Introdução
Os estudos conduzidos pela Sociologia têm contribuído para novos entendimentos sobre as diferentes potencialidades e riscos do Turismo, em domínios como os interesses das/os turistas, a gentrificação ou a autenticidade dos lugares. No decorrer das últimas décadas, as dinâmicas turísticas têm sido analisadas através de parâmetros principalmente ligados à atratividade dos lugares, ao intercâmbio cultural entre turistas e locais e ao crescimento económico de cidades e países. Quanto aos interesses das/os turistas, as suas motivações têm movido atenção crescente, procurando-se identificar e analisar os propósitos que circundam as deslocações e, em simultâneo, a forma como os lugares de acolhimento se moldam às suas expectativas e necessidades, preservando ou alterando a sua identidade. Estes caminhos de entendimento têm sido conduzidos, nos contextos nacional e internacional, a partir de um circuito em que cada trabalho contribui para orientar novas pistas. As novas linhas de investigação permitem colher novos dados para entender as dinâmicas turísticas na atualidade em profundidade, identificando, analisando e compreendendo as interligações entre os lugares, a sua história e as/os suas/seus visitantes.
Como explica Noeémi Marujo (2013), numa análise em que reúne o contributo de diversos autores, o caminho de proximidade entre a Sociologia e o Turismo começa, como refere Erik Cohen - na sua publicação datada de 1984 - em 1899 com o trabalho de Luigi Bodio, que publicou o primeiro artigo científico que interligava as duas áreas. Marujo (2013) identifica ainda que o diálogo entre as duas áreas progride e começam a construir-se os trabalhos que são reconhecidos como os primeiros e grandes contributos da Sociologia do Turismo, que surgem na Alemanha, perto de 1920.
Com recurso ao trabalho de Gil et al. (2003, citado em Marujo, 2013, p. 494), Marujo destaca que o autor H-J Knebel definiu o interesse da Sociologia pelo Turismo como a “sociologia da ciência do movimento de forasteiros”, no arranque do “estudo sociológico do fenómeno turístico”.
Com recurso agora ao trabalho de Dias (2003, citado em Marujo, 2013), Marujo acrescenta que H-J Knebel definiu, no seu livro Sociología del turismo: cambios estructurales en el turismo moderno, publicado em 1974, a disciplina como “a ciência que estuda o comportamento social [do ser humano], que transforma durante as férias o seu papel social, deixando para trás os diferentes papéis que desempenha (profissional, económico e social) e assumindo o papel de turista” (Dias, 2003, citado em Marujo, 2013, p. 498).
Ainda que com todos estes passos dados, o olhar da Sociologia para o Turismo como uma área de especialização e não somente como um tópico à margem da Sociologia surge a partir dos contributos de Erik Cohen (1972) - na sua publicação de 1972 - e Dean MacCannell (1989) - na sua publicação original de 19761 -, sendo este último considerado o proponente da primeira grande abordagem ao Turismo por parte das Ciências Sociais (Meethan, 2001). Também o contributo de John Urry (1990)2 abriu as portas a uma análise social do Turismo, focada na forma como as pessoas se desviam do quotidiano para assumirem o papel de turistas, que o autor identifica como uma característica dos seres modernos.
A “complexidade do fenómeno turístico”, como também a pesquisa “marcada por um lento progresso”, como refere Noémi Marujo (2015, pp. 46-47), são características que sustentam a necessidade de a academia emprestar novos olhares às dinâmicas turísticas para que melhor se compreendam os seus contornos e impactos. A par da complexidade dos fenómenos turísticos, também o entendimento das experiências turísticas tem suscitado interesse face à diversidade de vivências que podem decorrer nas atividades turísticas. Na busca por um aprofundamento desta dimensão de análise, Noémi Marujo (2016) desenvolveu um estudo que fornece uma análise alargada de diferentes perspetivas de interpretação da experiência turística. Nesta análise, que abarca os contributos de autores de várias áreas do saber - da Sociologia à Geografia - a autora conclui que “não há só uma teoria para definir a natureza e o significado das experiências turísticas” (Marujo, 2016, p. 11).
Admitindo esta heterogeneidade, há, no entanto, diversos esforços para a compreender, analisando a forma como se encontram as/os turistas com os lugares. Com recurso à teorização de Can-Seng Ooi, publicada em 2005, Marujo (2016) destaca seis abordagens às experiências turísticas: i) a abordagem da psicologia cognitiva das experiências turísticas, que aborda as expectativas e perceções de turistas e a forma como estas afetam as experiências; ii) a abordagem das experiências turísticas positivas, focada no reforço positivo da experiência nas/os turistas; iii) a abordagem do estado de espírito e envolvimento experiencial, orientada para as experiências como um momento fora do comum e com grande significado; iv) a abordagem da fenomenologia da experiência turística, orientada para o processo de aprendizagem; v) a abordagem da natureza visual da experiência, focada na experiência turística com aspetos distintos da vida quotidiana; vi) a abordagem da economia da experiência, orientada pela busca por experiências únicas. Esta análise de seis formas de compreensão da experiência turística congrega esforços no sentido de encontrar teorias para definir a prática, tendo sempre em conta a diversidade que lhe é intrínseca, como também a necessidade de recorrer ao campo para testar as diferentes formas que pode assumir.
A reflexão na área do Turismo é também demarcada por metodologias quantitativas e qualitativas, assumindo a Sociologia uma particular responsabilidade na interligação entre os dois universos metodológicos. As metodologias qualitativas assumem uma importância particular na análise das práticas turísticas, na medida em que “oferecem um grande potencial, ajudando-nos a compreender as dimensões humanas da sociedade, o que inclui as implicações sociais e culturais do Turismo” (Marujo, 2015, p. 60).
