Introdução
Os Cuidados de Saúde Primários (CSP) são o primeiro nível de serviços de saúde que asseguram a promoção, prevenção e tratamento, reabilitação e cuidados paliativos ao longo do ciclo vital, o mais perto possível do ambiente diário das pessoas (World Health Organization, 2019). A Enfermagem de Saúde Mental tem um papel de extrema importância nos CSP, pois também se foca na promoção, na prevenção, no diagnóstico e na intervenção perante respostas humanas desajustadas ou desadaptadas aos processos de transição, geradores de sofrimento, alteração ou doença mental (Ordem dos Enfermeiros, 2010). O Plano Nacional de Saúde 2030 (Direção Geral Saúde, 2022) refere o conceito de saúde sustentável, em que se pretende o “alcance do melhor nível de saúde e bem-estar da população num dado momento não deverá comprometer a saúde e bem-estar das gerações futuras” (DGS, 2022, pp.20), pelo que terá de se reforçar e adaptar a promoção e proteção da saúde com cuidados de alta qualidade.
Sabemos que a gravidez é um dos períodos mais desafiantes e exigentes no desenvolvimento humano, com imensas mudanças (físicas e psicológicas), aumentando o distress psicológico (Malta, 2022) que influenciam a vida da mulher, do companheiro e do casal, ocorrendo assim um período de crise. É uma crise não patológica, com mudanças e adaptações na sua identidade, mas que se não intervir precocemente, poderá levar a perturbações mentais perinatais tais como a depressão e ansiedade (Walsh, Davis & Garfield, 2020).
Neste ciclo de vida da mulher, enquadra-se o uso do aconselhamento, sendo uma intervenção psicoterapêutica que visa orientar, mudar e capacitar, verificando-se coincidências das etapas do processo de enfermagem com as fases do processo de aconselhamento (Lopes, 2010). O aconselhamento psicoeducacional é uma intervenção que tem resultados positivos na diminuição da ansiedade (Abazarnejad et al., 2019).
Aumenta assim a importância de integrar os cuidados de saúde mental com o cuidado perinatal da saúde materna, potenciando o acesso aos tratamentos e melhorar as intervenções (Bhat et al., 2018). Pensando na 7.ª necessidade de saúde que decorre de um problema de saúde, a depressão, na 6.ª necessidade (acesso a cuidados de saúde mental) e na 8.ª necessidade de saúde (qualidade da prestação de cuidados) que decorrem dos determinantes de saúde (DGS, 2022) este estudo irá dar resposta a estas três necessidades de saúde que são priorizadas no Plano Nacional de Saúde.
Este estudo pretende contribuir para a formalização do conhecimento em Enfermagem, numa área que se encontra em défice sendo o objetivo deste estudo criar um Programa de Aconselhamento em Enfermagem de Saúde Mental Perinatal.
Metodologia
Estudo qualitativo, exploratório e descritivo. Dados recolhidos resultantes de uma Scoping Review (Alves et al., 2023) e realização do Focus Group. Realizada análise de conteúdo dos dados recolhidos para se criar o programa de aconselhamento.
A Scoping Review permitiu mapear a literatura nesta área e seguiu as guidelines da Joanna Briggs Institute e do PRISMA-ScR (Moher et al., 2009). No Focus Group orientado pela COREQ checklist (Tong et al., 2007) utilizou-se o método de amostragem não probabilística, intencional, composto por Enfermeiros Especialistas de Enfermagem em Saúde Mental e Psiquiatria (EEESMP), de Saúde Materna e Infantil, que desenvolvem o seu trabalho com grávidas e mães.
Resultados
Através da Scoping Review (Alves et al., 2023) e da análise do grupo de peritos, delineou-se o objetivo do programa, em que o pretendido foi promover a saúde mental da mulher no período perinatal aumentando o autoconhecimento, melhorando as estratégias para lidar com o stress, e com as alterações emocionais associadas à gravidez através do aconselhamento.
Contexto de implementação do programa:
Implementado nos cuidados de saúde primários nas unidades de cuidados na comunidade da cidade do Porto.
Duração e sua frequência:
O programa está organizado por semanas de gestação, iniciando-se a partir das 20 semanas. Encontra-se dividido em sessões individuais (inicial, final e follow-up) e por sessões mensais de aconselhamento em grupo. A tipologia de abordagem preferencial terá uma avaliação inicial presencial, aconselhamento em grupo (máximo oito e 10 participantes) presencial; aconselhamento individual na avaliação final (em formato híbrido), em que se irá utilizar os princípios do Processo de Enfermagem e do Processo de Aconselhamento. (Eisenberg & Patterson, 1988)
Caraterísticas dos participantes:
Como critérios de inclusão foram elegíveis mulheres com mais de 18 anos grávidas e que aceitaram colaborar no estudo mediante consentimento informado. Critérios de exclusão ter o diagnóstico médico de depressão, adição em álcool e drogas e gravidez de alto-risco.
Caraterísticas dos facilitadores:
O facilitador será o EEESMP, em interdisciplinaridade com os pares.
