Introdução
A Transdisciplinaridade e a Ciência Pós-Normal podem ser entendidas como abordagens complementares num movimento científico emergente, dado ambas se proporem encontrar soluções para problemas complexos onde questões de valor e incerteza fazem necessariamente parte da equação (Funtowicz & Ravetz, 2008).
Para compreender melhor a influência que as teses da Ciência Pós-Normal possam ter tido na teorização da Transdisciplinaridade, mostra-se necessário analisar de forma crítica os seus pressupostos, particularmente no que toca ao seu entendimento de “ciência normal” e nas propostas de transformação que lhes estão associadas. É a partir desta intenção que este artigo se desenvolve, numa tentativa de identificar a heterogeneidade de argumentos mobilizados por estas teses e pelos seus autores. No limite, a adopção destes pressupostos pode levar a transformações radicais da missão da Universidade e do seu sentido no séc. XXI, e considera-se por isso urgente o seu esclarecimento.
No sentido de contribuir para uma investigação doutoral sobre a Transdisciplinaridade como lugar de crítica à organização disciplinar do conhecimento científico, neste artigo argumenta-se que, a tese da Ciência Pós-Normal, não clarifica de forma suficiente o sentido atribuído ao normal contra o qual se insurge e confronta-a com três leituras, com vista a esclarecer sentidos possíveis.
A tese da Ciência Pós-Normal (Post-normal Science) foi formulada por Sílvio Funtowicz e Jerome Ravetz na década de 1990 (Funtowicz & Ravetz, 1993) como crítica ao processo de revisão paradigmática “normal”, como descrito por Thomas Kuhn. A partir da proposta de um método NUSAP (Numeral, Unity, Spread, Assessment and Pedigree) para “contabilizar” a incerteza, a solução ambiciona uma maior democratização do processo de produção de conhecimento científico relevante, a par de uma reflexão sobre as condições que têm determinado o acesso a este conhecimento. Segundo Ravetz, seria necessário dar início ao processo de “desindustrialização” da ciência “normal”, já que esta tinha vindo a ser cada vez mais chamada a servir interesses militares e industriais (Ravetz, 1971, como citado em Turnpenny et al., 2011). Efectivamente, a estreita relação entre o desenvolvimento industrial e tecnocientífico é identificada por outros autores (Jacob, 1997). Para melhor compreender o estatuto conceptual que assume a ciência “normal” na proposta de Funtowicz e Ravetz, mostramos como, numa primeira leitura, a alusão à tese das revoluções científicas, postulada em 1962 por T. Kuhn, não deve assumir uma interpretação literal.
Num segundo momento de diálogo, confrontamos a tese da Ciência Pós-Normal com uma outra, também com elevado grau de afinidade, conhecida como tese da produção de conhecimento de “Modo 2” (Gibbons et, al., 1994; Nowotny, 2001). Autores como McGregor (2015) ou Weingart (1997) identificam as duas teses como sendo “parceiras” numa crítica de um momento histórico particular, que se caracteriza pela crítica ao Modelo Humboldtiano, da Universidade-Investigação, ou de produção de conhecimento de “Modo 1”. Segundo Gibbons et al., (1994), a massificação do Ensino Superior teria levado a transformações na relação entre a Universidade e a sociedade, esgotando a legitimidade de uma ciência encerrada na sua “Torre de Babel”, com processos de revisão por pares de tal forma especializados que teriam perdido a sua pertinência enquanto forma de diálogo com os “problemas da vida real”. Neste diagnóstico, a superação da ciência disciplinar é consequente de uma transformação societal e o conhecimento produzido neste novo contexto é, portanto, transdisciplinar. Nesta tese, o “normal” que é superado está associado ao modus operandi tradicional da investigação científica disciplinar. Esta tese atribui à transformação societal observada uma racionalidade interna à ciência e à Universidade, mas talvez seja pouco explícita acerca dos processos exógenos que podem ter fomentado essa transformação.
Argumentando que um olhar histórico sobre as pressões que se impuseram ao aparelho universitário e científico desde a segunda metade do século XX pode ajudar a compreender sentidos possíveis para o “normal” que se pretende superar, introduzimos alguns argumentos elencados por Ben Martin (2012) que fornecem pistas para identificar que esta ideia de um modelo hegemónico de conhecimento produzido numa “Torre de Babel” por cientistas abduzidos do mundo real parece não ser mais do que um momento transitório na história das universidades europeias, caracterizando apenas o período entre 1945 e 1990. O estatuto hegemónico da ciência “normal”, veremos adiante, ficará mais “incerto”.
Conclui-se ainda que nem a tese da Ciência Pós-Normal nem a tese da produção de conhecimento de “Modo 2” podem ser consideradas inovadoras ao nível epistemológico, por falharem no reconhecimento de uma tese percursora, a finalization thesis (Weingart, 1997); que em dois casos de estudo onde se confrontou a eficácia de estratégias pós-normais, aos olhos do público, a autoridade do conhecimento científico acaba por ficar comprometida quando a comunidade de revisão deste conhecimento inclui pares com agendas políticas (Friedrichs, 2011); e, indagando sobre a possibilidade de estarmos perante possíveis consequências da “obsessão desconstrucionista” dos movimentos filosóficos pós-modernistas (Tarnas, 1991) num momento de aceleração crescente (Pels, 2003), reflectimos sobre a evidência da necessidade de abrandar e ganhar tempo para melhor reflectir sobre abordagens pós-normais e/ou transdisciplinares.
Nota metodológica
A reflexão proposta neste artigo assenta no argumento de que o estatuto conceptual de “normal” - a partir do qual se sustenta a tese da Ciência Pós-Normal - é ambíguo. A partir de uma revisão de literatura, analisam-se sentidos possíveis para a sua sustentação e confrontam-se estes sentidos com literatura crítica para melhor esclarecer potenciais mobilizações e instrumentalizações que podem decorrer da sua ambiguidade.