A relevância da investigação qualitativa é particularmente evidente no que diz respeito a trabalhos que buscam identificar e compreender dinâmicas turísticas que lidam com heranças particularmente difíceis. Nestas dinâmicas com uma pesada herança histórica, desenrolam-se duas dimensões particularmente relevantes: a forma como se aprende a herança histórica (Marujo, 2015) e a extensão da mercantilização na sociedade (Watson & Kopacheski, 1994). Esta última coloca os lugares em constante transformação, seguindo desígnios de mercado. No resgate da História para ser consumida nos lugares turísticos ao redor do mundo, diversos contributos são avançados para lançar novas linhas de reflexão sobre este encontro entre o passado e o presente.
Um dos avanços na discussão foi impulsionado pelo sociólogo John Urry (2001) que, há três décadas, na obra The Tourist Gaze, identificava algumas preocupações relacionadas com o fascínio pela contemplação do que é considerado histórico. Numa reflexão sobre o cenário da Grã-Bretanha, com um olhar centrado na cultura museológica e naquilo que apelida de “doença da nostalgia”, o autor considera que a questão central “não reside em saber se devemos ou não preservar o passado, mas que tipo de passado escolhemos preservar” (Urry, 2001, p. 150). Defendia que se devia potenciar “uma cultura baseada na compreensão da História e não num conjunto de fantasias em torno da tradição” (Urry, 2001, p. 150). Na mesma linha de alerta sobre o consumo do passado, também Carlos Fortuna deixa um contributo para suscitar novas interpretações sobre a forma como se apresenta o passado nos nossos dias. Este alerta para a banalização das narrativas de sofrimento, sempre que os lugares com um passado pesado são entregues ao “mercado turístico da nostalgia e do património” e adianta que “sem boas práticas e bons usos sociais, a insistência no património tem apenas o efeito de fazer esmorecer a nossa crença num futuro decente” (Fortuna, 2016, p. 12).
Os contributos e questionamentos de Urry e Fortuna são particularmente relevantes como ponto de partida para entender uma dinâmica turística que, não sendo um novo produto, se tem assumido como um tema estruturante para as Ciências Sociais nos últimos 20 anos: o dark tourism. O papel de relevo desta dinâmica turística para a análise e compreensão do Turismo a partir da Sociologia prende-se, nomeadamente, com a oportunidade que fornece para colher entendimentos sobre a forma como são potenciados lugares de dark tourism e os seus efeitos nas/os visitantes. Permite, assim, aprofundar as formas que assume e como se expande esta dinâmica turística ligada a momentos sombrios.
Enquadramento teórico
A prática turística ligada à visita a lugares associados ao sofrimento ou à morte tem sido definida por via de diferentes terminologias. Negative sightseeing (MacCannell, 1989), out of the ordinary experiences (Urry, 1990), black spot tourism (Rojek, 1993), thanatourism (Seaton, 1996), tragic tourism (Lippard, 1999), morbid tourism (Blom, 2000), dutiful tourism (Hughes, 2008) e internal obligation (Kang et al., 2012) são alguns dos termos que assinalam a diversidade de leituras que têm sido produzidas sobre esta dinâmica turística.
A diversidade de leituras reflete não só a regular busca para encontrar novas terminologias para definir esta prática turística, como também a heterogeneidade do dark tourism, assente, por exemplo, nos contextos sociais e políticos dos países onde se encontram os lugares que são objeto do estudo, como também a missão e fontes de financiamento destes sítios.
Apesar da diversidade de descrições, é o termo dark tourism aquele que tem sido analisado e revisitado com maior regularidade e profundidade. Foi teorizado por Malcolm Foley e John Lennon, em 1996, e define esta dinâmica turística como “a apresentação e o consumo pelos visitantes de locais de morte e de desastres reais preparados para serem mercantilizados” (1996, p. 198). Para os autores, que tomaram como ponto de partida a visita a sítios associados à vida e à morte do 35.º Presidente dos Estados Unidos da América, John F. Kennedy, os média têm um papel central no desenvolvimento deste fenómeno. No seu entendimento, as/os visitantes destes lugares podem ter sido “motivados a realizar a visita pelo desejo de experienciar a realidade por trás das imagens dos média e/ou por uma associação pessoal com a desumanidade” (Foley & Lennon, 1996, p. 198), considerando também que levanta questões éticas, motivadas, nomeadamente, pela extensão da interpretação destes fenómenos. O fascínio pela contemplação de desastres reais é, para Foley e Lennon, uma motivação determinante para as/os turistas.
Para outras/os autoras/es que revisitaram esta definição da dinâmica turística, o preconceito ético de assumir que um fascínio pelo mórbido é a única motivação das/os visitante é uma das críticas que são apontadas à leitura que Foley e Lennon propõem, pela limitação das motivações no usufruto destes lugares. Michael S. Bowman e Phaedra C. Pezzullo criticam a rigidez com que se procura definir a forma certa de praticar dark tourism. Consideram que as dicotomias que têm sido propostas para pensar esta prática - que só pode ser “séria ou frívola e educacional ou entretenimento” (Bowman & Pezzullo, 2009, p. 195) - negligenciam as perceções diversas das/os turistas que visitam estes lugares. Concluem que pode ser tempo de abandonar o termo dark tourism, na medida em que este pode representar um “impedimento a análises detalhadas e circunstanciais dos lugares e performances e todas as suas particularidades e ambiguidades” (Bowman & Pezzullo, 2009, p. 199).
