Introdução
Este artigo pretende discutir a organização, o trabalho e o voluntariado a partir de dois festivais de cinema portugueses. O artigo baseia-se em dados empíricos recolhidos num percurso de investigação que se desenrolou em duas etapas. Num primeiro momento, entre 2009 e 2013, procedeu-se ao estudo comparativo dos públicos dos festivais IndieLisboa e Curtas Vila do Conde. Aí, recorreu-se a uma metodologia mista, que compreendeu técnicas quantitativas e qualitativas, e fez-se um primeiro levantamento da informação relativa ao tema aqui em análise. O segundo momento, decorrido entre 2014 e meados de 2020, partiu dos dados anteriores e apoiou-se numa abordagem etnográfica realizada durante a colaboração pontual com um conjunto de festivais de cinema1. Nessa fase, investigaram-se dimensões mais subjetivas da organização, do trabalho e do voluntariado.
O objetivo do artigo é trazer a debate uma perspetiva que tem sido relativamente subalternizada nas pesquisas nacionais e internacionais sobre festivais de cinema. Interessou-nos, por exemplo, que os estudos disponíveis se tenham vindo a centrar muito mais na constatação da importância de alguns festivais de cinema na (re)organização do cinema mundial - no seu papel na evolução da cultura fílmica mundial, na função de gatekeeping (triagem, categorização e classificação da produção mundial de cinema) (de Valck, 2016a; Elsaesser, 2005) e de tastemaking (definição de gostos cinematográficos específicos) (de Valck, 2014, 2016a) - e bastante menos nos aspetos relacionados com o seu funcionamento.
Em 2011, Skadi Loist (2011), autora prolífica dos film festival studies, escrevia um artigo, para a revista Screen, onde alertava para a ausência de pesquisas que abordassem a condição precária dos festivais de cinema: a fragilidade destas estruturas, a informalidade e precariedade do trabalho, os vínculos laborais atípicos ou a excessiva dependência de estagiários e de voluntários. Este artigo procura responder, dentro das suas limitações, ao repto lançado por Loist. Nele reflete-se sobre se é possível identificar, nos festivais analisados, caraterísticas semelhantes ou aproximadas às descritas pela autora. Ambiciona-se, ainda, examinar em que medida a ligação das entidades promotoras dos festivais ao Terceiro Setor influencia a sua organização, num período em que se acentuam os processos de profissionalização e institucionalização dos festivais. E situam-se os dados e a discussão nas dinâmicas próprias das indústrias culturais e criativas, e nas tendências conhecidas do trabalho cultural contemporâneo.
O argumento do artigo é desenvolvido ao longo de três momentos. Inicia-se com uma breve revisão da literatura sobre o lugar ocupado pelas análises organizacional, do trabalho, das condições laborais e do voluntariado na pesquisa sobre festivais de cinema, nacional e internacional. Segue-se uma apresentação da metodologia que foi utilizada nas duas etapas de pesquisa que sustenta o artigo. Por fim, apresentam-se e discutem-se os resultados obtidos, respeitando as duas etapas de trabalho no terreno identificadas.
Perspetivas sobre organização, trabalho e voluntariado nos festivais de cinema
A análise da componente organizacional dos festivais de cinema tem merecido pouca atenção por parte da academia. O que parece paradoxal, já que, pelas suas caraterísticas, são contextos favoráveis à pesquisa organizacional. São várias as dimensões passíveis de análise: por exemplo, como gerem diversos grupos de interesses (cineastas, programadores, produtores, distribuidores, jornalistas, públicos, etc.), como administram recursos financeiros escassos, as estratégias que desenvolvem para lidar com a incerteza, ou como gerem recursos humanos muito heterogéneos (trabalhadores permanentes, intermitentes ou parciais, assalariados e voluntários) (Rüling & Strandgaard Pedersen, 2010).
Segundo Rhyne (2009, p. 9), os circuitos de festivais seriam alimentados por uma “discreta e nova indústria cultural”, dinamizada pelos vários stakeholders atrás mencionados. Essa nova indústria cultural teria como caraterística principal ser dominada pelo Terceiro Setor, mais concretamente por parcerias público-privadas. Uma estratégia que teria por fim harmonizar os interesses, por vezes conflituantes, das várias partes interessadas, colocando-os sob a égide do Estado e do mercado.