Da Transdisciplinaridade à Ciência Pós-Normal
No centro dos discursos que compõe este debate, está a relevância da (aparente singular) Transdisciplinaridade. Uma das principais abordagens que ancoram o debate epistemológico actual sobre produção de conhecimento transdisciplinar ficou, nos anos 2000, conhecida como abordagem Zuriquiana depois de um evento mobilizador em Zurique, Suiça. Na sua fundamentação, esta abordagem dá prioridade à relação entre a Ciência, a Tecnologia e a Sociedade.
Destacando-se de outras abordagens como, por exemplo, a abordagem Nicolescuiana, que advoga uma Transdisciplinaridade que poderia ser descrita como neo-humanista e que foi formulada na década de 1990, a abordagem Zuriquiana tem-se aliado a outras propostas teórico-metodológicas, tais como a tese da Ciência Pós-Normal, formulada por Sílvio Funtowicz e Jerome Ravetz (1993).
Outra tese fundamental para a abordagem Zuriquiana é a tese proposta por Michael Gibbons et al. (1994), conhecida como tese da produção de conhecimento de “Modo 2”, que propõe que o conhecimento transdisciplinar resulta de uma transformação sociológica da sociedade, consequência da massificação do Ensino Superior. Apesar de os autores não proporem estas duas teses em conjunto, as duas têm partilhado espaços de publicação e comunicação, após a sua formulação na década de 1990.
Ambas partilham um questionamento das limitações do modelo de produção de conhecimento científico disciplinar, confrontando-o com as características de problemas urgentes que se desenhavam nos contextos “complexos” e “incertos” no advento do séc. XXI.
Nos debates que ancoram a discussão sobre a definição do conceito de Transdisciplinaridade, particularmente nos que se enquadram na corrente Zuriquiana, descrita anteriormente, as teses da Ciência Pós-Normal e da produção de conhecimento de “Modo 2”são frequentemente citadas. Neste artigo, parte-se da leitura de quatro autores, nomeadamente Julie Thompson Klein (2014), Sue L. T. McGregor (2015), Jay H. Bernstein (2015) e Peter Osborne (2015).
Em conjunto, estes autores oferecem uma amplitude que caracteriza e justifica o debate que aqui se apresenta por oferecerem leituras heterogéneas, mas complementares.
Para Thompson Klein (2014) existem três entendimentos centrais, o segundo dos quais se reparte em outros três, nomeadamente: i) um primeiro que entende Transdisciplinaridade por transcendência das mundivisões do Iluminismo; ii) um segundo que agrupa três grupos orientados para a resolução de problemas: a) TD-NET (Swiss-based Network for Transdisciplinary Research); b) resolução de problemas alinhada com wicked problems, como proposto por Ziauddin Sardar na sua publicação de 2010; e c) “investigação interdisciplinar transcendente”, sentido adoptado pelo National Cancer Instititute nos Estados Unidos da América em 2008; iii) finalmente, um terceiro entendimento atribui uma ideia de “transgressão” aos trabalhos de Funtowicz e Ravetz, publicado em 1993, de Gibbons e colegas e de Nowotny, publicados em 1994 e 2001, respectivamente.
Os trabalhos de McGregor (2015) e Bernstein (2015) são consonantes na sua identificação de duas abordagens principais ao entendimento sobre Transdisciplinaridade, nomeadamente: i) a corrente Suíca ou Zuriquiana (Thompson Klein, Gibbons, Nowotny); e ii) a corrente Nicolescuiana (Basarab Nicolescu, Edgar Morin).
Finalmente, Peter Osborne (2015) identifica três acepções principais, a terceira das quais se reparte em dois entendimentos subsequentes, nomeadamente: i) abordagem teórica baseada em Sistemas para produzir um “sistema integral de educação/inovação”, proposta por Jantsch na obra “Inter- and transdisciplinary university: A systems approach to education and innovation” de 1970; ii) abordagem sociológica da science-polic1 baseada em novas formas de produção de conhecimento (como presente nos trabalhos de Gibbons e colegas, e de Nowotny, de 1994 e 2001, acima citados); iii) literatura sobre metodologias de investigação na solução colaborativa de problemas “do mundo da vida” relativos à sustentabilidade ambiental e saúde (como proposto por Thompson Klein e colegas no seu livro de 2001 ou por Pohl e Hirsch Hadorn em 2007), que se divide em dois entendimentos secundários: a) concepção cosmológica do conhecimento transdisciplinar derivado da física quântica (como no entendimento de Nicolescu, nas suas obras de 2002 e 2008); b) discurso periodizante na filosofia da ciência, também pós-disciplinar (como no entendimento de Funtowicz e Ravetz, no seu artigo de 1993).
Os proponentes da tese aqui em discussão - Funtowicz e Ravetz - são identificados como relevantes de forma relativamente unânime por todos estes autores, apesar de mostrarem ter interpretações diferentes da sua relevância consequente de uma visão distinta de Transdisciplinaridade. A leitura que resulta deste confronto permite desde já realçar a preponderância que estas teses têm na elaboração destes diferentes entendimentos.
