Considerações Iniciais
Desde 2008, quando foi publicada a Resolução do Conselho de Ministros n.º 49/2008, de 6 de março, que procedeu à aprovação do Plano Nacional de Saúde Mental, que não ocorria tão grande transformação na abordagem da saúde mental e, em particular, na organização dos serviços de saúde mental em Portugal.
A conjugação de fatores que nos últimos anos ocorreram em Portugal, iniciando por uma crise económica seguida de uma crise pandémica, promoveu um novo olhar sobre o sofrimento psíquico. As perdas associadas a estes dois momentos de crise, o aumento de atenção das pessoas para os problemas de saúde mental e a resposta exigida mobilizaram o Ministério da Saúde dos últimos Governos Constitucionais para avançar de modo efetivo com a reforma da saúde mental, tendo a publicação da Lei da Saúde Mental (Lei n.º 35/2023, de 21 de julho) e do Decreto-Lei n.º 113/2021, de 14 de dezembro, suportados na nova Lei de Bases da Saúde (Lei n.º 95/2019, de 4 de setembro), definido um caminho de respeito pela individualidade e autodeterminação da pessoa, numa perspetiva de abordagem transdisciplinar e integrada, desenvolvida prioritariamente na comunidade.
Foram igualmente estes diplomas, designadamente o Decreto-Lei n.º 113/2021, que possibilitaram a constituição de uma nova Coordenação Nacional das Políticas de Saúde Mental (CNPSM) e das Coordenações Regionais de Saúde Mental (CRSM), que permitiram tornar consequente, para a população, o que se consignou naqueles documentos.
Efetivamente, a constituição de equipas de coordenação multiprofissionais e multidisciplinares, com sensibilidade para os problemas de saúde mental, conscientes do desígnio que se lhes atribuía e motivadas para a transformação das respostas, pode aumentar a possibilidade de mudança.
A reforma atualmente em curso, beneficiou ainda do ímpeto reformista associado ao Plano de Recuperação e Resiliência (PRR) (Ministério de Planeamento, 2021), que integrou na Componente 1, referente ao Serviço Nacional de Saúde (SNS), a reforma da saúde mental.
Neste contexto, a questão que se pode e deve colocar é: qual é, e qual poderá vir a ser, o papel dos enfermeiros especialistas em Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiátrica (ESMP) na reforma da saúde mental em Portugal?
A Enfermagem tem estado sempre envolvida em todos os momentos significativos de desenvolvimento dos serviços de saúde e estreitamente implicada na melhoria de indicadores de saúde. Em relação à reforma da saúde mental, o mesmo está a suceder.
A reorganização dos serviços e a intervenção dos profissionais sustentada numa equipa multiprofissional e multidisciplinar, que se pretende de caráter transdisciplinar, é o princípio que permite a construção de equipas efetivas construídas com base na diferença formativa e na abrangência das competências que uma equipa deste tipo conjuga. Assim sendo, os enfermeiros estão convocados para todas as dimensões da reforma.
De acordo com dados recolhidos em 2022 pela Administração Central do Sistema de Saúde I.P., (ACSS) junto dos Serviços Locais de Saúde Mental (SLSM), destinados à elaboração da Rede de Referenciação Hospitalar de Psiquiatria e Saúde Mental, os enfermeiros representam cerca de metade dos técnicos existentes nos serviços (49,4%), o que significa que não pode existir mudança sem envolvimento pleno destes profissionais e sem o acompanhamento e atualização permanente que qualquer reforma determina. Entre estes, apenas 48% são enfermeiros especialistas em Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiátrica, o que determina o compromisso da CNPSM com a promoção da formação dos profissionais das equipas e, em particular, com o estímulo aos enfermeiros de cuidados gerais para a aquisição da especialidade em Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiátrica.
Importa então, nos subcapítulos seguintes, analisar alguns dos principais desenvolvimentos associados à reforma da saúde mental em Portugal.
Criação de Novas Unidades e Requalificação de Serviços
A criação de novas unidades e requalificação de serviços, que implica um investimento significativo, visa permitir a reorganização da oferta de serviços às pessoas, melhorando o seu acesso e possibilitando a substituição progressiva das respostas existentes nos três hospitais psiquiátricos anteriormente existentes. Além da preocupação com a dimensão de potencial estigmatização associada a estas instituições, procura-se garantir a integração de cuidados da pessoa com necessidade de cuidados de saúde mental que só uma instituição com outras especialidades permite. A requalificação dos serviços, por outro lado, procura complementar a capacidade dos SLSM, aumentar a oferta de serviços, e conferir melhores condições de trabalho e de acolhimento.