Se é verdade que os festivais de cinema podem assumir contornos bastante diversificados, a viragem neoliberal e a tendência para a privatização, atomização dos indivíduos e enaltecimento do mercado, tiveram um efeito nessas estruturas. Wong (2011), por exemplo, analisou a introdução da racionalidade empresarial nos festivais de cinema, expressa na proliferação de mercados e nos incentivos à indústria (apoios à produção, à distribuição ou à captação de investimento). Por sua vez, Cheung (2009) estudou a empresarialização do Festival Internacional de Hong Kong após décadas de gestão pública. E concluiu que a alteração no peso dos dois principais stakeholders do festival (a indústria cinematográfica e o governo local) transformou por completo a missão do certame - que terá deixado de ser um veículo de distribuição de cinema alternativo, para passar a ser um evento “populista, orientado para a indústria do cinema e para o mercado” (Cheung, p. 99).
Embora raros, alguns autores desenvolveram análises que trouxeram alguma luz sobre o modo de operar destas organizações. Foi o caso de Taillibert (2009), que, ao investigar os festivais de cinema e audiovisual em França, discorreu sobre a sua economia (questões de financiamento, orçamento e rentabilidade) e sobre como os certames gerem contingentes muito diversos de trabalhadores, na sua maioria com vínculos laborais precários, além de voluntários. Ou Fischer (2013), que elaborou um quadro conceptual em que propôs que os festivais fossem analisados como sistemas abertos e complexos, enquadrando teoricamente as suas diferentes operações e os principais fatores responsáveis pelo seu (in)sucesso. E, ao passo que Rüling e Pedersen (2010) argumentavam que uma abordagem organizacional aos festivais exigiria ultrapassar a tendência, verificada nos film festival studies, para a realização de estudos de caso, Fischer (2013) defendia que a inteligibilidade das micro-operações que acontecem nos festivais seria beneficiada por um conhecimento aprofundado de cada organização.
Na literatura internacional, apesar da escassez de estudos sobre as condições concretas em que se desenvolve o trabalho nos festivais de cinema, têm surgido alguns contributos instigantes, que partem, quase sempre, de abordagens etnográficas e/ou assentes na prática.
Mitchell (2017), no âmbito de uma pesquisa etnográfica levada a cabo no Festival Internacional de Cinema de Toronto, desenvolveu o conceito de “trabalho glamoroso”, que seria uma forma específica de comunicar estes eventos assente “na ideia de que o funcionamento subjacente ao festival é obscurecido a favor de uma imagem atraente e de uma experiência extraordinária para os participantes” (Mitchell, 2017, pp. 215-216). A autora argumenta que a pesquisa científica sobre festivais de cinema tem dado pouca ou nenhuma atenção a aspetos que, apesar de menos atrativos, são determinantes para o seu bom funcionamento. Quando o recorte analítico remete para a dimensão organizacional, o destaque tende a ser dado aos representantes dos festivais (a direção geral, a direção artística ou os programadores) e, muito raramente, a outros elementos tão ou mais essenciais à organização de uma operação tão complexa (como os profissionais, estagiários ou voluntários responsáveis pela gestão de cópias, pelo acolhimento a convidados, pelo marketing ou comunicação, pela assessoria de imprensa, os projecionistas ou os frentes de sala, entre outros).
Loist (2011) e Czach (2016), ambas com experiência de colaboração com festivais de cinema, não hesitaram em equiparar as condições de trabalho nos festivais às identificadas nos estudos sobre o trabalho nas indústrias culturais e criativas. Czach (2016), por exemplo, argumentou que uma maneira útil de compreender o trabalho de programação seria através de um conceito, o de “trabalho afetivo”, em que a imagem de prazer, de desejabilidade e de “emprego de sonho” associada ao ato de programar, serviria para invisibilizar outros aspetos, menos positivos, como a precariedade, as baixas remunerações ou o desgaste físico e emocional.
Já a persistente ausência do voluntariado nos estudos sobre festivais de cinema foi salientada por Dickson (2019), que defendeu que a natureza do voluntariado realizado nestas organizações - episódico e não contínuo - tem levado a que estes elementos não sejam equacionados como potenciais stakeholders dos festivais. Como tal, não só são excluídos das pesquisas, como os festivais se abstêm de pensar e pôr em prática modelos mais profissionais e estratégicos de gestão de voluntariado, que possam beneficiar ambos.