Segundo Funtowicz e Ravetz (2008), a investigação transdisciplinar e a Ciência Pós-Normal são complementares, mas distinguem-se na sua missão - a primeira assenta em experimentar novas tarefas para a prática científica; a segunda, com uma abordagem mais filosófica, explora quão radicais as mudanças nas nossas concepções de ciência teriam de ser. Apesar de ser possível acompanhar a evolução da sua proposta ao longo dos anos, entre 1993 e 2008, neste último momento, Funtowicz e Ravetz caracterizam a Ciência Pós-Normal da seguinte forma:
This new philosophy of science is not merely a matter of a better understanding of the world. As we contemplate the impending decline of American based globalization as a hegemonic world order, along with the aggravating global ecological crisis, the task of constructing an appropriate new philosophical synthesis takes on a great urgency. We need a conception of scientific knowledge that is not so much designed for the traditional societal goal of the attainment of power, as for the urgent task of the achievement of reconciliation [Esta nova filosofia da ciência não é meramente uma questão de uma melhor compreensão do mundo. À medida que contemplamos o declínio iminente da globalização americana enquanto ordem mundial hegemónica, em paralelo com a crise ecológica global agravante, a tarefa de construir uma nova síntese filosófica apropriada reveste-se de um carácter urgente. Necessitamos de uma concepção de conhecimento científico que não é tanto desenhada para o tradicional objectivo societal de obtenção de poder, mas orientada para a tarefa urgente de alcançar a reconciliação]. (Funtowicz & Ravetz, 2008, p. 367)
Ao mobilizarem argumentos históricos e políticos para sustentar a necessidade (e urgência) de uma nova filosofia científica, concluem também que o sentido com que o novo conhecimento deve ser produzido deve sofrer alterações, passando de um objectivo último de obtenção de poder, para um outro, de reconciliação. Ao assumir um corpo não só epistemológico como sociológico e político, torna-se pertinente, assim, compreender aprofundadamente o sentido com que a ideia de “normalidade” é mobilizada.
A tese e proposta da Ciência Pós-Normal
A tese da Ciência Pós-Normal é formulada em 1993 em “Science for the post-normal age” (Funtowicz & Ravetz, 1993). Este artigo, dos mais citados de sempre da revista Futures (Gauthier & Chapuis, 2019), popularizou-se entre aqueles que procuram uma solução para quando “facts are uncertain; values are in dispute; stakes are high and decisions urgent” [os factos são incertos; os valores estão em disputa; os riscos são elevados e as decisões urgentes] (Funtowicz & Ravetz, 1993, p. 744).Para os seus autores, a não consideração destas dimensões pela ciência “normal” leva a uma crise interna que a impede de resolver problemas societais “complexos”. A questão da incerteza é central para esta tese, propondo os autores um método NUSAP (Numeral, Unity, Spread, Assessment and Pedigree) para analisar como diferentes tipos de incerteza afectam o processo de produção de conhecimento científico.
Defendem a necessidade de uma “comunidade de pares ampliada” que transcende a “comunidade de pares científica” no sentido em que procura feedback de áreas do conhecimento e da experiência que podem ter algo a dizer sobre um determinado tema em debate; e no sentido em que inclui actores não especializados (ou stakeholders) que podem ter também interesses/motivações para participar no debate.
Criticam a violência do reducionismo científico no que toca à sua relação com a “Natureza”, formulando nesta proposta uma alternativa à sua exploração, no processo restaurando a autoridade ao conhecimento da experiência e competências herdadas que ficou perdida para os objectos da ciência “construídos teoricamente”: “For understanding the new tasks and methods of science, we can fruitfully invert Latour’s metaphor and think of Nature as reinvading the lab” [Para compreender as novas tarefas e métodos da ciência, podemos inverter proveitosamente a metáfora de Latour e pensar na Natureza a re-invadir o laboratório] (Funtowicz & Ravetz, 1993, p. 742).
A Ciência Pós-Normal considera-se complementar à ciência aplicada - e não quer substituir a ciência “tradicional” - e é orientada para a interface science-policy. Os autores descrevem o sentido do seu nome, ainda, da seguinte forma:
(...) here we introduce the term “post-normal”. This has an echo of the seminal work on modern science by Kuhn. For him, normal science referred to the unexciting, indeed anti-intellectual routine puzzle solving by which science advances steadily between its conceptual revolutions. [(…) aqui introduzimos o termo “pós-normal”. Este tem um eco do trabalho seminal de Kuhn sobre ciência moderna. Para ele, ciência normal referia-se ao desinteressante, até anti-intelectual, rotineiro acto de resolução de um puzzle a partir do qual a ciência avança firmemente entre revoluções conceptuais]. (Funtowicz & Ravetz, 1993, p. 740)
Ciência Pós-Normal e a questão dos paradigmas Kuhnianos
É neste eco com o trabalho de Thomas Kuhn (1962/1970) que a interpretação desta proposta se revela menos literal. Sumariamente, poder-se-á dizer que, para Kuhn, o processo caracterizado como “normal” corresponde à revisão periódica dos paradigmas que ancoram a investigação científica, por sua vez assente em descobertas científicas passadas, reconhecidas por uma determinada comunidade especializada e aceite durante um determinado tempo, ao fim do qual surgem “revoluções” que rompem com a lógica vigente e se impõem como a “nova” ciência “normal”. Obras como Physica, de Aristótles ou Principia, de Newton são, para Kuhn, exemplo de como a Ciência não se produz num fio contínuo e cumulativo, mas através de rupturas materializadas por avanços feitos em momentos particulares, cíclicos (Kuhn, 1962/1970). No fundo, trabalhos cujo alcance é, por um lado i) suficientemente inovador para estimular novas formas de produzir conhecimento; e ii) suficientemente aberto para abranger novos problemas que não tinham solução no paradigma anterior são assim denominados de “paradigmas” (Kuhn, 1962/1970).
A ciência “normal”, para Kuhn, descreve a revisão e substituição cíclica de paradigmas que ancoram e orientam a formulação e a resolução de problemas considerados científicos - e quando emerge um problema que exige um novo paradigma, esta substituição acaba por se verificar. Se a Ciência Pós-Normal advoga uma superação do próprio processo de revisão cíclico dos paradigmas que orientam a investigação, superando assim a “rota” da ciência “normal”, não estará então esta mesma tese a comprovar o argumento de Kuhn? Poderá a meta-leitura de Kuhn também estar sujeita a revisão. Aliás, para Kuhn, as revoluções científicas que passam a constituir novos paradigmas acontecem também quando há momentos históricos particulares em que as condições para a reformulação de um problema possibilitam uma nova solução.