Estrutura do programa:
O programa aborda três principais temas: Promoção da saúde mental perinatal (26-28 semanas de gravidez), as estratégias para o bem-estar (30-32 semanas de gravidez) e lidar com o pós-parto (34-36 semanas). Uso do “Diário do meu aconselhamento” um guia prático, que disponibiliza orientações e tarefas de apoio adaptadas a cada participante ao longo das intervenções.
Avaliação do programa:
A avaliação final decorre às 36-38 semanas de gravidez e o follow-up às quatro a seis semanas após o parto.
Os instrumentos de avaliação utilizados foram:
Questionário de caraterização sociodemográfica, que nos permitiu analisar o contexto social, familiar/gravidez e histórico de saúde mental;
Escala de Empowerment da Grávida (Aires et al., 2016), validada para a população portuguesa, permitiu identificar as necessidades das grávidas, compreender o modo como estas vivenciam a gravidez e a transição para a parentalidade, bem como contribuiu para centrar os cuidados de enfermagem nas grávidas e suas necessidades (Aires et al., 2016);
Escala Depression, Anxiety and Stress Scale - EADS-21 (Pais-Ribeiro, Honrado e Leal, 2004), validada para a população portuguesa que avalia os estados afetivos de depressão, ansiedade e stress.
A tabela 1 apresenta a estrutura do programa com os objetivos e seus conteúdos.
SESSÕES | OBJETIVOS | CONTEÚDO |
Avaliação inicial 20-24 semanas Formato presencial e individual | - Assinar consentimento informado; - Implementar questionário de caraterização sociodemográfica; - Aplicar os instrumentos de avaliação. | - Apresentação dos envolvidos (enfermeiro/ pessoa); - Apresentação dos objetivos do programa e a sua organização (número e duração das sessões, tipologia de intervenção individual/grupo); - Validação dos critérios de inclusão; - Assistir a pessoa no preenchimento do questionário sociodemográfico e das escalas. |
Sessão n. º1 26-28 semanas Formato presencial e em grupo | - Dar a conhecer os elementos do grupo; - Ajudar a reconhecer possíveis sinais e sintomas das alterações emocionais no período perinatal; - Melhorar o autoconhecimento, os fatores protetores pessoais e sociais; - Capacitar para lidar com as alterações emocionais e a maternidade. | Promoção da saúde mental na gravidez: - Apresentação das participantes do grupo; - Estabelecer regras de grupo e confidencialidade; - Breve definição de conceitos de saúde mental perinatal; - Normalização de emoções na gravidez; Importância do bem-estar; - Papel do pai e a sua importância na gravidez; - Identificação de sinais de alerta: Problemas de saúde mental que podem ocorrer na gravidez e no pós-parto e o seu impacto. |
Sessão n. º2 30-32 semanas Formato presencial e em grupo | - Melhorar a perceção do suporte social e as competências parentais; - Promover o uso de estratégias de coping; - Alcançar estratégias de coping; - Adquirir estratégias de resolução de problemas; - Encorajar a partilha de sentimentos. | Estratégias de prevenção da ansiedade e depressão perinatal: - Estratégias para lidar com stress e ansiedade; - Adoção de estratégias promotoras de bem-estar na gravidez; - Uso de técnica de resolução de problemas para lidar com as preocupações; - Técnicas de relaxamento, Mindfulness e respiração abdominal; - Suporte social. |
Sessão n. º3 34-36 semanas Formato presencial e em grupo | - Diminuir o distress; - Melhorar os fatores protetores pessoais e sociais; - Construir a identidade materna e adquirir competências parentais; - Melhorar a autoestima. | Lidar com o pós-parto (medos, problemas de saúde mental e perturbação do sono): - Ajudar a rever o progresso, insights e técnicas; - Estratégias para manter o bem-estar; - Encorajar os participantes a partilharem os medos e preocupações; - Lidar com as preocupações das pessoas sobre o término do grupo. |
Avaliação final 38 semanas Formato híbrido | - Avaliar o processo de ajuda; - Encorajar a pessoa a usar a sua nova experiência. | - Aplicação da Escala Empowerment; - Ajudar a rever o progresso, insights e técnicas. |
Follow -up 2-4 semanas após parto Formato híbrido | - Avaliar alterações emocionais e literacia 4/6 semanas após o parto. | - Perceber se implementou as estratégias; - Aplicar EADS-21; - Referenciar, caso seja necessário para a intervenção interpares (saúde infantil). |
Este estudo teve parecer favorável da Comissão de Ética da Administração Regional de Saúde do Norte (CE/2022/98), tal como teve aprovação do ACES envolvido. Ao longo de todo o estudo foi cumprido todos os pressupostos éticos da investigação, de acordo com a Declaração de Helsínquia não acarretando nenhum risco para os intervenientes sendo assegurado a confidencialidade e anonimato ao longo do processo de investigação. Foi solicitado o consentimento informado por escrito a todas as participantes que tiveram disponibilidade e interesse em participar no estudo livremente.
