Introdução
A “Confusão aguda”, segundo o International Council of Nurses (ICN) (2019), é o diagnóstico de enfermagem que representa a entidade nosológica designada por delirium. Este último é uma síndrome neurocognitiva considerada como diagnóstico médico previsto no Manual de Diagnóstico e Estatística das Perturbações Mentais (DSM-V) (American Psychiatric Association [APA], 2014) e pela Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados com a Saúde (CID-10), podendo apresentar-se sob a forma de delirium hiperativo, hipoativo, misto, sindromático e delirium tremens (específico do síndrome de abstinência alcoólica) (APA, 2014). Os fatores de risco para o delirium podem ser classificados como preexistentes: idade avançada, compromisso cognitivo (demência), acidente isquémico transitório e acidente vascular cerebral, compromisso funcional, restrição sensorial (perda auditiva e visual), abuso e dependência de álcool, depressão major, comorbilidade e multimorbilidade complexa; e predisponentes: imobilização e restrições físicas, desequilíbrios fisiológicos/metabólicos e hidroeletróliticos, polimedicação, medicamentos psicoativos ou sedativos, infeção/sépsis, cirurgia, trauma, cateter urinário entre outros, tornando o delirium numa entidade nosológica multifatorial (Setters & Solberg, 2017). Comumente identificado em contexto hospitalar, o delirium apresenta-se com uma prevalência que varia entre 10% a 87% em serviços médicos, entre 11% a 74% em serviços cirúrgicos, entre 26% a 89% em serviços de cuidados críticos e entre 25% e 88% em serviços de oncologia. No idoso, uma vez hospitalizado, verifica-se uma prevalência do delirium que varia entre 10,5% e 70% de acordo com o contexto clínico em que se encontra (Maldonado, 2017). São vários os estudos que reconheceram uma maior prevalência de delirium em serviços de cuidados críticos e serviços de oncologia, à qual se associa um aumento, de duas a quatro vezes mais, do risco de mortalidade, morbilidade, tempo de internamento, custos em saúde, tempo de ventilação mecânica e agravamento da cognição a longo prazo (Maldonado, 2017; Setters & Solberg, 2017). A natureza flutuante dos sintomas de delirium faz com que seja pouco reconhecido e subdiagnosticado pelos profissionais de saúde (Oldham et al., 2018) e desconhece-se a sua prevalência em Portugal, pelo que se teoriza que se aproxime à dos parceiros europeus (Delgado et al., 2021; Prayce et al., 2018). Se por um lado, em alguns países como Estados Unidos da América, Alemanha e Brasil, se aponta para a taxa de prevenção da confusão aguda enquanto indicador sensível aos cuidados de enfermagem (Birge et al., 2020; Gogol, 2008; Seiffert et al., 2020), a evidência mais recente revela que a prevenção e tratamento da confusão aguda não surge na literatura enquanto indicador de estrutura, processo e resultado e sensível aos cuidados de enfermagem (Oner et al., 2021). Ainda que o delirium seja um diagnóstico médico, conhecido na literatura por uma variedade de termos diferentes, como estado mental alterado, confusão aguda, alteração aguda do estado mental, encefalopatia, agitação, alteração do nível de consciência, falência cerebral e até psicose (Maldonado, 2017), a “Confusão aguda” é o diagnóstico de enfermagem entendido como o seu análogo, previsto nos diagnósticos de enfermagem do ICN (2019), da NANDA International, Inc (Johnson et al., 2013) e definido por esta última como perturbações reversíveis que se desenvolvem num curto período de tempo na consciência, atenção, cognição e perceção. O diagnóstico de enfermagem é fundamental para a identificação de intervenções de enfermagem que visem o alcance de indicadores de resultados por parte dos enfermeiros. Trata-se de um julgamento clínico cuja centralidade é a pessoa, família e ou cuidador, grupo ou Comunidade, relativamente aos processos corporais, processos psicológicos e processos de transição (Ordem dos Enfermeiros, 2021). É com base neste julgamento clínico que o enfermeiro define as intervenções de enfermagem passíveis de dar resposta aos diagnósticos identificados, podendo prescrever intervenções autónomas e/ou interdependentes. De acordo com o Regulamento do Exercício Profissional dos Enfermeiros, são intervenções autónomas de enfermagem aquelas que são realizadas sob a sua única e exclusiva iniciativa e de acordo as respetivas qualificações profissionais (Decreto-Lei nº 161,1996). Estas têm por base uma metodologia científica e a sua organização, coordenação, execução, supervisão e avaliação são da inteira