A associação entre o sentido com que Kuhn descreve os ciclos de revisão paradigmática inscritos na rota da ciência “normal” e aquele atribuído por Funtowicz e Ravetz à Ciência Pós-Normal poderá ser mais bem entendida como alusão ou metáfora do que como interpretação literal.
Por um lado, segundo os critérios estabelecidos pelo próprio Kuhn, a tese da Ciência Pós-Normal poderia cumprir o que é entendido como uma revolução paradigmática por ser i) suficientemente inovador para estimular novas formas de produção de conhecimento; e ii) por ser suficientemente aberto para abranger novos problemas que não estavam enquadrados no paradigma anterior (Kuhn, 1962/1970); por outro lado, se a tese da Ciência Pós-Normal cumpre estes requisitos, então estaria ela própria inscrita neste próprio ciclo e seria uma confirmação da adequabilidade da tese de Kuhn para descrever processos de transformação paradigmática que enquadra a pesquisa científica. Poderá ser mais seguro entender esta associação precisamente como os autores aconselham: como um eco, ou uma alusão. O recurso a alusões, metáforas ou analogias na formulação de teses científicas não é isolado - o isomorfismo entre a “partícula” da Física e o “indivíduo” da Economia é bem conhecido (Louçã, 1997). No entanto, é um recurso que necessita de cuidado na sua utilização, e os autores da tese da Ciência Pós-Normal recorrem a este recurso em outras instâncias, que também merecem atenção.
Num trabalho intitulado Science, Philosophy and Sustainability: the end of the Cartesian dream, editado por Ângela Guimarães Pereira e Silvio Funtowicz (2015), Jerome Ravetz utiliza um recurso estilístico semelhante para descrever a herança do projecto Cartesiano no prefácio. Para ilustrar a tese do livro, sustentando a necessidade de superar o paradigma Newton-Cartesiano que ancora a investigação disciplinar “normal”, Ravetz interpreta o sentido da questão do sonho em Descarte2 citando o seguinte segmento de O Discurso do Método:
Pois elas me mostraram que é possível chegar a conhecimentos muito úteis à vida, e que, ao invés dessa filosofia especulativa ensinada nas escolas, pode-se encontrar uma filosofia prática, mediante a qual, conhecendo a força e as acções do fogo, da água, do ar, dos astros, dos céus e de todos os outros corpos que nos rodeiam, tão distintamente como conhecemos os diversos ofícios de nossos artesãos , poderíamos empregá-las do mesmo modo em todos os usos a que são adequadas e assim nos tornarmos como que senhores e possessores da natureza3 (Descartes, 1637, como citado em Ravetz, 2015, p. xvii)
Ravetz revela melhor a sua preocupação ao atribuir a Descartes e ao sonho Cartesiano a visão e formulação do paradigma tecnocientífico ou tecnocrático moderno: “Here indeed, we have the modern scientific-technical, or should I say, technocratic paradigm, stated clearly for all to see. This is what Descartes got to, as his own vision unfolded.” [Aqui, de facto, temos o paradigma técnico-científico moderno, ou devo dizer, paradigma tecnocrático, declarado claramente para todos verem. Isto é aquilo a que Descartes chegou, à medida qua a sua visão se revelava.] (Ravetz, 2015, p. xvii).
Contudo, este segmento do Discurs4 (Descartes, 1637/2001) ganha um sentido radicalmente diferente quando lido isoladamente. Uma leitura completa da obra revela mais claramente as intenções de Descartes ao escrever este segmento. Sumariamente, a sua preocupação era encontrar, na natureza, as respostas necessárias para os problemas que a medicina enfrentava à época. A questão do poder sobre a natureza, contra a qual Funtowicz e Ravetz se insurgem também no seu texto “Values and Uncertainties” (Funtowicz & Ravetz, 2008), ganha um sentido diferente quando continuamos a ler O Discurso:
De resto, não quero falar aqui em particular dos progressos que tenho esperança de fazer futuramente nas ciências , nem fazer ao público qualquer promessa que não tenha a certeza de cumprir; mas direi apenas que resolvi não empregar o tempo que me resta de vida em nada mais salvo procurar adquirir algum conhecimento da natureza, que seja tal que dele se possam tirar regras mais seguras para a medicina do que as que tivemos até hoje; e que minha inclinação me afasta tanto de toda espécie de outros projectos, principalmente daqueles que só poderiam ser úteis a uns prejudicando outros, que, se algumas circunstâncias me obrigassem a dedicar-me a eles , não creio que fosse capaz de ser bem sucedido. (Descartes, 1637/2001, p. 85)
Uma nota da tradutora Maria Ermentina Galvão relativa a esta passagem contribui ainda mais claramente para atenuar preocupações com intuitos destruidores n’O Discurso:
Pode-se acreditar que Descartes está recusando de antemão qualquer cargo de engenheiro militar que lhe pudesse ser oferecido. Por esse cuidado em evitar que a ciência seja posta a serviço da destruição, Descartes aproxima-se de Leonardo da Vinci, que temia o mau uso da “máquina voadora” que havia imaginado. Os sérios problemas criados actualmente pelo domínio técnico do homem sobre a natureza, se não foram previstos em toda sua amplidão, não deixaram de ser pressentidos em seu princípio por alguns dos que mais contribuíram para seu advento. (Galvão, 2001, p. 102)
Ao ignorarem a influência de Francis Bacon na associação entre conhecimento e poder (Tarnas, 1991; Jacob, 1997), ou nos exaustivos trabalhos de Michel Foucault (2013), Paul Forman (2007) ou Jurgen Habermas (1987) sobre a denúncia da influência que esta herança teve na transição para o paradigma tecnocientífico actual, podemos concluir que a intenção com que Funtowicz e Ravetz se referem tanto à obra de Kuhn como à de Descartes só pode estar num plano semelhante, alusivo.