Discussão
Com a promoção da saúde pretende-se melhorar ou alterar o desempenho parental (materno e paterno) com o objetivo de promover a autonomia da mãe no seu autocuidado e nos cuidados com o bebé (Caetano, 2020). Desenvolver estratégias de coping na gravidez irá promover um sentimento de controle sobre si mesmas quer no trabalho de parto, quer no controle da dor, bem como na diminuição da ansiedade (Silva, 2014).
A transição para a parentalidade é uma área que deveria de ser priorizada na enfermagem, devido ao impacto que poderá ter na saúde das crianças, casais, famílias e sociedades, sendo de extrema importância a promoção da saúde (Caetano, 2020).
Podemos melhorar a vinculação materna-fetal através da intervenção psicoeducacional, em que se motiva as mães a optarem por determinadas atividades que aumentem a vinculação, tais como pensamentos positivos, o toque, a música e falar para o bebé (Abasi et al., 2013).
Também de acordo com Buist et al. (2007), as mulheres que beneficiam de um programa psicoeducacional vão aumentar o conhecimento sobre a depressão, melhorar a habilidade para julgar o seu próprio estado emocional e reduzir o uso do sistema de saúde. A modalidade do aconselhamento em grupo permite a comparação entre os pares, aprendizagem por modelagem, redução do estigma associado à depressão, além de que os custos são mais baixos (Camoni et al., 2021). Desenvolver estratégias de coping na gravidez irá promover um sentimento de controle sobre si mesmas quer no trabalho de parto, quer no controle da dor, bem como na diminuição da ansiedade (Silva, 2014).
No estudo de Arora et al. (2019), em que implementaram o aconselhamento baseado no empowerment e em que as soluções dos problemas das mulheres são trabalhadas com recursos e forças existentes, e como resultados surgiram mudanças na compreensão do impacto da violência na saúde, e teve impacto positivo no coping, segurança e saúde das mulheres.
Em Portugal, o aconselhamento no âmbito da saúde, não entra na formação dos enfermeiros pelo que esta intervenção de enfermagem é escassa, tornando-se assim cada vez mais importante apostar nesta intervenção psicoterapêutica.
O EEESMP tem a competência de prestar “cuidados de âmbito psicoterapêutico, socioterapêutico, psicossocial e psicoeducacional” (OE, 2010, pp. 8672). Esta competência envolve as capacidades do enfermeiro para interpretar e individualizar estratégias, através de atividades, tais como: ensinar, orientar, descrever, instruir, treinar, assistir, apoiar, advogar, modelar, capacitar e supervisionar. O EEESMP deve coordenar, desenvolver e implementar programas de psicoeducação e de treino de competências em saúde mental.
O estudo de Tachibana et al. (2019), revela a importância da continuidade de cuidados de saúde mental através de uma equipa multidisciplinar comunitária.
Limites do estudo: poucas referências a nível nacional, poucos peritos nacionais nesta área da saúde mental perinatal e muitos estudos não abordam as temáticas pertinentes para as semanas de gestação, o que dificultou a construção do programa.
Conclusão
Com este estudo conseguiu-se atingir o objetivo inicial, que era criar um Programa de Aconselhamento em Enfermagem de Saúde Mental Perinatal, promovendo a saúde mental da mulher e da criança.
É uma área pouco desenvolvida a nível nacional, e muitas vezes esquecida, acabando por interferir na saúde publica da comunidade, pois as intervenções associadas à promoção da saúde, são essenciais para reduzir as principais perturbações mentais neste período, como o stress, depressão e ansiedade perinatal mental. A implementação destas intervenções ou programas por parte do EEESMP melhora a segurança e qualidade dos cuidados de enfermagem, podendo diminuir gastos na medicação, nos internamentos e aumentar a capacidade de vida diária e asseguram as gerações futuras tal como é pretendido pelo Plano Nacional de Saúde 2030.
A nível internacional o campo da saúde mental perinatal está bem implementado, com enfermeiros especialistas na área, intervindo precocemente e acompanhando as grávidas até ao primeiro ano após o parto, demonstrando preocupação desde o início da vida e promovendo a saúde mental da mulher e do bebé.
O aconselhamento deveria ser uma aposta visto ser uma intervenção rápida, estruturada e que permite o empoderamento pessoal, com aquisição de autonomia, num curto espaço de tempo, levando a decisões saudáveis quer para a mulher quer para o bebé. Importa implementar este programa, para o poder validar e demonstrar a eficácia das intervenções psicoterapêuticas por parte do EEESMP.
Implicações para a Prática Clínica
Destaca-se o contributo do EEESMP na capacitação, na mudança de comportamento e na literacia neste período tão específico do ciclo vital, pelo que se desafia as instituições de saúde a implementarem programas de enfermagem de saúde mental perinatal e as escolas de enfermagem a abordarem esta temática ao longo do ciclo de estudos.
Para que esta área comece a florescer a nível nacional será elaborado um Manual de Apoio ao EEESMP com o programa e assim demonstrar-se a importância da Enfermagem de Saúde Mental Perinatal.