responsabilidade dos enfermeiros, visando a promoção da saúde, a prevenção da doença, o tratamento, a reabilitação e a reinserção social da pessoa, família e ou cuidador, grupo ou comunidade (Decreto-Lei nº 161, 1996). Perante as recomendações mais recentes sobre o delirium, expressas no guia de boas práticas do National Institute for Health and Care Excellence (NICE) (2019) percebe-se que, embora haja evidência limitada e por vezes controversa da prevalência do delirium em contexto hospitalar e extra-hospitalar, o que existe não se centra apenas na avaliação e intervenção de Enfermagem, mas sim em avaliações e intervenções multidisciplinares cujo foco passa, sobretudo, pela prevenção do delirium do que pela prevenção da confusão aguda, assumindo-se este como um fator para prognóstico de morte, demência, tempo de internamento hospitalar, quedas, entre outras complicações (Mattison, 2020; NICE, 2019). Nesse quadro importa identificar, na literatura, as intervenções prescritas autonomamente pelos enfermeiros com integridade referencial para o diagnóstico “Confusão aguda” e que contribuem para os seus indicadores de resultado e para a melhoria da qualidade dos cuidados de enfermagem. Assim, para a elaboração deste trabalho optou-se pela realização de uma revisão integrativa da literatura com o objetivo de identificar as intervenções autónomas de enfermagem passíveis de prevenir a “Confusão aguda”.
Método
Revisão integrativa da literatura, seguindo o método proposto por Sousa et al. (2018) que consiste em seis fases: 1) identificação do tema e seleção da questão de pesquisa; 2) critérios de inclusão e exclusão; 3) definição das informações a serem extraídas dos estudos incluídos; 4) avaliação dos estudos incluídos; 5) interpretação dos resultados e 6) apresentação da síntese do conhecimento.
Identificação do tema e seleção da questão de pesquisa
Revisão sobre as intervenções autónomas de enfermagem passíveis de prevenir a “Confusão aguda”, partindo da questão: Quais as intervenções autónomas de enfermagem passíveis de prevenir a “Confusão aguda” em adultos?
Critérios de inclusão e exclusão de estudos
Esta fase incluiu os descritores utilizados, os motores de busca/ bases de dados consultadas, as estratégias de pesquisa, os critérios de inclusão e de exclusão delimitados para determinar pesquisas primárias relevantes. Foram analisados os termos-chave/descritores orientadores da pesquisa bibliográfica, recorrendo ao browser Medical Subject Hedings (MeSH), onde se obtiveram os seguintes descritores: nursing care; nursing assessment; confusion e delirium. Como termos para a pesquisa identificaram-se: intervention e nurse management. A obtenção dos termos chave e descritores possibilitou estruturar a frase booleana, recorrendo à conjugação dos operadores booleanos AND e OR com os instrumentos adicionais, parênteses, aspas e asterisco, resultando em: ("nursing care" or "nurse management" or “intervention” or "nursing assessment") and (“confusion” or “delir*”). A pesquisa decorreu em outubro de 2020, com recurso às bases de dados CINAHL®Complete; MEDLINE Complete; Nursing & Allied Health collection: Comprehensive; Cochrane Central Register of Controlled Trials; Cochrane Database of Systematic Reviews e SciELO. Após a inserção da frase booleana nas bases de dados, foram aplicados os critérios de inclusão e exclusão previamente determinados. Os critérios de inclusão identificados foram: artigos publicados com texto integral entre 2015 e 2020 (a fim de discutir sobre as evidências científicas dos últimos cinco anos); artigos escritos em português, inglês e espanhol; estudos primários do tipo quantitativo, qualitativo e misto e estudos secundários; documentos de texto e de opinião e estudos encontrados nas referências bibliográficas secundárias. Os critérios de exclusão identificados foram: artigos sem texto integral, fora do âmbito da questão de partida e realizados com população de idade inferior a 18 anos.
Definição das informações a serem extraídas dos estudos selecionados
Construiu-se um instrumento de colheita de dados de forma a reunir e a sintetizar as informações chave extraídas dos estudos selecionados por forma a garantir a fiabilidade dos resultados e das conclusões e que seguiu a proposta de Sousa et al. (2018). O instrumento foi composto pelos seguintes itens: identificação do estudo, autor, ano, nível de evidência com recurso às recomendações do Joanna Briggs Institute (JBI) (2013), objetivo(s), principais resultados e intervenções autónomas de enfermagem.