Não obstante, podemos interpretar a alusão que a Ciência Pós-Normal propõe como parte de uma ampla crítica à herança do pensamento Cartesiano na ciência e à produção de conhecimento ancorada no paradigma Newton-Cartesiano. Paralelamente, o período em que a tese da Ciência Pós-Normal emerge coincide com uma contestação partilhada a esta herança, formulada de forma mais alargada, englobando aspectos como a divisão entre Sujeito e Objecto, a divisão entre Mente e Corpo, a possibilidade de obtenção de conhecimento “certo”, ou ainda uma visão racionalista/mecanicista do mundo, quando associada à mecânica Newtoniana (Barad, 2007; Morin, 1986; Santos, 2000; Tarnas, 1991; Zizek, 2012 5
Associar a crítica ao paradigma Newton-Cartesiano à necessidade de superação de uma ciência “normal” pode ser uma interpretação possível; mas não é explicitada por Funtowicz e Ravetz. Fica por esclarecer de que forma é que se propõe superar o paradigma herdado, numa perspectiva filosófica, como os próprios autores situam: se propondo uma revisão do mesmo (reforçando uma lógica Kuhniana); se propondo algo radicalmente diferente.
Ciência Pós-Normal e produção de conhecimento de “Modo 2”
Segundo Ravetz, num artigo publicado em 1999, o autor reconhece que a ideia de Ciência Pós-Normal confere uma ideia paradoxal e clarifica:
By “normality” we mean two things. One is the picture of research science as “normality” of T. S. Kuhn. Another is the assumption that the policy environment is still “normal”, in that such routine puzzle-solving by experts provides an adequate knowledge base for policy decisions. [Por “normalidade” nós queremos dizer duas coisas. Uma é a imagem da ciência de investigação enquanto “normalidade” de T. S. Kuhn. Outra é a suposição de que o ambiente das políticas ainda é “normal”, no sentido em que a solução rotineira de problemas-tipo-puzzle por especialistas oferece um conhecimento adequado para decisões de política.] (Ravetz, 1999, p. 648)
Aqui encontramos um sentido diferente para a ideia de “normalidade”; um sentido mais relacionado com questões históricas e políticas do que epistemológicas. Para Ravetz:
Although there are still some who imagine science to be essentially an innocent pursuit cultivated by individuals motivated by curiosity, that picture now carries little credibility. There is a consensus on science as a major social institution, with structures of prestige and influence, and possessing the power to initiate, defer, stop or even suppress research. Also, there has now developed an institutionalised counterexpertise, seen in the major environmental groups, capable of engaging in a critical dialogue with the official experts. This new social organisation of science, sometimes described as “Mode 2”, is defined by the dominance of “goal orientation”. This is controlled by managers or funders; scientists are being reduced to “fungible” units of manpower, proletarians deprived of property rights to the products of their labour. This marks a evolution of the “industrialised science” of the postwar period. [Embora ainda exista quem imagine que a ciência seja essencialmente uma procura inocente cultivada por indivíduos motivados pela curiosidade, essa imagem, actualmente, acarreta pouca credibilidade. Há um consenso sobre a ciência enquanto uma importante instituição social, com estruturas de prestígio e influência, e com a possibilidade de poder para iniciar, dissuadir, parar ou até suprimir investigação. Também se tem vindo a desenvolver uma contra-especialização institucionalizada no seio de grandes grupos ambientalistas, capazes de engajar num diálogo crítico com os especialistas oficiais. Esta nova organização social da ciência, por vezes descrita como “Modo 2”, é definida pela dominação de uma “orientação para objectivos”. Esta é controlada por gestores ou financiadores; os cientistas estão a ser reduzidos a unidades “fungíveis” de mão de obra, proletários privados de direitos de propriedade sobre os produtos do seu trabalho. Isto marca uma evolução da “ciência industrializada” do período pós-guerra.] (Ravetz, 1999, p. 648)
A interpretação que Ravetz faz neste texto da tese de produção de conhecimento de “Modo 2” considera esta tese como um diagnóstico positivo de uma transformação em curso. No diagnóstico feito por Gibbons et al. (1994), o conhecimento produzido nesta nova organização social da ciência seria “transdisciplinar” por transgredir o modus operandi tradicional da investigação científica disciplinar, reconhecendo que o trabalho conduzido por indivíduos, cientistas-recursos, não é determinado internamente mas pelo poder exercido pelos detentores do financiamento, obrigando a ciência a procurar validação numa comunidade de pares ampliada e exigindo à Ciência novas autoridades para validação do conhecimento. Nesta tese, o “normal” que se pretende superar ou transgredir parece estar associado a questões de poder e de autoridade sobre a validação do conhecimento produzido pela investigação “fundamental”, que os autores argumentam não ser depois colocada ao serviço da sociedade. Neste sentido, a Ciência Pós-Normal reforça o seu argumento num diagnóstico de transformação social e de emergência de uma ciência industrializada, proposto pela tese da produção de conhecimento de “Modo 2”. No entanto, a tese de “Modo 2” de Gibbons et. al. (1994) não é consensual na sua interpretação.