Nesta linha de interpretação, o conceito de edutainment abre também caminho à revisão das limitações da aplicação do conceito dark tourism. Aplicado numa análise a lighter dark visitor attractions, que se situam, segundo a teorização, num espetro mais leve dos lugares de dark tourism, Wyatt e colegas (2020) procuram demonstrar, através do design de interpretação destes espaços, que os lugares que promovem a educação-entretenimento “procuram desenhar as suas interpretações de forma que possam educar as audiências através de informações ancoradas académica e historicamente” (p. 13).
Na mesma linha de análise, outro contributo que vem também desafiar o conceito de dark tourism de Foley e Lennon é o de Rachel Hughes, a partir de um estudo de caso no Tuol Museum of Genocide, que resgata para atualidade o genocídio perpetrado pelo ditador Pol Pot no Camboja, entre 1975 e 1979. A autora (Hughes, 2008) sugere alguma prudência na forma como se interpreta o conceito e a forma abrangente como tantas vezes é aplicado: não se pode assumir somente que as/os turistas estão interessadas/os nos lugares de dark tourism apenas porque oferecem experiências fora do comum. Para Hughes (2008), a assumpção da/o turista como imoral falha na busca por explicar o turismo em lugares que não estão associados, definitivamente, ao divertimento.
A procura pela definição de categorias e subcategorias que permitam uma análise mais profunda e conhecedora da visita a lugares ligados ao sofrimento tem sido desenhada a várias mãos. Nos vários contributos que têm sido avançados, destacam-se dois trabalhos que colocam em evidência as motivações das/os turistas, como também a existência de diferentes intensidades dos lugares.
Um dos contributos é de Seaton (1996), que desenha uma proposta para definir cinco tipos de dark travel activities. Neste entendimento, as visitas ligadas a um lado mais sombrio do Turismo podem ser despoletadas por diferentes motivações que podem assumir várias intensidades, que vão desde a viagem para testemunhar encenações públicas de morte até à viagem para visitar lugares onde decorrem reconstituições de morte.
Philip Stone é outro dos autores que tem contribuído, em larga escala, para o entendimento desta dinâmica turística. No trabalho que publicou em 2006 (Stone, 2006), avança com duas possibilidades para a leitura e aplicação do conceito. Por um lado, o autor clarifica que a visita a estes lugares pode ser o resultado de diferentes objetivos: da espontaneidade ou premeditação da visita até existência de motivos políticos, de educação ou de entretenimento para impulsionar a viagem. Por outro lado, Stone desenha ainda categorias gerais para descrever os lugares que podem integrar esta dinâmica turística, sítios que denomina como dark attractions. Este contributo ajuda a justificar a complexidade de alcançar uma definição absoluta para a prática e, em simultâneo, dá a possibilidade de começar a segmentar caminho para compreender os lugares que podem integrar esta prática turística. Neste quadro de diferentes lugares que podem integrar esta definição, Stone (2006), aponta sete tipos de atrações: i) dark fun factories, sítios altamente turísticos que têm como principal propósito o entretenimento; ii) dark exhibitions, espaços destinados a potenciar oportunidades educativas e de reflexão; iii) dark fun dungeons, lugares associados à justiça adaptados para serem visitáveis, como, por exemplo, antigas prisões; iv) dark resting places, como cemitérios, largamente visitados devido à sua relevância arquitetónica; v) dark shrines, locais ou pontos próximos de lugares onde ocorreram mortes, que se tornaram numa espécie de memoriais; vi) dark conflict sites, como campos de batalha, que têm objetivos comemorativos e educativos, sendo um produto turístico com um grande potencial; vii) dark camps of genocide, que relatam e divulgam as maiores atrocidades da História.
No contexto português, também novos caminhos se têm trilhado na abordagem a esta dinâmica turística a partir dos contributos que se desenham internacionalmente. É o caso da revisitação que Ana Paula Fonseca e colegas (2015) fazem às categorias de Stone anteriormente referidas. Este contributo sublinha o papel do dark tourism no contacto próximo, mas seguro, com a morte por parte das/os visitantes em alguns lugares, como também a discussão na atualidade sobre os momentos e os lados mais sombrios da Humanidade.
Com a evolução das abordagens teórico-práticas ao dark tourism, tem sido possível trilhar novos caminhos de análise. Os conceitos e análises que se têm desenhado permitem compreender que o dark tourism é um fenómeno “complexo, multifacetado e multidimensional” (Sharpley, 2005, p. 220). Como prova a literatura, pode ser interpretado com recurso, nomeadamente, a três principais linhas de reflexão, levantadas por Lennon e Foley (1996) quando abordam os motivos que despoletam as visitas. Com recurso a uma vertente educativa, é possível analisar estes lugares a partir de uma abordagem à importância de conhecermos o passado no presente, como também no futuro. Pode também ser analisado através de uma vertente cultural, que pode ser interpretada como um encontro para homenagear os que sofreram ou partiram. E ainda a partir de uma vertente comercial, que se caracteriza pela prevalência de grandes desígnios de mercantilização nos lugares.
Sobre estas três possíveis linhas de interpretação dos lugares de dark tourism, há na literatura, nomeadamente, três contributos relevantes para justificar a assumpção de que estas três vertentes podem ser efetivamente válidas para a análise de vários lugares. Por um lado, Philip Stone (2012) revela que os lugares de dark tourism são importantes para “construir significados da morte e do sofrimento no passado para compreender o presente e a vida no futuro” (p. 78). O contributo de Philip Stone e Richard Sharpley (2008) é também relevante para a interpretação desta dinâmica turística, ao referirem que o dark tourism pode contribuir para o “entendimento de desastres e de eventos do passado que perturbaram projetos de vida” (p. 588). Na mesma linha, Carolyn Strange e Michael Kempa (2003), através de uma análise das prisões de Alcatraz, nos Estados Unidos da América, e de Robben Island, na África do Sul, adiantam que o cenário mais obscuro seria fechar estes lugares aos/às visitantes, em vez de enfrentar o desafio contínuo de interpretar o encarceramento, punição e isolamento forçado. Noutra análise, Carlos Fortuna (2016) deixa uma chamada de atenção que dialoga com a vertente destes lugares mais orientada para a mercantilização: “o princípio da sujeição de lugares de alto sentido patrimonial da vida humana a desígnios turísticos” (p. 11).
