestacional. Não foram incluídas as mulheres que estavam grávidas de gemelares e as que apresentavam comprometimento cognitivo, conforme informação do familiar e/ou da equipe da ESF.
Um estudo piloto com gestantes cadastradas em uma unidade da ESF (que não foram incluídas nas análises do estudo) foi realizado com o objetivo de padronizar os procedimentos da pesquisa, posteriormente à capacitação dos entrevistadores. Para a coleta de dados foi realizada aplicação de um questionário que abordava as seguintes características: fatores socioeconômicos (idade, situação conjugal, escolaridade, participação no Bolsa Família e renda familiar), ocupacionais (tipo de trabalho materno), obstétricos (estágios de gestação), comportamentais e qualidade de vida (sono, tabagismo e consumo de álcool, qualidade de vida), sociais (apgar familiar, apoio social e espiritualidade), emocionais (apego materno-fetal, estresse e sintomas de depressão).
A avaliação da alteração no sono foi investigada por meio da seguinte questão: “Você apresentou alterações no sono durante a gestação?”, com as seguintes opções de resposta: 1) sim, aumento de sono; 2) sim, diminuição de sono; 3) Sim, fase de aumento do sono e fase de diminuição do sono; 4) Não apresentei nenhuma alteração do sono. A funcionalidade familiar, foi avaliada por meio do instrumento APGAR Familiar. O instrumento é constituído por cinco perguntas, em escala tipo Likert, com três possibilidades de respostas com pontuação que varia de zero a dois pontos. O escore obtido por meio do somatório dos itens poderá ser de zero a dez pontos, com a seguinte classificação: de 0 a 4 pontos, elevada disfunção familiar; de 5 a 6, moderada disfunção familiar; e de 7 a 10, boa funcionalidade familiar. Esta variável foi categorizada em família funcional (7-10) ou família disfuncional (< 6) (Silva et al., 2014).
Para averiguar o apoio social, utilizou-se a escala Medical Outcome Studies (MOS). Este instrumento é constituído por 19 itens, em uma escala de likert de cinco pontos. O escore final é obtido por meio da somatória das questões, sendo que quanto mais próximo de 100 melhor o apoio social percebido. Os escores foram categorizados, em alto > 66 e baixo nível <66 de apoio social (Griep et al., 2005).
A qualidade de vida foi avaliada por meio do Índice de Qualidade de Vida de Ferrans e Powers (IQVFP) adaptado para gestantes (Fernandes e Vido, 2009). O instrumento original é composto de 33 itens, sendo que na versão para gestantes, foram incluídas três questões específicas. A cada item atribuem-se valores em uma escala crescente de satisfação (primeira parte) e de importância (segunda parte) que varia de 1 a 6. Os valores de cada questão são computados em índices, resultando em valores que variam de 0 a 30. As instruções para o cálculo dos escores do Índice de qualidade de vida e a sintaxe computadorizada estão disponíveis no web site do IQVFP (Ferrans & Powers, 2008). A variável foi categorizada em qualidade de vida menor ou igual a média e maior que a média, sendo a última a categoria de referência.
A Escala de Apego Materno foi utilizada para avaliar o apego materno fetal. Este instrumento contém 24 itens, com cinco possibilidades de respostas do tipo likert. Após somatória dos itens, o escore final foi categorizado em baixo apego materno-fetal (24-47 pontos), médio (48-97 pontos) e alto (98-120 pontos) (Feijó, 1999).
Para estimar o nível de estresse, fez-se o uso da Escala de Estresse Percebido (Perceveid Stress Scale, PSS-14), composta por 14 questões, em escala de likert, variando de 0 a 4. Para a obtenção do escore final, reverteu-se os escores dos itens positivos e somou-se as respostas dos 14 itens (Luft et al., 2007). Categorizou-se como presença de sintomas se escore >30 e ausência de sintomas se escore ≤ 30.
A identificação de sintomas depressivos foi realizada por meio da Escala de Rastreamento Populacional para Depressão CES-D, composta por 20 itens, em escala de likert. O escore final varia de 0 a 60 pontos, sendo os itens 4, 8, 12 e 16 pontuados em ordem decrescente. Utilizou-se como ponto de corte da escala CES-D para identificar presença de sintomas depressivos, maior ou igual a 16 pontos (Radloff, 1977).
A organização e análise dos dados foi realizada com a utilização do software IBM SPSS Statistics versão 22.0 para Windows®. ®. As variáveis investigadas foram descritas por meio de sua distribuição de frequência absoluta e percentual. Foram realizadas análises bivariadas, entre a variável dependente (alteração do sono) e as variáveis independentes, por meio do teste qui-quadrado, adotando-se o nível de significância de 5% para inclusão das variáveis independentes no modelo múltiplo.