De resto, existe um determinado segmento de festivais de cinema, como os que têm uma clara agenda política, que têm no trabalho voluntário a sua essência (Loist, 2011). Colta (2019), por exemplo, introduziu o conceito de “trabalho emocional” para descrever o esforço envolvido na organização e programação voluntária de festivais sobre direitos humanos. Segundo a autora, além da necessidade de lidar com a precariedade material, há o desgaste intangível, que passa pela necessidade de visionar horas de imagens sensíveis e chocantes, e lidar com a responsabilidade de produzir uma programação responsável do ponto de vista ético. Por sua vez, Chada (2021) analisou o voluntariado em festivais LGBTQIA+ na Suécia, identificando uma dupla precariedade: a precariedade do trabalho, intensivo e desafiante, e a das identidades das pessoas que se voluntariam como forma exercer o que designa de “micro-ativismo”. Para os casos em estudo, rejeitou as conceções tradicionais de voluntariado “puro” e “altruísta”, observando que os voluntários são guiados por motivações específicas: o desejo de diversão, de desenvolvimento profissional, e o acesso e inclusão na comunidade LGBTQIA+ que se reúne nestes eventos.
Em suma, em anos mais recentes, verificou-se haver um número crescente de investigadores/as que têm procurado incluir a dimensão organizacional e do trabalho nas suas pesquisas sobre festivais de cinema. O recurso à pesquisa etnográfica e assente na prática tem sido determinante para divisar modelos organizativos, e para identificar as motivações, comportamentos e atitudes de trabalhadores e voluntários que exercem a sua atividade nestas estruturas. Todavia, continuam a faltar análises extensivas que permitam definir com clareza e quantificar as diversas condições perante o trabalho e o tipo de condições laborais que se estabelecem nestes contextos, para lá de constatações generalizadas sobre a precariedade e informalidade, à semelhança do que em Portugal se fez, recentemente, no estudo sobre os profissionais “independentes” da cultura de Neves et al. (2021a, 2021b) (que permite questionar os próprios limites do conceito de trabalho independente). Por outro lado, seria vantajoso descortinar a tensão existente entre trabalho assalariado e trabalho voluntário nos festivais, uma vez que os estudos existentes apontam para a existência de fronteiras dúbias entre ambos, que nem sempre são pacíficas e que são objeto de permanente negociação e de lutas internas.
Metodologia
Este artigo resulta de duas etapas de pesquisa, sequenciais, sobre o mesmo objeto - festivais de cinema portugueses - mas com enfoques e abordagens distintas. A primeira etapa, mais sistemática, correspondeu a uma investigação de doutoramento desenvolvida no âmbito de dois festivais de cinema portugueses, o Curtas Vila do Conde e o IndieLisboa2, cujo trabalho de campo decorreu entre 2009 e 2013 (Leão, 2019). Nessa pesquisa, pretendeu-se estudar os públicos dos festivais e os seus modos de relação com os eventos, isto é, as diferentes modalidades de participação e os vínculos distintos com os festivais. A metodologia articulou técnicas extensivas (inquérito por questionário) com técnicas qualitativas (entrevistas semiestruturadas a elementos da organização e dos públicos, e etnografia com recurso à observação participante, registo em diário de campo e registo fotográfico). Assim, entre 2009 e 2012, o Curtas e o Indie foram alvo de três visitas cada: uma primeira visita exploratória e de familiarização com ambos os festivais; uma segunda para aplicar um inquérito por questionário aos públicos; e uma terceira para realizar entrevistas aos públicos e investir, com mais disponibilidade, na participação nas atividades dos festivais. As questões organizacionais foram afloradas em entrevistas com a direção dos festivais e com voluntários, nos contactos com a produção dos festivais e nos registos etnográficos.
Após as três visitas mais regulares, e à medida que se começou a resolver a questão que lhes serviu de ponto de partida - decifrar as múltiplas identidades dos públicos daqueles festivais e respetivas motivações - deu-se início à segunda etapa deste estudo, onde outras interrogações sobre o mesmo objeto ganharam protagonismo: o festival de cinema como “formato” específico (Leão, 2017), a sua estrutura, organização, as relações de poder, as modalidades de recrutamento, as situações de emprego, o voluntariado.