Uma abordagem ao conceito de dark tourism tendo em conta estas três vertentes pode servir como um importante mediador entre o espaço e seus/suas fazedores/as e o público, percebendo, assim, como se interligam o passado e o presente dos sítios e os impactos das suas missões nas necessidades e expectativas das/os turistas. Como revela a revisão da literatura, a forma como o conceito é analisado não deve excluir a sua diversidade, que pode ser a chave para compreender com maior detalhe o que simbolizam estes lugares para as/os visitantes e os fatores que motivam as suas visitas. Também a forma como é estruturada e concretizada a aproximação e o envolvimento das/os visitantes é uma componente forte para interpretação desta dinâmica turística.
No trabalho que Rachel Hughes desenvolveu no Tuol Museum of Genocide, no Camboja, para entender o impacto da visita nos/as turistas, a autora começa desde logo por procurar saber de que forma as estruturas governamentais dialogam com estes lugares. Neste caso, o museu analisado não surge nas publicações do Ministério do Turismo, sendo considerado por fontes oficiais do ministério como indesejável para grandes campanhas promocionais, dado que pode dar a ideia de que o Camboja não é um bom destino para férias (Hughes, 2008). Assim, a comunicação do espaço é feita localmente, através de publicações distribuídas em bares, restaurantes e guest houses e surge em alguns guias de viagem como um dos sete lugares de interesse de Phnom Penh, capital do país.
No trabalho de campo junto das/os visitantes, a autora indica que estas/es esperam que a visita ao museu vá apoiar o conhecimento sobre o genocídio, tendo estas/es expressado alguma preocupação perante o facto de o museu não lhes dar ferramentas para concretizar esta missão (o museu tem falta de financiamento e não é significativamente renovado desde 1979). Esta falta de novos materiais e de testemunhos para a interpretação do espaço, e mais latamente do genocídio, transforma a visita, pois Hughes (2008) depreende, assim, que estes passaram a tomar a visita como um gesto simbólico. A sua aplicação do conceito de dark tourism neste lugar - particularmente a ideia de Foley e Lennon (1996) de que o turista chega a estes lugares apenas a partir de grandes campanhas massivas de divulgação e com a missão de esclarecer dúvidas sobre os medos da modernidade - vem demonstrar que a experiência real pode ser transformadora do conceito. A autora acrescenta que o resultado da visita das/os turistas ao museu pode denominar-se por dutiful tourist em que, pela falta de conhecimento mais abrangente, estas/es se sentem impelidas/os a ajudar as pessoas e organizações locais como uma espécie de gesto simbólico de homenagem. Para Hughes (2008), o Turismo em lugares de violência política em massa é significativamente mais complexo do que o atual dark tourism ou o (a)moral tourism, em grande medida porque estas teorias “generalizam e diminuem o que se propõe a explicar” com esta prática turística (p. 328).
Percebe-se, portanto, que a comunicação é também fundamental na interpretação deste fenómeno. Nesta linha, Jiaojiao Sun e Xingyang Lv (2021), no seu trabalho sobre Chernobyl, recorrem a imagens e aos sentimentos que elas despoletam para entender esta dinâmica turística numa abordagem mais próxima do marketing. Neste estudo, destacam, nomeadamente, a importância da gestão dos espaços e a forma como estes se moldam para se comunicar aos/às visitantes, particularmente através das imagens que partilham sobre si próprios em websites de promoção turística, ou até mesmo durante as visitas aos espaços. Neste entendimento, baseado nas informações que recolheram, o dark tourism é um processo de descoberta em que vários atores e meios vão intervindo para apresentar os lugares aos/às visitantes.
As propostas de categorização do conceito de dark tourism que aqui têm sido analisadas constroem-se num contexto de expectativa de que o conceito possa ser mais enriquecedor do que limitador no processo de compreensão do Turismo na atualidade. Tal não significa que se deva rejeitar, à partida, a existência de um conceito lato para definir esta prática em linhas gerais, mas devem considerar-se também as diversas aplicabilidades do conceito para entender qual é a definição, e também o significado, desta prática em diferentes países. Philip Stone e Richard Sharpley (2008) alertam que a literatura sobre esta dinâmica permanece eclética e teoricamente frágil, sendo importante procurar compreender se será “possível e justificável categorizar coletivamente a experiência em lugares ou atrações que estão associadas à morte ou ao sofrimento como dark tourism” (p. 575).
Abordagem metodológica
Em Portugal, o aprofundamento do dark tourism é um território com múltiplas potencialidades de análise. Por parte das Ciências Sociais, começaram a desenhar-se contributos que abrem uma reflexão mais aprofundada sobre a aplicação do conceito no contexto nacional. A Área Metropolitana de Lisboa (Santos & Joaquim, 2018) e as cidades de Viseu (Fonseca, 2015) e do Porto (Gonçalves, 2017; Liberato et al., 2019) são três exemplos de casos de estudo em Portugal.