Uma síntese possível seria entender a tese de “Modo 2” como denuncia de que, com a reorientação das fontes de financiamento público para a indústria e consequente perda de autonomia da ciência; a par do aumento da “oferta” de trabalhadores aptos para produzir novo conhecimento, consequência da massificação do Ensino Superior, mas sem lugar nas universidades; e com o aumento da “procura” por novas soluções para os problemas “complexos” do séc. XXI, o “mercado” proporcionaria condições para a criação de novas equipas de investigação altamente qualificadas, móveis, empreendedoras - que, associadas a outras entidades e instituições (como consultoras, think tanks) as colocariam em posição de poder produzir conhecimento relevante em contextos particulares de aplicação e em colaboração com, novamente, comunidades de pares ampliadas. Contudo, estes argumentos não nos esclarecem sobre a natureza dos interesses e poderes que estariam no horizonte desta reconfiguração. Na obra seminal, em que a tese da produção de conhecimento de “Modo 2” é proposta, The New Production of Knowledge (Gibbons et al., 1994), o discurso parece assumir um carácter positivo e normativo alternadamente. Por um lado, o diagnóstico que fazem das consequências da massificação do Ensino Superior pode ser sustentado empiricamente - e sabemos como se têm intensificado os debates sobre o papel da Universidade na sociedade, questões sobre financiamento e reflexões sobre a sua missão (Stengers, 2018); por outro lado, parecem também fazer propostas normativas sobre a insuficiência da ciência “tradicional” para resolver os mesmos “problemas complexos” (Gibbons et al., 1994) argumentando que apenas um conhecimento transdisciplinar, consequente de uma lógica de produção de conhecimento de “Modo 2” seria capaz de o fazer. A transformação a que estaríamos a assistir diria respeito às lógicas de produção de conhecimento, saindo de um “Modo 1” (correspondente ao Modelo Humboldtiano ou da Universidade-Investigaçã6 em direcção a um conhecimento de “Modo 2”.
Aqui, conhecimento transdisciplinar aparece como alternativa ao conhecimento “normal”, disciplinar; mas, neste enquadramento, vemos uma associação entre ciência “normal” e investigação “fundamental” implícita, dada a ênfase que os autores atribuem aos contextos de aplicação e à necessidade de inclusão de pares não-especializados na avaliação da “utilidade” do conhecimento produzido. A tese de “Modo 2” avança com o argumento da necessidade de produzir um “novo tipo de conhecimento” neste contexto; mas ainda não explica de que forma este conhecimento é epistemologicamente diferente do conhecimento produzido pela ciência “normal”. Não fica claro se a denúncia, como entendida por Ravetz, se mantém; ou se a tese se apresenta também de forma ambígua para poder manter um certo grau de abertura. Portanto, a questão complexifica-se: se a “normalidade” pós-normal não estiver associada a uma inovação epistemológica; mas também não for claro de que forma modos de organização alternativos contra a hegemonização da industrialização da ciência podem garantir um conhecimento assente em investigação fundamental, como um bem público, parece perder-se a possibilidade de um nexo entre estas duas teses. Poderá ser útil incluir uma leitura histórica do contexto em que emergem estas críticas. Uma hipótese é que a “normalidade” a superar é característica da década de 1990.
Ciência Pós-Normal e a Universidade europeia na segunda metade do séc. XX
Partindo da análise de Ben Martin (2012), identifica-se uma primeira consequência da crítica epistemológica à ciência “normal”: a instrumentalização desses argumentos para a questão política e social em torno da missão e do papel da Universidade - o lugar por excelência da investigação fundamental, de financiamento público, da Universidade-Investigação ou de “Modo 1”.
A investigação fundamental (ou basic research), por oposição à investigação aplicada, é uma investigação cuja característica principal é o estudo científico desinteressado, ou seja, sem orientação para obtenção de lucro ou com financiamento público (Martin, 2012). A leitura de Martin confirma que a ideia de um modelo hegemónico de conhecimento produzido por uma investigação fundamental, encerrada numa “Torre de Babel” de cientistas abduzidos do mundo real parece não ser mais do que um ideal transitório na história das universidades europeias, caracterizando apenas o período entre 1945 e 1990. Para este autor, nas últimas décadas, tem sido enfatizada a importância do “terceiro eixo” da missão da Universidade (o da investigação), no sentido de aumentar a pressão para contribuir para a sociedade, para a economia, para o seu contexto local ou mais alargado. Esta tendência tem sido analisada sob duas perspectivas: uma mais pessimista - a Universidade e a investigação fundamental estão sob “ameaça”; e, uma outra, mais optimista - oportunidade na promoção da “Universidade empreendedora” (entrepreneurial university) no sentido de esta se tornar no “motor” de uma “Economia do conhecimento” (knowledge economy). Segundo Martin, a tese de “Modo 2” inscreve-se numa perspectiva “optimista”.
Esta divisão assume-se relevante na medida em que permite situar as propostas que emergiram desde a década de 1990, onde alguns momentos-chave vieram reavivar debates sobre a missão da Universidade e a sua relação com a sociedade, principalmente nas sociedades ocidentais. Nomeadamente: a queda do muro de Berlim e o fim da Guerra Fria, que originaram uma diminuição do financiamento para as ciências físicas, obrigando-as a procurar alternativas na indústria; o aumento da competição na economia de mercado globalizada - que teve como consequência o aumento da ênfase na “inovação” e na ligação entre Ciência e Tecnologia, levando por sua vez a um renovado interesse na terceira “missão” da Universidade devido às suas novas ligações com a indústria e consequente potencial de propriedade intelectual; e restrições da despesa pública nos países ocidentais, principalmente no rescaldo da crise de 2008 - tratando-se, na verdade, de um revivalismo de discursos já assistidos no passado, trazendo debates em torno da eficiência e relevância da Ciência e o seu financiamento, levando as últimas a procurar alternativas, nomeadamente na indústria (Martin, 2012). Estes fenómenos, segundo Martin, terão levado a um aumento dos discursos que atribuem acrescida importância à ligação entre Ciência e Tecnologia, à medida que se tornam um recurso imprescindível para os países assegurarem o seu lugar de “nicho”.