Avaliação dos estudos incluídos
Os estudos foram integrados considerando o objetivo da revisão integrativa e a questão de partida. A análise foi efetuada com recurso à tabela previamente construída na etapa anterior facilitando o mapeamento dos dados recolhidos. Não foi efetuada a avaliação da qualidade metodológica dos estudos incluídos, uma vez que se pretendia identificar todas as intervenções autónomas de enfermagem e não fazer uma análise confirmatória própria das revisões sistemáticas.
Interpretação dos resultados e apresentação da síntese do conhecimento
A síntese das principais evidências e a comparação entre os dados recolhidos foi efetuada sobre a forma de um resumo narrativo e contém a discussão dos resultados e a descrição da sua relação com o objetivo e questão de investigação.
Resultados
A seleção dos artigos foi realizada por dois revisores, tendo em conta a questão de investigação, o objetivo da revisão e os critérios de inclusão e exclusão pré-especificados. Recorreu-se a um terceiro revisor nos casos em que se verificou ausência de consenso. Todos os revisores avaliaram de forma independente os estudos a incluir na revisão, e o consenso foi alcançado em todos os domínios. O recurso ao Preferred Reporting Items for Systematic Reviews and Meta-Analyses (PRISMA) (Moher et al., 2009) composto pelas etapas: identificação, seleção, elegibilidade e inclusão, permitiu identificar 71 resultados. Destes, 25 foram eliminados por se encontrarem duplicados, restando 46 documentos. Após leitura do título foram eliminados 11 documentos, permanecendo selecionados 35 para análise de resumo. A leitura do resumo conduziu à eliminação de sete documentos, restando 28. A leitura do texto integral permitiu eliminar nove documentos e eleger 19, aos quais foram aplicados todos os critérios de inclusão e exclusão. Foram eliminados cinco documentos por não responderem à questão e objetivo da investigação e quatro por apresentarem resultados pouco claros. A amostra desta revisão integrativa da literatura é composta por dez documentos que cumpriram todos os critérios de elegibilidade previstos pelo PRISMA (Moher et al., 2009). As etapas e os resultados da pesquisa encontram-se exemplificados na figura 1.
Os estudos que integraram a revisão integrativa da literatura são: duas revisões sistemáticas da literatura; quatro meta-análises; dois estudos experimentais; um estudo quasi-experimental e uma revisão da literatura. No apêndice I é possível consultar o quadro dos dados recolhidos de cada um dos documentos da amostra desta revisão. No apêndice II pode ser consultada a tabela da síntese das principais evidências. A tabela 1 apresenta as intervenções autónomas de enfermagem, passiveis de prevenir a “Confusão aguda”, agrupadas em dez domínios e cuja organização se baseia nas recomendações do NICE (2019).
Discussão
Da análise da amostra desta revisão, evidenciou-se uma grande diversidade de intervenções autónomas de enfermagem, passíveis de serem agrupadas em vários domínios de intervenção: cognitivo, abordagem à desidratação/ obstipação, hipoxia, infeção, mobilização precoce, gestão da dor, desnutrição, défice sensorial, higienização do sono e gestão do regime terapêutico. Dos vários domínios de intervenção autónoma dos enfermeiros, todos são orientados para a intervenção à pessoa. Os domínios da intervenção cognitiva e higienização do sono pressupõe também intervenções orientadas para a pessoa com o envolvimento da família. As amostras dos estudos incluídos na revisão reportam-se exclusivamente a pessoas hospitalizadas, sendo cinco deles em internamentos médico-cirúrgicos e seis em unidades de cuidados intensivos. Os resultados revelaram uma heterogeneidade de protocolos de intervenções, de escalas de avaliação, e equipas com níveis e tipos de formação diferentes. Dos dez artigos analisados, apenas dois se centram numa análise de intervenções focadas no domínio cognitivo (Deemer et al., 2020 e Munro et al., 2017) e os restantes num conjunto de intervenções denominadas de multicomponentes, por se centrarem numa abordagem em vários domínios (Bannon et al., 2019; Deng et al., 2020; Ludolph et al.,2020; Martinez et al., 2015; Mulkey et al.,2019; Oberai et al.,2018; Tovar et al., 2016; Young et al.,2020). O trabalho de Deemer et al. (2020), salienta a baixa adesão por parte dos familiares quando envolvidos na estimulação cognitiva, bem como uma inviabilidade na execução de intervenções apenas neste domínio em pessoas com ventilação mecânica. Conclui, ainda, que não foram encontradas evidências que suportem o uso de intervenções cognitivas na prevenção do delirium nesta amostra. Porém, Munro et al. (2017), demonstraram existir evidência estatisticamente significativa na redução