Se olharmos para as características já previamente mencionadas no enquadramento teórico - nomeadamente a ligação a uma herança pesada -, facilmente nos saltam à memória alguns lugares no contexto português. As prisões políticas do Estado Novo, regime político ditatorial que dominou Portugal entre 1933 e 1974, são um pertinente exemplo para auscultar o conceito no país. A Cadeia do Aljube e a Cadeia do Forte de Peniche, que hoje são a casa de dois museus que evocam a resistência à ditadura e a conquista da liberdade, são espaços que é possível analisar através da mobilização das características associadas às práticas do dark tourism. Tratando-se de lugares que se enquadram no ato de visitar lugares ligados ao sofrimento, é analisada neste artigo a Cadeia do Forte de Peniche, denominada desde 2017 como Museu Nacional Resistência e Liberdade - Fortaleza de Peniche (MNRL),3 espaço ainda em construção, que esteve até recentemente aberto ao público, mas ainda não de forma finalizada. No dia 9 de fevereiro de 2022, o MNRL encerrou ao público para dar lugar ao arranque das obras no valor de 2.995.803,55 euros, que têm como data prevista para conclusão o primeiro trimestre de 2023.
Tratando-se de um projeto em construção, que procura reavivar a memória sobre um dos momentos mais duros da história do país, considerou-se relevante compreender como se tem construído e envolvido as/os visitantes, assim como o posicionamento que procura futuramente conquistar. Para ilustrar este percurso, foi realizado um trabalho de campo exploratório, com recurso a entrevista semiestruturada exploratória, a uma visita de observação não participante e à análise da documentação disponível para procurar entender e ilustrar o posicionamento atual do MNRL, os entendimentos até agora colhidos sobre quem o visita e o que pretende ser no futuro.
Foi antes do seu fecho para dar lugar à empreitada que se realizou o trabalho de campo exploratório, com o intuito de acompanhar e registar o seu tempo pré-museu, isto é, antes de assumir o funcionamento e aspeto que foram definidos pelo Governo. O trabalho de campo iniciou-se com uma visita, a 29 de fevereiro de 2020, aos espaços que estavam na altura abertos ao público. Nesta visita não orientada, sem recurso a um/a guia, procurou perceber-se como se circula, visita e perceciona o espaço apenas através da sinalética e orientação individual.
Depois da visita exploratória, procurou-se o contacto com a equipa que está envolvida na construção do MNRL, com o intuito de abordar com maior precisão as linhas que estão a orientar este projeto. Esta entrevista semi-diretiva decorreu a 7 de março de 2021 e contou com a participação de Aida Rechena, que na altura era museóloga do Museu, tendo sido nomeada em julho de 2021 diretora do MNRL. Na entrevista, abordaram-se tópicos que foram definidos a partir das análises anteriormente relatadas desta prática turística: a interpretação e a narrativa do espaço, as motivações de visitantes, o contexto político em que se insere e a forma como são encarados as/os visitantes. Para cada um destes tópicos, foram definidas algumas questões fechadas e outras de caráter aberto. A informação recolhida tem um caráter exploratório, não tendo, por isso, a missão de contribuir para uma análise encerrada, mas antes para desenhar novos caminhos de análise deste e de outros lugares em território nacional.
Para a análise documental, foram mobilizados os principais documentos de acesso público que explicam como será a futura estrutura do Museu.
Análise de resultados
Os primeiros registos de atividade da Fortaleza de Peniche remontam ao Século XVI e à sua ligação à defesa do território, tendo assumido, portanto, uma função militar. Foi com o golpe militar de 1926, que marca o início da Ditadura Militar em Portugal, que em 1933 deu lugar ao Estado Novo, que começa a demarcar-se o seu papel enquanto prisão política. A Fortaleza de Peniche tornou-se numa das principais prisões políticas de segurança máxima do regime ditatorial dirigido por António de Oliveira Salazar, sempre sobre a forte repressão a cargo da Polícia Internacional de Defesa do Estado (PIDE). O dia 27 de abril de 1974 - após o triunfo da Revolução dos Cravos, a 25 de abril, que derrubou o regime fascista - trouxe a libertação dos presos políticos da Cadeia do Forte de Peniche.
Entre 1977 e 1982, a Fortaleza de Peniche recebeu um Centro de Acolhimento de Refugiados, dirigido pela Cruz Vermelha, que albergou retornadas/os das antigas colónias. Em 1984, a Câmara Municipal de Peniche destina o espaço para atividades de natureza cultural e lúdica, passando a denominar-se Museu de Peniche, que era dinamizado, nomeadamente, através de um núcleo dedicado à resistência ao regime fascista4
Em setembro de 2016, a Fortaleza de Peniche surge na discussão pública depois de ter sido anunciada a sua integração do Programa REVIVE, iniciativa partilhada pela Direção-Geral do Património Cultural, pela Direção-Geral do Tesouro e Finanças, pela Direção-Geral dos Recursos da Defesa Nacional e pelo Turismo de Portugal, I.P. Este projeto traduz-se, na prática, na cedência a investidores privados de imóveis públicos que não estão a ser usufruídos pela comunidade para que sejam afetos a atividades, nomeadamente, nas áreas da hotelaria e da restauração. No âmbito desta cedência, a Fortaleza de Peniche viria a ser, muito provavelmente, transformada numa pousada.
Perante este anúncio, rapidamente uma forte contestação se iniciou. Por iniciativa da União de Resistentes Antifascistas Portugueses, foi lançada uma petição e também um protesto contra esta opção governal, que reuniu em torno desta causa ex-presos políticos, familiares, amigas/os e pessoas de diversos quadrantes políticos. Dois meses após o anúncio da integração no Programa REVIVE, a decisão é revogada. Começa assim um novo caminho de conservação e revitalização deste local que é símbolo de luta pela liberdade em Portugal.