Setorização dos Serviços
O conceito de sectorização pode ser definido de duas formas diferentes. Primeiro, representa uma área geográfica e comunidade específica, incorporada no termo "área de abrangência". Em segundo lugar, significa também uma abordagem particular aos cuidados de saúde mental, com uma equipa de profissionais que estão familiarizados com uma comunidade e proporcionam uma continuidade de cuidados às pessoas com doenças mentais dentro de uma área específica (Breakey, 1996; Petitjean & Leguay, 2002).
A setorização dos serviços, traduzida em grande medida no estímulo à criação de novas ECSM, muito vocacionadas para a intervenção na comunidade, e para as quais tem estado dirigido o foco da formação promovida pela CNPSM, é outro dos grandes pilares da reforma da saúde mental. Estas equipas representam o paradigma da saúde mental de setor, e pretende-se que arrastem na sua dinâmica de intervenção os restantes profissionais dos SLSM e os parceiros da comunidade, em particular os Cuidados de Saúde Primários e as autarquias, mas igualmente outros que nas diferentes localidades consigam constituir-se enquanto recursos potenciadores de bem-estar e melhoria da qualidade de vida das pessoas.
Acresce ainda o reforço da implementação do terapeuta de referência, exercido por todos os profissionais, excluindo os médicos, permitindo maior proximidade, melhor conhecimento global da pessoa e do seu contexto, maior acessibilidade e, presumivelmente, maior efetividade dos cuidados prestados.
Desinstitucionalização
A desinstitucionalização não se esgota na procura de resposta para quem reside há largos anos em instituições de saúde. Esta inclui, igualmente, pessoas que após cumprimento de pena se mantêm em estruturas prisionais por ausência de outra alternativa, e os utentes que não reunindo condições para alta após internamento por agudização psicopatológica, podem usufruir de um processo reabilitativo que lhes permita mais algum tempo de suporte em contextos que permitam trabalhar essa vertente. Existem, para estas pessoas, dois instrumentos possíveis.
O projeto de desinstitucionalização foi entregue à tutela em janeiro de 2022 e propõe a disponibilização de estruturas residenciais e procedimentos de avaliação e acompanhamento dos utentes com maior vulnerabilidade que não têm indicação para os Cuidados Continuados Integrados de Saúde Mental (CCISM). Nestes, nas respostas de CCISM, existe atualmente um conjunto de tipologias que podem representar uma ferramenta importante para os profissionais dos SLSM como complemento da resposta reabilitativa. Os CCISM, não sendo uma área de responsabilidade exclusiva da CNPSM, estão, no entanto, totalmente dependentes do envolvimento das CRSM e dos profissionais dos SLSM. Sendo os CCISM relativamente recentes, requer dos SLSM maior atenção para integrar estas respostas nos processos de transição das pessoas para a comunidade, e para não os deixar transformar-se em novas estruturas de institucionalização. Nesta área observamos ainda um reduzido número de respostas para a população adulta e praticamente inexistente para a infância e adolescência.
Centros de Responsabilidade Integrada
Um outro ponto da reforma, que permite ilustrar o que se pretende desenvolver, é a experiência-piloto de Centros de Responsabilidade Integrada (CRI) (Portaria n.º 73/2024, de 29 de fevereiro). Estes configuram-se como um instrumento de gestão que permitirá aos SLSM fazer um percurso distinto daquele que as instituições hospitalares têm realizado, não obstante alguma mudança introduzida com a perspetiva da hospitalização domiciliária, que tenta inverter o atual modelo “hospitalocêntrico”. Aqui, a inclusão de metas e indicadores interdisciplinares, devem refletir o trabalho cooperativo dos enfermeiros, mas também as intervenções específicas dos enfermeiros especialistas em Enfermagem de Saúde Mental e Psiquiátrica (ESMP).
O Envolvimento dos Enfermeiros Especialistas em ESMP
Nos exemplos referidos, não existe reforma sem algum dos profissionais de saúde que habitualmente constitui uma equipa-tipo de saúde mental, mas, pela sua representatividade, a Enfermagem estabelece a ligação entre todas as unidades funcionais do SLSM e, pelas caraterísticas da disciplina e profissão, designadamente na ligação que estabelece entre funcionalidade, sofrimento mental, psicopatologia e atividades de vida diária, acompanha todo o processo desde a promoção da saúde mental ao longo do ciclo vital, à diminuição do bem-estar, ao sofrimento mental e do processo de adoecer à recuperação da pessoa. Os enfermeiros especialistas em ESMP interpretam a reação da pessoa aos estímulos tendo presente não apenas os aspetos do comportamento, mais ou menos comuns a todos os seres humanos, mas igualmente a influência de todos os fatores, incluindo os psicopatológicos nesse comportamento, e analisam as estratégias de melhoria da funcionalidade e adaptação ao contexto.