O estudo encontra-se em consonância com as normas para pesquisas envolvendo seres humanos, estipuladas pela Resolução número 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde. O projeto desta pesquisa foi aprovado pelo comitê de Ética em Pesquisa sob o número 2.483.623. As gestantes que aceitaram participar do estudo assinarão o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Para as gestantes menores de 18 anos os pais ou responsáveis assinaram o TCLE e as gestantes o Termo de Assentimento Livre e Esclarecido (TALE) . A Coordenação da Atenção Primária à Saúde de Montes Claros assinou o Termo de Concordância da Instituição para Participação em Pesquisa.
Resultados
Participaram do estudo 1279 gestantes. A maioria das participantes apresentou idade entre 21 e 30 anos (48,7%), afirmou possuir companheiro (76,7%), e ter cursado o ensino médio (64,9%). Em relação à participação no Programa Bolsa Família, 79% afirmaram não ter acesso ao benefício. Verificou-se que 44,9% da amostra ganhavam menos de um salário mínimo mensal e 56,4% afirmaram ser dona de casa, fazerem trabalhos informais temporários ou não possuírem trabalho (Tabela 1).
Em relação às caraterísticas obstétricas, a maior parte das participantes se encontravam no segundo trimestre de gestação (40,3%). Quanto aos aspectos comportamentais, 96,1% das gestantes não eram tabagistas e 88,5% não consumiam álcool. No que diz respeito aos aspectos sociais, 83,4% das participantes consideraram possuir uma família funcional e 81,2% consideraram possuir um alto apoio social (Tabela 1).
Na análise da qualidade de vida, 59,1% das mulheres consideraram possuí-la acima da média. A análise dos fatores emocionais evidenciou que 63,4% da amostra possuía médio apego materno-fetal, 83,4% não possuíam sintomas de estresse e 58,6% não apresentavam sintomas de depressão (Tabela 1).
Verificou-se que 87,5% das participantes apresentavam alterações do sono durante a gestação. O aumento do sono foi relatado por 50,5%, a diminuição por 21,8% e 15,1% referiram tanto uma fase de aumento quanto uma de diminuição do sono.
Na análise bivariada, as variáveis que apresentaram associações significantes com o desfecho até 20% foram: estágio da gestação (0,193), apoio social (p= 0,032), qualidade de vida (p<0,001), estresse (p= 0,009) e sintomas de depressão (p= 0,005) (Tabela 1). Todas estas variáveis, exceto o estágio gestacional, também apresentaram associação com a alteração de sono ao nível de 5%. Na análise múltipla, a qualidade de vida acima da média mostrou-se como fator protetor para a alteração de sono (RP ajustada: 0,482, IC95% 0,482; p=<0,001).
Discussão
Nesse estudo, cerca de nove em cada dez gestantes relatou sono alterado durante o período gestacional. Os fatores associados com a alteração do sono individualmente na análise bivariada ao nível de 5% foram o apoio social, a qualidade de vida, o estresse e os sintomas de depressão. A qualidade de vida permaneceu associada à variável desfecho após ajuste do modelo.
Este estudo verificou uma alta prevalência de alterações no sono nas gestantes pesquisadas. Uma metanálise envolvendo 24 estudos com gestantes reportou que 45,7% das participantes apresentavam baixa qualidade de sono (Sedov et al., 2018). Estudo realizado com gestantes na Espanha, em clínicas de saúde do Distrito Sanitário Metropolitano de Granada, verificou que 65,67% apresentavam baixa qualidade de sono. No cenário nacional, dois estudos realizados em São Paulo (SP) entre gestantes atendidas nos ambulatórios de pré-natal da UNIFEPS-EPM e no Hospital Ipiranga verificaram que 65,9% e 70% das gestantes, respectivamente, apresentaram baixa qualidade de sono causada tanto pela insônia quanto pela hipersonia com sono não reparador (Crude et al., 2013). As duas alterações causam irritabilidade, dificuldade de concentração e cansaço, principalmente após o primeiro trimestre, cujas etiologias possíveis são, em parte, fisiológicas, como desconforto de posicionamento e síndrome das pernas inquietas (Crude et al., 2013).
As alterações de sono durante a gestação ocorrem por aspectos fisiológicos e emocionais como sensibilidade aumentada nos mamilos, nictúria, preocupação com a saúde e nascimento do bebê (Calheiros et al., 2013). O comprometimento do sono pode levar a maior exposição a riscos de doenças cardiometabólicas, e na gestação, pode contribuir para o desenvolvimento de Diabetes Melitus Gestacional, pré-eclampsia, cardiomiopatias e tromboembolismos venosos, condições de alerta para Atenção Primária a Saúde (Anbesaw et al., 2021; Silvestri et al., 2019). Cabe ao profissional de saúde, o acolhimento e atendimento holístico a essa multicausalidade, devendo discernir achados normais dos patológicos (Calheiros et al., 2013).