Para dar seguimento ao processo de revitalização do espaço, foi criado pelo Ministério da Cultura, em janeiro de 2017, o Grupo Consultivo para a Fortaleza de Peniche. O grupo de peritos, consultado para avaliar as futuras utilizações do espaço, comunicou, em abril do mesmo ano, que este deveria ter como principal motor um núcleo museológico. Face a esta recomendação, o XXI Governo Constitucional, através da Resolução do Conselho de Ministros n.º 73/2017 (Resolução do Conselho de Ministros , 2017), determina a criação de um museu nacional na Fortaleza de Peniche. Assim nasce o projeto, aberto ao público a 25 de abril de 2019, ainda que numa versão provisória, pois ainda decorre a fase de obras e de construção do núcleo museológico.
Os principais documentos orientadores da criação do museu são o Programa Museológico (Pereira & Albino, 2017), publicado em setembro de 2017, e o Guião para os Conteúdos do Museu Nacional da Resistência e da Liberdade - Fortaleza de Peniche (CICAM, 2018), que data de abril de 2018 e que foi desenvolvido pela Comissão de Instalação dos Conteúdos e da Apresentação Museológica (CICAM). O projeto visa a “recuperação, valorização, interpretação e musealização dos espaços simbólicos da Fortaleza de Peniche que transmita às novas gerações os valores da soberania nacional e da democracia e o exemplo da resistência e da luta pela liberdade” (Pereira & Albino, 2017, p. 2) e está afeto à Direção-Geral do Património Cultural (DGPC).
A futura exposição de longa duração será o cerne da narrativa do MNRL. Este projeto será construído com base em onze núcleos, que são apresentados no Guião dos Conteúdos do Museu Nacional Resistência e Liberdade (CICAM, 2018): Núcleo 1 - Parlatório; Núcleo 2 - Sala do Memorial, História da Fortaleza; Núcleo 3 - Lutar pela Memória; Núcleo 4 - O Regime Fascista; Núcleo 5 - O Sistema Policial e Repressivo; Núcleo 6 - O Colonialismo e a Guerra Colonial; Núcleo 7 - A Resistência Antifascista e Anticolonialista; Núcleo 8 - Fugas de Presos Políticos do Sistema Repressivo Prisional; Núcleo 9 - O 25 de Abril; Núcleo 10 - A Libertação dos Presos Políticos do Forte de Peniche; Núcleo 11 - A Cadeia do Forte de Peniche. Prevê-se que “1 000 peças/documentos que pertencem ao Núcleo de Resistência Antifascista e à Biblioteca dos Presos Políticos (...) sejam transferidos para o Museu Nacional Resistência e Liberdade” (Pereira & Albino, 2017, p. 4). A 26 de março de 2021, foi anunciada também uma colaboração entre a Direção-Geral do Património Cultural e a Associação Movimento Cívico Não Apaguem a Memória, para que a segunda entidade participe na criação de conteúdos e ceda “gratuita e temporariamente peças e documentos identificados como relevantes para completar e enriquecer o museu, em regime de depósito (ou doação)” (Cotrim, 2021, para. 3).5
A 25 de abril de 2021, a Ministra da Cultura, Graça Fonseca, em declarações à comunicação social (Lusa, 2021), por ocasião da cerimónia que assinalou o 25 de Abril no MNRL, referiu que estava previsto que a obra tivesse início no segundo semestre de 2021. Frisou que o Governo tinha no calendário a conclusão da empreitada até ao final de 2022, como também a preparação de todos os conteúdos em 2023 e a inauguração em 2024, aquando da celebração dos 50 anos do 25 de Abril.
Em julho de 2021, a comunicação social anuncia que estava escolhida a primeira diretora do MNRL (Público, 2021). A trabalhar como museóloga no espaço desde março de 2019, Aida Rechena foi nomeada a primeira diretora do espaço. Já a 9 de fevereiro de 2022 é anunciado que as portas do Museu se iriam fechar para dar início à obra que vai dar forma à estrutura desenhada para o MNRL (DN/Lusa, 2022).
A observação não participante foi realizada durante um fim de semana. Nesta visita, foram tomadas notas descritivas às quais aqui se recorre para tentar criar um imaginário, para quem não conhece, do espaço e dar conta da forma que assumia na altura.
A imponência arquitetónica da muralha rodeada maioritariamente pelo mar era um cartão de visita que facilmente indicava onde estávamos. A entrada estava devidamente sinalizada para deixar claro que estávamos perante um espaço visitável. Após passarmos a porta de acesso, contactámos com o Memorial aos Presos Políticos, inaugurado a 25 de abril de 2019, uma imponente estrutura onde estão listados os nomes dos 2 500 presos políticos que, ao longo de 40 anos, estiveram encarcerados na Cadeia do Forte de Peniche.
O imponente memorial abria o caminho para seguirmos para o interior do espaço (Figura 1). Lá, quatro espaços eram visitáveis (para além do já referido Memorial aos Presos Políticos): o Parlatório, local onde os presos políticos recebiam visitas; a exposição Por Teu Livre Pensamento, a primeira exposição temporária do MNRL; a Capela de Santa Bárbara; e o Fortim Redondo (Figura 2), que durante o Estado Novo servia como cela disciplinar de isolamento, espaço que ficou conhecido entre os presos político como Segredo, e de onde um dos presos políticos, António Dias Lourenço, fugiu em 1954. No interior da muralha, está também uma instalação artística da autoria de José Aurélio, ainda do tempo em que o espaço era tutelado pela Câmara Municipal de Peniche, e que celebra a Revolução de Abril.