Pegando nos exemplos referidos, poder-se-á afirmar que nos aspetos da reforma da saúde mental relacionados com os novos locais de internamento em hospitais gerais, nos serviços em requalificação onde se acrescenta nova oferta de respostas, ou na constituição ou redimensionamento das ECSM, a grande dificuldade é a de contratação de profissionais de Enfermagem, e particularmente de enfermeiros especialistas em ESMP, em número adequado. O Regulamento n.º 743/2019, de 25 de setembro, que prevê as dotações seguras para os cuidados de Enfermagem, por posto de trabalho, tem sido difícil de cumprir. Esta dificuldade é ainda maior no que concerne ao cumprimento da percentagem mínima de enfermeiros especialistas em ESMP que, por exemplo, num serviço de internamento de pessoas em fase de descompensação clínica aguda deveria representar 70% do número total de enfermeiros (Ordem dos Enfermeiros, 2019). No entanto, o cumprimento do rácio de enfermeiros especialistas em ESMP deve continuar a ser um desígnio da CNPSM e, em particular, a existência de enfermeiros exclusivamente especialistas em ESMP nas ECSM onde, pela natureza da atividade, a sua formação académica e as suas competências específicas, permitem sustentar concetualmente a atividade e, desse modo, garantir maior segurança aos utentes e à equipa e, igualmente, valorizar a Enfermagem.
As ECSM, não sendo uma realidade recente nos SLSM, têm atualmente maior visibilidade e crescimento. Sendo um crescimento relevante, constata-se ainda a necessidade de melhorar alguns aspetos do seu funcionamento. Em primeiro lugar, a necessidade de investimento em recursos que não estão confinados a um espaço, mas que circulam pela comunidade em interação permanente com os utentes e o seu contexto, com os seus parceiros da comunidade, para ações relacionadas com a continuidade de cuidados, mas também com a promoção da saúde e prevenção da doença. Esta é uma lógica de alteração da ação clínica para a qual, como referido anteriormente, o CRI pode dar um contributo, mas que carece ainda de uma sensibilização das administrações hospitalares, de modo que estas compreendam claramente que a proximidade é uma componente importante para o acesso e continuidade dos cuidados, e de menor custo relativamente à hospitalização, e outras despesas intangíveis resultantes da morbilidade psiquiátrica.
Por outro lado, as ECSM, são compostas por profissionais que, na sua maioria, tiveram percursos formativos e exercício profissional em contexto hospitalar, onde o tratamento sempre deixou para segundo plano a dimensão reabilitativa e a preservação das redes de suporte. Como referido no “Relatório Saúde Mental 2017, extensão a 2020” (Comissão Técnica de Acompanhamento da Reforma da Saúde Mental, 2017), o tratamento e a reabilitação são interdependentes, interagindo um sobre o outro, podendo a sua combinação ser simultânea, sequencial ou intermitente. Importa acentuar a importância desta referência para assinalar a necessidade de investimento em ambas desde o primeiro contacto da pessoa com o profissional da saúde mental, acrescentando que nesta interação deve estar sempre previsto o envolvimento das figuras de referência, principalmente quando existe um comprometimento instalado ou risco de quebra desse suporte.
Como previamente referido, a experiência profissional construída quase exclusivamente em contexto hospitalar determina, ao mudar-se o contexto da intervenção, que exista uma adaptação do profissional a novas variáveis e exigências. Qualquer mudança deste tipo implica um esforço acrescido do profissional ainda que tenha conhecimento do que lhe é exigido e possa ter os recursos para realizar o seu trabalho. Esse esforço sobre que variáveis devem ser consideradas e como ajustar as suas técnicas a esta nova realidade, deve ser acompanhado de modo a promover uma melhor e mais rápida adaptação. Estas situações são descritas (Roth et al., 2021) e foram igualmente recolhidas pelos enfermeiros das CRSM no início da atividade das ECSM criadas ao abrigo do PRR, existindo manifestação de dúvida sobre o papel a desempenhar numa ECSM, nomeadamente no exercício da autonomia profissional nestas estruturas.
Temos, portanto, profissionais de Enfermagem qualificados, cerca de metade a necessitar de qualificação enquanto enfermeiros especialistas em ESMP, e todos a necessitar de acompanhamento neste processo de integração de novas equipas, novas exigências e novos papeis.
Considerações Finais
A possibilidade de maior proximidade dos serviços com estruturas consultivas, como o Conselho Local de Saúde Mental, um dos grandes passos na reforma da saúde mental, é uma oportunidade e um desafio aos profissionais: desafio no sentido de permitir um maior escrutínio e exigência na sua atividade; e oportunidade para dar a conhecer a realidade, esbater preconceitos, aumentar o conhecimento dos problemas, e mobilizar recursos.