Consequentemente, as competências científicas e tecnológicas necessárias assumem assim um papel preponderante nas prioridades pedagógicas das Universidades. Naturalmente, este processo leva à desvalorização de “velhas” competências e de todas as que não concorrem para a aceleração deste projecto, deixando-nos a tarefa de aferir se a produção de conhecimento científico “normal” - ou “fundamental” - se terá transformado numa “velha” competência. Nesta interpretação, a crítica da tese da transformação dos modos de produção de conhecimento para um “Modo 2” associa estas questões argumentando que a investigação fundamental está obsoleta devido ao aparecimento de novas linhas de financiamento de investigação científica, que passam a incluir outros stakeholders - como a indústria, think tanks, etc. em si fomentados pela massificação do Ensino Superior e pela disseminação de profissionais com formação científica. Deste modo, este raciocínio conduzir-nos-ia a uma interpretação de que algo está a mudar de facto na “relação entre a Ciência e a Sociedade”; no entanto, Martin (2012) argumenta que estamos perante o resultado de um ciclo e que, na verdade, seria o “Modo 1” de produção de conhecimento - seguindo o Modelo Humboldtiano de financiamento público da investigação nas Universidades - a corresponder a um período transitório na História europeia dos modelos científicos, dado que emergiu no séc. XIX e dominou apenas o período entre 1945 e 1990. Nesta linha argumentativa, ciência “normal” não poderia sequer ser associada a ciência “tradicional”.
Peter Weingart (1997) confirma esta perspectiva ao argumentar que nem a Ciência Pós-Normal nem a tese da produção de conhecimento de “Modo 2” introduzem novas epistemologias, falhando ao reconhecer uma tese percursora, chamada “finalization thesis”, elaborada nos anos 70 e 80 do séc. XX. Weingart é particularmente crítico das teses da Ciência Pós-Normal e de “Modo 2”, afirmando que elas abordam os fenómenos de forma superficial e que, à falta de aprofundamento, ampliam e dramatizam as suas formulações. Ambas as teses se encontram, em alguns pontos, com a finalization thesis, Weingart reconhece. Por um lado, concordam que a Universidade perdeu o monopólio da produção de conhecimento, dando lugar a novas instituições, laboratórios industriais e think-tanks (também com mais recursos); por outro, concordam com a necessidade da contextualização do conhecimento e com a transformação da organização deste conhecimento: as disciplinas já não são enquadramentos fundamentais para a orientação da investigação, nem para a definição do objecto; partilham ainda da identificação da transformação dos critérios de avaliação, agora já não absolutamente controlados por comunidades de pares científicos, disciplinares, mas também influenciados por critérios sociais, políticos e económicos que emergem destes contextos particulares de aplicação do conhecimento.
Apesar deste diagnóstico partilhado, Weingart considera que as teses da Ciência Pós-Normal e da produção de conhecimento de “Modo 2” são vagas na sua conceptualização de “ciência normal” ou de “Modo 1” - contraste a partir do qual se formulam - e, ainda, assentam no pressuposto lógico - errado, segundo o autor - de que transformações institucionais da ciência acarretarão, necessariamente, uma “revolução epistemológica” (Weingart, 1997).
Ciência Pós-Normal: um estudo de caso
Sumariamente, se a ideia de “normalidade” utilizada na tese da Ciência Pós-Normal não tem um sentido estritamente Kuhniano; se não oferece uma nova epistemologia; se não está claro qual o seu posicionamento político quanto às fontes de financiamento que lhe estão associadas, nem às Instituições que a veiculam; e se as práticas de investigação a que se poderiam referir não podem ser entendidas como “tradicionais”, mas apenas momentâneas, na História Europeia; a Ciência Pós-Normal como atitude, ou como prática, poderia, talvez, mesmo assim, ser utilizada como estratégia emancipatória, conducente a um conhecimento reforçado, mesmo que apenas pelo mérito de se esforçar por incluir outros pares na sua validação e aferição de relevância para os problemas “reais” do séc. XXI.
No entanto, Jörg Friedrichs (2011), considera que não; pelo menos por agora. Esta conclusão sustenta-se numa comparação entre dois casos contrastantes da comunidade científica: o da International Energy Agency (IEA) e do Intergovernmental Panel on Climate Change (IPCC). A comunidade científica do IEA recusou-se a engajar na abordagem da Ciência Pós-Normal, enquanto a comunidade do IPCC decidiu aderir às suas orientações. Friedrichs conclui que, não obstante o IPCC ter sido mais bem sucedido a trazer a discussão sobre as alterações climáticas para a discussão pública, a sua autoridade ficou prejudicada por ter permitido atenuar as fronteiras entre conhecimento científico rigoroso e as agendas políticas dos diferentes membros do painel (que, no entanto, segundo a Ciência Pós-Normal, é condição necessária para haver pressão da sociedade não-especializada).