Nos anos seguintes, optou-se por aprofundar o conhecimento sobre estes pontos a partir da colaboração direta com festivais de cinema. O objetivo era poder usufruir de um acesso mais facilitado aos bastidores e assim contornar as barreiras que um/a outsider - e até mesmo um/a insider, como fizeram notar Burgess e Kredell (2016) - encontra ao tentar aceder a aspetos mais específicos relacionados com a organização dos festivais (como, justamente, o financiamento, os modos de organizar o trabalho, ou as relações e posições de poder). Nesta etapa, a abordagem metodológica foi exclusivamente etnográfica. A observação participante foi acompanhada pelo registo sistemático dessas observações e pela reflexão sobre a experiência subjetiva de trabalho nos festivais de cinema. Entre 2014 e 2019, desempenharam-se várias funções no Porto/Post/Doc: Film & Media Festival (s.d.) - de todas as experiências, a mais longa e heterogénea. No festival de documentário portuense, participou-se em comités de seleção de filmes, auxiliou-se na escrita de sinopses sobre filmes para catálogos e redes sociais, colaborou-se com o Serviço Educativo, acompanharam-se jurados, apresentaram-se filmes, moderaram-se debates com os públicos nos pós-sessões (os chamados Q&A’s) e auxiliou-se na organização de atividades paralelas às sessões. Por sua vez, entre 2017 e 2020, e nos festivais Curtas Vila do Conde International Film Festival (s.d.a), Caminhos do Cinema Português (s.d.) e Porto Femme - International Film Festival (s.d.) , participou-se, pontualmente, em comités de seleção, atividades de júri e painéis de discussão académica. Estas atividades foram realizadas quase sempre em regime de voluntariado - o que também permitiu refletir sobre a condição de voluntário/a nestes contextos. Tal incursão proporcionou que se lidasse de perto com determinadas áreas da organização e se conhecessem as condições objetivas do trabalho a elas associado. Aprofundaram-se elementos como o tipo de trabalho envolvido na seleção/programação de filmes, na criação de conteúdos escritos, na avaliação e premiação de obras, nas atividades de formação de públicos e nas atividades de extensão (nomeadamente, de ligação à academia). Apreciaram-se as modalidades de recrutamento de trabalhadores e voluntários e clarificaram-se aspetos relacionados com questões logísticas e de organização, com as relações e hierarquias de poder, com o estabelecimento e manutenção de redes de profissionais, com as cadências ou temporalidades do trabalho, com as trajetórias e motivações de trabalhadores/as e voluntários/as.
Curtas Vila do Conde e IndieLisboa, duas referências no panorama português
O Curtas e o Indie são, indiscutivelmente, festivais de grande prestígio no contexto português. A importância de ambos pode medir-se, por exemplo, no reconhecimento institucional de que usufruem. A sua notoriedade deve-se ao papel que têm tido no incentivo à produção e disseminação do cinema português e na divulgação de cinema de autor, dessa forma contribuindo para o desenvolvimento do cinema e da cultura cinematográfica nacionais. É fruto, também, da significativa teia de ligações que os certames foram estabelecendo com os circuitos internacionais de festivais de cinema e com a indústria cinematográfica global. Ao mesmo tempo, um e outro têm êxito junto de públicos profissionais e não-profissionais, reunindo massas importantes de frequentadores. Estes fatores, entre outros, justificam a continuidade do apoio do Instituto do Cinema e do Audiovisual português, quase sempre pela verba máxima (Instituto do Cinema e do Audiovisual [ICA], s.d.).
Entre as duas iniciativas existem pontos de contato e de contraste, caraterísticas que modelam as suas estruturas e que influem o modo como se organizam. De seguida, especificam-se alguns desses fatores.
Entidades promotoras
O estatuto jurídico das entidades que promovem o Curtas e o Indie festivais é, respetivamente, o de cooperativa cultural e associação cultural sem fins lucrativos - à semelhança do que se verifica com uma parte substancial dos eventos cinematográficos em Portugal (Barbosa, 2015). Como fez notar Barbosa, ao mapear e caraterizar a exibição não comercial de cinema em Portugal, é comum o processo de institucionalização dos festivais ser progressivo: começarem por ser estruturas, compostas por grupos de pessoas ou até pessoas singulares, que dinamizam sessões de exibição de cinema num registo de informalidade; e, mais tarde, mediante os resultados obtidos e a clarificação das linhas de ação, optarem por constituir-se juridicamente numa associação ou cooperativa cultural.
O caso do Curtas foi exatamente esse. Quando se estreou, em 1993, funcionou a partir de uma associação juvenil, com um elevado nível de informalidade. Segundo a direção, durante alguns anos, o Curtas existiu num certo “vazio legal”, coincidente com a débil profissionalização deste tipo de estruturas de exibição de cinema (em especial, nesse período). E assim se manteve até 1997, ano em que foi fundada a Curtas Metragens - Cooperativa de Produção Cultural CRL, a partir da qual tem sido, desde então, organizado o festival. Já o IndieLisboa, iniciativa mais recente, de 2004, é, desde o seu início, promovido por uma associação cultural. Começou por ser, entre o ano da sua criação e 2013, desenvolvido pela Zero em Comportamento - Associação Cultural, passando a ser organizado, até aos dias de hoje, pela IndieLisboa - Associação Cultural.