da incidência do delirium no grupo que sofreu a intervenção de reorientação automatizada por voz de familiar. Concomitantemente, os estudos de Ludolph et al. (2020) e Tovar et al. (2016), focados em intervenções multicomponentes, demostraram uma eficácia estatisticamente significativa na prevenção do delirium. No primeiro, acresce uma fraca evidência para a utilização de protocolos específicos, como o programa HELP (Inouye, 1999), em detrimento de outras intervenções conjugadas. No segundo, as intervenções executadas com maior enfoque na prevenção do delirium foram no domínio da higienização do sono, concretizadas pela diminuição do ruído e da fototerapia. Martinez et. al. (2015) verificaram que a implementação de intervenções multicomponentes no domínio cognitivo, mobilização precoce e abordagem ao défice sensorial, revelaram uma diminuição de 30% na incidência do delirium. Oberai et al. (2018) identificaram uma diminuição estatisticamente significativa no risco de desenvolvimento de delirium em pessoas submetidas a intervenções multicomponentes, nos domínios da gestão da dor, da hidratação e da nutrição. Mulkey et al. (2019) acrescentam que não existe evidência de qual o domínio das intervenções multicomponentes mais significativa. No entanto, aponta para que as intervenções no domínio cognitivo, nomeadamente a reorientação, a higienização do sono e a mobilização precoce, sejam mais efetivas na prevenção do delirium, em detrimento de medidas farmacológicas. Adicionalmente, o trabalho de Young et al. (2020) demonstrou que intervenções multicomponentes em dez domínios não se revelaram estatisticamente significativas quanto à sua eficácia na prevenção do delirium, embora apresentem uma tendência para a diminuição da sua incidência. Os trabalhos de Bannon et al. (2019) e Deng et al. (2020) também não demostraram evidência estatisticamente significativa para a diminuição da incidência do delirium, no entanto, apontam para o benefício destas intervenções em detrimento de intervenções isoladas. Da análise da totalidade dos artigos sobressai a importância de equipas formadas e treinadas para a utilização de instrumentos de avaliação e para a implementação de intervenções que visem a prevenção de delirium.
Conclusões
Embora o delirium seja a entidade nosológica sobre a qual incidem os estudos, entende-se que as intervenções multicomponentes para a sua prevenção, têm também integridade referencial ao diagnóstico de enfermagem “Confusão aguda”. Paralelamente, percebeu-se que estas intervenções apresentam benefícios, quando comparadas com as intervenções isoladas e com as medidas farmacológicas, sugerindo melhores resultados na prevenção do delirium. Dos domínios apresentados, e aos quais se agrupam as intervenções multicomponentes, fica por identificar aqueles com maior efetividade na prevenção da confusão aguda, bem como, se protocolos baseados em menos domínios do que os dez apresentados pelo NICE (2019) são tão ou mais eficazes. De entre os domínios das multicomponentes identificados pelo NICE (2019), salienta-se a existência de intervenções autónomas de enfermagem com eficácia estatisticamente significativa nos domínios da cognição, higienização do sono, estimulação sensorial, gestão da dor, hidratação e da nutrição. As intervenções autónomas de enfermagem passiveis de prevenir a “Confusão aguda” deverão estar definidas, protocoladas e implementadas por uma equipa que possua literacia e treino. Estas necessitam de ser adaptadas à pessoa/família e sua condição de doença, aos seus significados, bem como ao ambiente em que esta se encontra. Apesar de a confusão aguda decorrer de alterações orgânicas, esta manifesta-se sobretudo por alterações comportamentais, pelo que o enfermeiro especialista em enfermagem de saúde mental e psiquiátrica poderá acrescentar valor na formação e treino das equipas no que concerne ao reconhecimento destas alterações e ao planeamento e implementação de intervenções autónomas de enfermagem para a prevenção, deteção precoce, avaliação dos resultados e continuidade dos cuidados. Assim, decorrente da diferenciação imputada aos enfermeiros especialistas em enfermagem de saúde mental e psiquiátrica, ressalva-se o seu especial contributo nos domínios cognitivo, higienização do sono, défice sensorial e gestão do regime terapêutico, sendo estes aqueles em que se regista eficácia estatisticamente significativa para a prevenção do delirium. Com a realização desta revisão integrativa da literatura, foi ainda possível perceber a necessidade de conhecer quais das intervenções autónomas identificadas podem ser atribuídas exclusivamente aos enfermeiros, assim como aquelas que podem ser indicadores sensíveis da área de intervenção especializada em enfermagem.