Porém, ainda existem áreas com particular necessidade de atenção nesta reforma. A articulação com os CSP, a criação e disponibilização de instrumentos que permitam a qualquer profissional estar confortável na abordagem de uma queixa de sofrimento psíquico, não teve ainda o investimento necessário, por falta de interlocutor nos CSP, é certo, mas igualmente por ausência de uma estratégia dirigida a esta área de cuidados fundamental para evitar a procura dos SLSM em problemas que podiam ser acompanhados nos CSP.
As respostas de saúde mental da infância e adolescência são também elas ainda deficitárias e centradas em recursos médicos que, ou não existem, ou não se sentem atraídos pelo SNS. A reorganização desta resposta numa lógica distinta é uma emergência, na qual outros técnicos devem ser envolvidos, com maior protagonismo. Existem bons exemplos a nível regional, onde a falta de médicos pedopsiquiatras no SNS no Algarve deu origem ao Grupo de Apoio à Saúde Mental Infantil (GASMI), justificando-se ampliar esta resposta para a adolescência, assim como noutras regiões. O programa “Mais Contigo” (Santos, Erse, Façanha, Marques, & Simões, 2014), que tem vindo a ser apoiado pela CNPSM, é um excelente exemplo de uma resposta que começou a nível local e que na atualidade se encontra a nível nacional, no âmbito da promoção da saúde mental e bem-estar dos jovens, prevenção dos comportamentos suicidários, do combate ao estigma relacionado com a doença mental, e na melhoria da acessibilidade aos serviços de saúde mental do SNS. As funções de gestão ou coordenação de equipas podem igualmente ser desempenhadas pelos diversos profissionais como acontece, entre outros exemplos, no Hospital de Dia da Infância na Região de Lisboa e Vale do Tejo, coordenado por uma enfermeira especialista em ESMP. Estas novas respostas trazem novos desafios para a formação dos enfermeiros especialistas em ESMP que prestam cuidados no contexto da infância e da adolescência.
Também o desenvolvimento dos CCISM é uma área que carece de profunda atenção. Como referido anteriormente, esta não é uma competência direta da CNPSM, mas o seu desenvolvimento dependerá sempre da vontade dos serviços de saúde mental, da instalação de uma perspetiva reabilitativa em detrimento de uma perspetiva asilar e pouco crente na capacidade de recuperação dos utentes (de Girolamo et al., 2014), e na correção dos problemas que estas respostas ainda apresentam e que estão devidamente documentados no relatório das experiências-piloto de CCISM (Administração Central do Sistema de Saúde, 2020).
Como referido, nunca as mudanças na organização dos serviços de saúde mental foram tão acentuadas em tão pouco tempo. Existiu um conjunto de condições que confluíram para tornar possível este desenvolvimento. No entanto, ainda existem áreas que carecem de desenvolvimento e que são fundamentais para a promoção da saúde, a prevenção da doença, e uma maior efetividade das equipas.
Os enfermeiros especialistas em ESMP estão capacitados para esta reforma, mas precisam cada vez mais de novas ferramentas e de se adaptar a novos desafios. Podem e devem ser acompanhados pelos enfermeiros das equipas de Coordenação Nacional e Regionais de saúde mental e pelas respetivas hierarquias institucionais. Mas as Escolas Superiores de Enfermagem têm igualmente um papel importantíssimo nesta reforma. A verdadeira reforma ocorre com a mudança de mentalidade, que deve igualmente acontecer com os enfermeiros especialistas em ESMP, juntamente com maior capacidade para lidar com o sofrimento psíquico sem constrangimentos.
Num questionário realizado pelo PNPCT (Bonito et al., 2017) junto de Escolas / Faculdades de diferentes grupos profissionais, sobre as competências profissionais no âmbito da prevenção e tratamento do tabagismo no final da formação pré-graduada, temas como o aconselhamento baseado na entrevista motivacional, expressão de empatia ou lidar com a resistência numa entrevista, estimular a autodeterminação e autoeficácia ou a utilização de técnicas de aconselhamento cognitivo-comportamental estavam presentes nos currículos; no entanto os estudantes não se sentiam bem preparados, existindo desse modo necessidade de maior atenção a essa preparação. Ainda que exista da parte das escolas de Enfermagem a preocupação em atualizar o ensino aos problemas que os profissionais têm de enfrentar, esta atualização dos conteúdos curriculares deve ser flexível e incluir técnicas que respondam aos problemas e às novas orientações sobre a abordagem desses problemas. No âmbito da reforma da saúde mental esta preocupação é pertinente e deve estar presente, igualmente, na oferta para a formação pós-graduada, incluindo novas ferramentas que aumentem a capacidade de intervenção dos enfermeiros.