A frieza, a imponência e o silêncio do espaço, apenas preenchido pelo som que chegava do mar, permitiam imaginar, com distância segura, a vida dos que ali foram aprisionados. Deu-nos acesso a um imaginário do que é habitar um espaço frio, afastado da realidade das ruas da cidade de Peniche, do rumo do país, da liberdade. O sentimento pesado com que nos confrontámos nos espaços exteriores é impulsionado pelos objetos e materiais de apoio que contavam a história deste espaço. O Parlatório (Figura 3) era provavelmente um dos espaços mais crus. Um espaço que permanecia fiel ao passado, onde as palavras expostas nos vidros das cabines de encontro davam pistas sobre a crueza e a impiedade de não ter o direito de falar sobre o que se gostaria de falar.
Para além da visita aos espaços, o MNRL promovia (e tem vindo a promover) ainda outras atividades para o público, como palestras ou ciclos de visitas, como a atividade: Conhecer o Museu e a Cidade - Roteiro da Resistência e Solidariedade, criada para transmitir informações aos/às visitantes sobre a Fortaleza Militar, a cadeia política do Estado Novo e a libertação dos presos políticos. A programação do espaço não era encerrada no espaço físico da antiga prisão política, mas ia antes dialogando com temas estruturantes para o presente, assim como com os sítios que circundam a Fortaleza de Peniche.
Mesmo com as portas fechadas ao público, o Museu procura continuar próximo da comunidade, continuando a levar o Museu às pessoas e incentivando a cidadania ativa. Também no digital o MNRL tem traçado o seu percurso, particularmente desde o primeiro confinamento, devido à pandemia de COVID-19, que fez com que as plataformas e as redes online passassem a ser uma nova forma de contacto com o público. Em março de 2020, foi lançada a série de testemunhos de ex-prisioneiros políticos da cadeia, chamada Histórias de Pessoas, Histórias de Resistência.
Sobre os dados resultantes da entrevista, foi possível extrair informações em quatro áreas distintas: i) as linhas de atuação e de comunicação, nomeadamente as atividades, a comunicação e o acolhimento de públicos; ii) a construção da narrativa do Museu por parte de ex-presos políticos; iii) a recetividade das/os visitantes e as suas perceções; iv) o Turismo como potenciador do museu.
No primeiro tópico da entrevista, abordaram-se as linhas orientadoras do MNRL, particularmente a construção da estratégia de comunicação. A diretora do MNRL defende que “a narrativa do Museu não deve ficar restrita à resistência à ditadura (…), mas refletir e dar espaço a todas as formas de resistência de períodos históricos e contemporâneos que visem a afirmação dos Direitos Humanos”.
Sobre as temáticas centrais da estratégia de comunicação, dividem-se em dois grandes eixos. Por um lado, a comunicação relacionada com a Cadeia do Forte de Peniche e, por outro, a Fortaleza de Peniche. Na primeira linha de comunicação, a entrevistada destaca quatro principais temas: i) “memórias dos familiares dos presos em Peniche com incidência para as visitas ao Parlatório”: ii) “memórias dos antigos presos políticos, o momento em que foram presos, interrogatórios, torturas, tribunais plenários, encarceramento, quotidiano na prisão, libertação”; iii) “ação política de resistência, ações individuais, coletivas, a clandestinidade, o exílio, os partidos, as eleições, etc.”; iv) “a solidariedade para com os presos políticos”. Relativamente à Fortaleza de Peniche, o espaço arquitetónico, Aida Rechena acrescenta que a comunicação incidirá “na sua história e evolução arquitetónica e as várias utilizações do espaço incluindo as memórias da população de Peniche relativas à Fortaleza”.
Sobre a composição da equipa, à data da realização da entrevista, no MNRL trabalhavam permanentemente cinco pessoas, tendo a Direção-Geral do Património Cultural duas técnicas superiores afetas ao Museu. Neste grupo de pessoas que trabalhavam, à data, permanentemente no Museu, duas estavam afetas à vigilância de salas e ao acolhimento e uma técnica superior estava alocada ao serviço educativo, fazendo também o acolhimento de grupos, as visitas guiadas e as atividades educativas. Contavam ainda com um voluntário que trabalhava no acolhimento e visitas guiadas. No que diz respeito à comunicação, não há uma equipa específica, sendo que “polivalência é a regra”, tendo como principais plataformas de comunicação o website, a página de Facebook, a página de Instagram, o canal de YouTube e a newsletter da Direção-Geral do Património Cultural. Sobre as visitas, Aida Rechena refere que, antes da pandemia, o acolhimento das/os visitantes era sempre personalizado, acolhimento esse que estava, à data da entrevista, suspenso, assim como as visitas guiadas.
No segundo tópico da entrevista, abordou-se a construção da narrativa em colaboração com os ex-presos políticos. A diretora adianta que esta articulação decorre “de uma forma muito natural até porque muitos estiveram associados ao movimento de defesa da instalação do Museu na Fortaleza de Peniche e participaram do movimento social que impediu que aqui fosse instalada uma unidade hoteleira”. Aida Rechena acrescenta ainda que os antigos presos políticos “mantêm uma rede de contactos entre si e as respetivas famílias”. Existem ainda contactos espontâneos que chegam “através de telefonemas ou de visitas ao Museu (…) que manifestam a sua disponibilidade para prestar testemunhos”. A entrevistada destaca ainda que sendo o Museu Nacional Resistência e Liberdade - Fortaleza de Peniche um “museu de memória, a recolha dos testemunhos é a ação fulcral do MNRL”.