Após comparar os dois casos, Friedrichs pergunta-se se o alargamento da comunidade científica a comunidade de pares ampliada não seria possível de evitar com uma aprofundada educação para a Ciência e mostra-se céptico quando à eficácia da abordagem pós-normal quando o problema não é de facto um problema (por não ter uma solução tangível) mas se aproxima mais de um “dilema” com contornos existenciais que podem, no máximo, ser reconhecidos e minimizados, mas não resolvidos (Friedrichs, 2011). Aliás, esta posição encontra eco na tese popularizada por Ulrich Beck (1992) sobre a Sociedade do Risco. Para Beck, os riscos que advêm do desenvolvimento científico e da industrialização não só não podem ser controlados como ninguém pode ser directamente responsabilizado, fazendo do risco uma condição da existência humana dificilmente resolúvel de forma metodologicamente delimitada. Neste caso, a Ciência Pós-Normal não se mostrou adequada aos objectivos que, aparentemente, correspondiam quase na totalidade à sua formulação em génese. A “normalidade” contra a qual esta tese se insurge não se consegue definir através destas leituras. Sendo uma proposta filosófica (Funtowicz & Ravetz, 2008), não se enquadra em outras correntes da filosofia da ciência; não se identifica para além de um sentido alusivo a outras teses na área da filosofia e sociologia da ciência; e não se mostra suficiente para, isoladamente, alcançar resultados mais relevantes do que aqueles produzidos pela ciência “normal” no “mundo real”. Com que sentido pensar então a Ciência Pós-Normal?
Conclusões
Uma reflexão como a que é apresentada neste texto, fazendo parte de uma investigação “normal”, que depende da avaliação da sua relevância feita por pares, poderá ser, por enquanto, ainda útil, para salvaguardar algum rigor necessário quando os discursos que se impõem advogam transformações profundas da forma como temos vindo a produzir conhecimento sobre o Mundo, sobre o Real e sobre problemas reais. O estatuto conceptual de “normalidade” da tese da Ciência Pós-Normal não parece ser claro o suficiente para podermos concluir qualquer acepção concreta. Como caracterizar este “normal” indefinido, contra o qual se insurgem estas teses?
Uma hipótese passa pela reflexão sobre os efeitos que os movimentos pós-modernos tiveram na produção de conhecimento. Se o Pós-modernismo trouxe uma “obsessão epistemológica” pela “desconstrução radical” do conhecimento, de crenças, de visões do mundo (Tarnas, 1991), seria relevante pensar estes esforços, característicos das primeiras décadas do séc. XXI, como uma reacção contra a incerteza provocada pela destruição da possibilidade de “verdades universais” - vontades fundadoras do pensamento Ocidental? A tarefa parece sisífia e requer, talvez, Tempo (Stengers, 2018).
Segundo Dick Pels (2003), estamos a viver numa sociedade que pode ser definida como “dromocrática”, por ser dominada por uma constante aceleração das várias dimensões da vida, retirando a dimensão humana ao Tempo e forçando-nos a depender de Tecnologia hiper-rápida, a competir com ela, e a impor um ritmo patogénico à nossa existência - e à produção de conhecimento científico. A sua contribuição é particularmente relevante para compreender de que forma é que o processo de produção de conhecimento científico em termos “normais” está progressivamente condicionada pela força maior da aceleração dos resultados, da inovação e da abertura de novas áreas com novo potencial de expansão, da pressão para publicar e da subsequente compressão do espaço-tempo necessário para o exercício são da reflexividade científica. Mas os fundadores da Ciência Pós-Normal não mencionam, nem aludem, a esta “normalidade”.
Podemos, contudo, aproveitar a discussão a que esta tese alude e pensar os diferentes sentidos possíveis para as diferentes “normalidades” que, metafóricas ou não, talvez não possam ser contidas em definições lineares - ou disciplinares. Podemos reflectir sobre a (in)capacidade de definir o espírito desta “normalidade”; podemos entender a “normalidade”, contra a qual se revoltam estas teses, como alusiva a uma exaustão intelectual da obsessão pelo escrutínio ad nauseam do empreendimento da cientifização da experiência e do Mundo. E podemos aceitar muitas das críticas apontadas pelos seus proponentes como relevantes, nomeadamente no que toca aos processos de legitimação da autoridade científica, da pressão para publicar, da precarização laboral da qual depende a actividade científica, entre muitos outros (Stengers, 2018).
Esta questão direcciona-nos também para outro debate mais abrangente, nomeadamente o da missão da Universidade e o sentido da investigação “fundamental” no séc. XXI, incluindo a investigação disciplinar. Num momento em que o discurso em torno da pertinência da interdisciplinaridade e da transdisciplinaridade parece atingir consensos, somos forçados a reconhecer que, numa sociedade laica que se quer orientar pelo “bom” conhecimento científico, as tentativas de transcender ou transgredir as limitações da produção de conhecimento disciplinar ainda não parecem ter chegado a uma conclusão sobre o que se quer, realmente, superar. Face às ambiguidades que estes discursos apresentam, poderá ser prudente manter um espírito crítico, mas aproveitar desafiar também os pressupostos nos quais assentam as nossas (in)certezas científicas.
A investigação que ancora esta reflexão coloca-se, no debate descrito por Ben Martin (2012), numa perspectiva menos optimista quanto ao futuro da investigação fundamental, no enquadramento social, económico, histórico, político em que vivemos. No sentido de quem se propôs investigar o estatuto conceptual e a relevância da produção de conhecimento Transdisciplinar no momento presente, não se propõe aqui questionar a pertinência das denúncias dos limites da investigação disciplinar - que são efectivamente um obstáculo ao entendimento do conhecimento como sendo complexo, contextual e excludente de um conjunto de ecologias de saberes que não podem ser adquiridas formalmente. No entanto, este breve confronto com as contradições inerentes a estas teses ilustra como as críticas ambíguas podem ser, mais frequentemente do que não, apropriadas e instrumentalizadas por agendas que podem não ter a mesma missão a defesa da Universidade e/ou de Ciência como um bem público.
Se o objectivo é a colectivização da produção de conhecimento, a reconstrução do sentido com que ele é produzido, ou a revisão de modelos de aprendizagem e formação universitária, será prudente manter um espírito crítico e inquisitivo sobre as condições em que são denunciadas as limitações do modelo actual. Propondo que são as leituras das subtilezas dos discursos que melhor ajudam a orientar os caminhos do futuro, continuemos devagar.