Neste estudo, verificou-se que o apoio social apresentou associação significativa com alterações do sono na gestação. Uma rede de apoio significativa direciona maiores possibilidades de bem-estar, autoestima e pertencimento da gestante e, também, uma experiência qualitativamente superior do processo gravídico, relacionando-se, até mesmo, com menores índices de depressão, ansiedade e estresse no pós-parto (Maffei, Menezes e Crepaldi, 2019). Por outro lado, uma carência de apoio cursa com prejuízos significativos à saúde da gestante e sua prole, podendo ser complicações da falta de acolhimento e decorrentes da sobrecarga de tarefas e funções que recaem sobre gestantes com baixo suporte (Maffei et al., 2019). Dessa forma, a qualidade do apoio social tem impacto sobre o sono de gestantes, principalmente pela sua relação íntima ao estado psíquico e emocional delas (Maffei et al., 2019).
A variável estresse apresentou-se associada a presença de alterações de sono nas gestantes pesquisada. Pesquisa realizada com 1152 gestantes pacientes de 54 hospitais e centros comunitários de saúde, na zona urbana da cidade Shenyang, província de Liaoning na China, também verificou a associação entre qualidade do sono e o estresse (Gao et al., 2019). Em um estudo realizado com gestantes etíopes, verificou-se que o estresse associou-se significativamente à presença alterações no sono, além de aumentar em cerca de 1,85 vezes a probabilidade da gestante desenvolver má qualidade do sono em comparação às participantes sem histórico de estresse. Isso demonstra o papel do profissional da saúde na avaliação e acompanhamento dos sintomas de estresse na gestante, buscando uma avaliação multidimensional da saúde, a fim de evitar o desenvolvimento de alterações do sono (Alves et al., 2021).
Os sintomas depressivos estiveram associados a variável desfecho investigada. Em um estudo realizado na Holanda, com gestantes portadoras de doença mental, participantes de um estudo clinico randomizado, confirmou a relação de alterações da qualidade, duração e distúrbios do sono e disfunção diurna com o desenvolvimento de sintomas depressivos na gravidez, aferindo as variáveis de qualidade de sono e depressão pelo uso do ISQP e EPDE. Diante disso, ao relatar as alterações de sono, todos os esforços possíveis devem ser incentivados para atender as mulheres grávidas, incluindo aconselhamento psicológico e avaliação psiquiátrica, evitando possíveis efeitos da depressão sobre o binômio materno-fetal. (Silvestri et al., 2019).
A qualidade de vida, que envolve o bem-estar físico, mental, psicológico e emocional da gestante, além de outros fatores que afetam diretamente a sua vida, esteve associada às alterações do sono tanto individualmente como na análise ajustada. Autores sugerem que mulheres sem ocupação, inativas em contexto de lazer, com maior número de problemas de saúde e insatisfeitas com a vida apresentam menor qualidade de vida, se associando à autoavaliação ruim do sono e presença de alterações como dificuldade de iniciar o sono, de mantê-lo e sensação de sono insuficiente (Barros et al., 2019). A qualidade do sono é essencial para os seres humanos em qualquer fase da vida e nota-se que a mulher grávida está suscetível à redução da qualidade de vida devido ao sono prejudicado (Calou et al., 2018).
Em vista do papel organizador do Sistema Único de Saúde exercido pela Atenção primária, destacando-se o caráter de porta de entrada do sistema, dotado de longitudinalidade, incluindo a assistência pré-natal, esse nível de atenção demonstra papel crucial quanto ao manejo dos distúrbios de sono, já que índices apontam acometimento de cerca de um terço de adultos por distúrbios quanti-qualitativos do sono (de Souza, et al., 2021). Dessa forma, reforça-se a importância da análise epidemiológica da população para o planejamento, avaliação e organização dos serviços de saúde capazes de identificar as gestantes expostas às alterações de sono, a fim de oferecer suporte, evitando futuras consequências tanto para a mãe quanto para a prole.
Para a prática clínica, o presente estudo possui relevância ao estabelecer fatores que se associam às alterações do sono entre gestantes. Com isso, a intervenção sobre esses fatores na Atenção Primária à Saúde se torna importante para a manutenção da qualidade do sono durante o período pré-natal, uma vez que o comprometimento do sono ocasiona desfechos negativos no binômio materno-fetal (Moura et al., 2021).
Este estudo tem como limitação o uso do autorrelato. Para minimizar os seus efeitos, instrumentos validados foram, preferencialmente, utilizados. Por outro lado, o estudo tem como ponto forte ser uma investigação de base populacional, com um tamanho amostral expressivo, o que fortalece as associações encontradas.