No terceiro tópico analisado na entrevista abordou-se a recetividade das/os visitantes e as suas perceções. Aida Rechena adianta desde logo que “não existe nenhum estudo de públicos”, mas avança com uma caracterização geral: “os/as visitantes do MNRL são maioritariamente portugueses/as, ao contrário do que acontece nos restantes museus da DGPC”. Adianta ainda que “uma percentagem significativa [dos/as visitantes] chega em grupos de excursão e são cidadãos do grupo etário superior a 60 anos” e que “uma fatia importante de visitantes são estudantes nacionais”. Sobre os fatores de interesse do MNRL para as/os visitantes, adianta que “praticamente todos/as visitantes perguntam pelas celas da prisão, que neste momento não são visitáveis”, destacando que “existe claramente uma mística associada à prisão de alta segurança e uma heroicidade associada aos antigos presos”. O “funcionamento da prisão e o quotidiano prisional é outro tema que provoca muita curiosidade nos/as visitantes”, como referido na entrevista. Quanto ao desconhecimento sobre o passado do lugar, a diretora adianta que “há visitantes que desconhecem a luta e repressão que marca a narrativa do Museu” e que “a diferença de envolvimento emocional entre aqueles que ‘viveram’ a situação e aqueles que receberam os conhecimentos por intermédio de terceiros (a escola) é notória”. Exemplifica estas perceções destacando que “os mais velhos ficam extremamente emocionados com as imagens do 25 de Abril ou da Guerra Colonial Portuguesa, enquanto os mais jovens têm uma curiosidade que poderíamos chamar de ‘intelectual’, mas não afetiva e emocional”. No caso das/os visitantes de outras nacionalidades, a entrevistada partilha que “na sua maioria desconhecem a história, mas identificam o período do Estado Novo e associam-no a Salazar”.
O último ponto da entrevista foi dedicado ao Turismo como potenciador do MNRL. Neste tópico analisaram-se as principais mensagens que a equipa do Museu procura transmitir aos/às turistas. Aida Rechena refere que transmitem a todas/os que
se trata de um museu de memória e um museu de defesa dos direitos humanos; um museu localizado numa antiga prisão de alta segurança de um regime opressivo e violento; e chamam a atenção para o facto de a liberdade ser uma conquista e a sua manutenção exigir uma vigilância constante.
Sobre a importância da visita a espaços físicos marcados por um passado pesado, a diretora adianta que “não há comparação possível entre transmitir a mensagem no local onde os factos ocorreram ou num local ‘cenografado’ para o efeito”. Destaca ainda que no MNRL
o espaço fala por si mesmo e os edifícios são eles próprios documentos e objetos museológicos do museu: o parlatório, as celas, as celas de castigo, todos esses espaços falam mais por si próprios do que qualquer museografia que aí seja colocada.
Finaliza indicando que “é intenção do projeto de adaptação do espaço a museu manter intacto e intocável a maior quantidade de espaço possível”.
Nos trechos da entrevista que aqui se analisaram é possível identificar traços da prática de dark tourism que se discutiram no enquadramento teórico do artigo. Denota-se, assim, uma orientação do espaço para uma vertente educativa, como também cultural, através da abordagem a temas que afetaram o passado - como a privação da liberdade - e que podem contribuir para compreender o presente e a vida no futuro. Da entrevista, extraíram-se ainda outros dados relevantes: as diferentes motivações de visitantes, as emoções variadas que a visita despoleta, o impacto que o processo de emissão-receção de informação tem nas/os visitantes e a conservação fidedigna do espaço para ilustrar a sua história. Depreende-se, assim, que o Museu Nacional Resistência e Liberdade é um exemplo pertinente para entender a prática de dark tourism em Portugal, afirmando-se como um lugar com potencial para teorizar esta prática no país.
Conclusões e novas linhas de investigação
Neste artigo procurou-se explorar vários contributos que têm potenciado a evolução da análise do dark tourism. Desde propostas que procuram atribuir exclusivamente esta prática turística a determinados comportamentos e vontades até outras que procuram enaltecer a sua diversidade, percebe-se que este é um campo ainda com grande potencial de aprofundamento, sobretudo a partir de casos de estudo em diferentes latitudes. Neste sentido, procurou-se resgatar os conceitos e as linhas de interpretação com maior potencial de aplicabilidade no contexto nacional, como é o caso das vertentes educativa e cultural desta prática.
Para realizar o levantamento dessa aplicabilidade propôs-se estudar um caso particular português, o Museu Nacional Resistência e Liberdade - Fortaleza de Peniche. A sua particularidade reside no facto de ser um projeto que, mesmo antes da sua concretização plena - ou seja, sem ter ainda a forma idealizada para a apresentação ao público - foi possível visitar e que continua a ser ativado. Assim, pretende-se aqui chamar a atenção para a potencialidade que pode ter o acompanhamento, análise e interpretação continua de espaços com esta característica de estar em construção.
Este acompanhamento da execução dos lugares afigura-se como útil na medida em que pode permitir perceber as sinergias e as tensões que se criam no processo de construção. Ainda que os dados recolhidos para análise não sejam em grande quantidade, o seu estatuto prende-se fundamentalmente com a necessidade de ouvir intervenientes no processo de apresentação destes lugares ao público. Tratando-se de uma ferramenta de elevado valor para efetuar a articulação história-lugar-público, a comunicação6 pode ser um elemento estruturante em futuros estudos sobre o dark tourism, como demonstram alguns dos estudos resgatados no enquadramento teórico.
Apesar de se tratar de um estudo exploratório, facto que, desde logo, coloca limitações à investigação realizada, na medida em que é um tema merecedor de um maior aprofundamento empírico, o presente artigo procurou também contribuir para que não apenas investigadoras/es possam ter em conta estas dimensões de análise, mas também para que as entidades gestoras desta tipologia de espaços possam ter acesso ao conhecimento, analisando e, sempre que necessário, atualizando a forma como apresentam os seus lugares ao público. Perante a relevância do tema, como do estudo de caso, pretende-se retomar o seu estudo, quando o MNRL reabrir as portas e novas fontes e agentes estiverem disponíveis.