Dimensão
A dimensão dos festivais é um dos principais elementos de distinção entre as duas estruturas. O tamanho de um evento desta natureza é determinado por fatores como o número de filmes exibidos, o número de visitantes em cada edição e o orçamento disponível (de Valck, 2016b). Segundo esses critérios, o Curtas é um festival de média dimensão, que acontece num município periférico da Área Metropolitana do Porto, o que interfere diretamente no número de participantes e no financiamento que é capaz de coligir. Por seu turno, o Indie, nascido na viragem do século, é o típico festival da nova geração: de grande dimensão, estabelecido na capital lisboeta, com outro acesso a infraestruturas de acolhimento para as suas atividades, uma afluência de públicos expressiva e fontes de financiamento mais heterogéneas à sua disposição.
Programação
Como aspeto comum, salienta-se que nenhum dos festivais se posicionou como um evento generalista (que exibe todo o tipo de filmes), preferindo investir em géneros específicos. Outra similitude prende-se com o facto de ter havido, a este nível, uma progressão. O Curtas é um festival mais especializado e de nicho, que começou por se focar num formato específico. Hoje, propõe-se divulgar cinema contemporâneo arrojado e experimental. Mantém as curtas-metragens como atração principal, mas tem evoluído no sentido de se afirmar como um festival ligado à experimentação, que testa as ligações do cinema a outras formas de expressão artística. Ao longo dos anos, granjeou estatuto e reconhecimento em circuitos mais especializados. Já o Indie, embora tenha agarrado inicialmente a ideia de exibir cinema independente ou de autor, depressa considerou, segundo a direção, o rótulo “limitativo” em termos de programação e propôs-se exibir filmes de todos os géneros (desde que não apontem ao circuito comercial). É, portanto, mais generalista que especializado, e mantém relações privilegiadas com alguns dos grandes festivais de “categoria A”.
Alcance
Segundo os parâmetros de diferenciação definidos por de Valck, ambos os festivais têm um “alcance internacional”. Além de se dirigirem a públicos e profissionais nacionais, ambicionam captar o interesse internacional e integrar-se num circuito mais vasto. Na perspetiva da organização do trabalho, a internacionalização deste tipo de eventos pressupõe serviços adicionais, como, por exemplo: a legendagem dos filmes numa ou em várias línguas de grande alcance, a assessoria de imprensa, a coordenação de convidados, a organização de visionamentos privados para profissionais da indústria, elementos do júri e imprensa, a dinamização de conferências e workshops, o incentivo do networking, ou a dinamização de eventos de encontro social (de Valck, 2016b), todas elas caraterísticas que podemos identificar nestas iniciativas.
Financiamento
Durante o trabalho de campo, a questão do financiamento revelou-se, juntamente com a das remunerações das equipas dos festivais, bastante sensível. Por não terem fins lucrativos, estas entidades podem usufruir, como sucede, do apoio do Estado e de instâncias do poder local. Mas o conjunto do seu orçamento resulta de uma combinação de fontes de financiamento, a saber: receitas próprias (bilheteiras, inscrições de filmes), subvenções públicas (e.g. apoios estatais, municipais, fundos europeus como o programa MEDIA) e financiamento privado. Existem, ainda, as contribuições em bens e serviços, que permitem aliviar custos associados às operações dos festivais.
A organização do Curtas, menos capaz de atrair apoios privados (por ser um festival de nicho situado numa região periurbana), declarou que o total da montagem financeira do festival situava-se entre os 300 mil e os 400 mil euros anuais. No caso do Indie, e apesar de sucessivas tentativas, não foi possível aceder aos valores exatos que compunham a respetiva montagem financeira. Porém, foi-nos dito pela direção do festival, em entrevista, que o mesmo teria, há já várias edições, um orçamento “a rondar o milhão de euros”: cerca de metade desse valor em numerário e, a outra metade, em serviços (as chamadas “valorações”, como permutas publicitárias, custos reduzidos em hotéis, etc.). Num e noutro caso, estima-se que os valores possam ser superiores e que o orçamento atual seja diferente, embora não tenhamos os dados que o permitam afirmar. Note-se, porém, que os montantes declarados são bastante restritivos, se ponderarmos os custos associados a uma operação complexa como é a montagem de um festival de cinema (Loist, 2011).
Institucionalização e profissionalização
Tanto o Curtas como o Indie apresentam uma trajetória marcada por uma progressiva institucionalização, evidenciada pelo reconhecimento das instituições públicas, mediáticas e pela sua validação nos circuitos cinematográficos em que se inscrevem. Simultaneamente, evoluíram no sentido de uma profissionalização crescente.
A ligação à indústria é muito vincada (cada vez mais) num e noutro caso, salvo a proporção e o foco específico de cada festival. Do Curtas nasceu a Agência da Curta Metragem, em 1999 e, do Indie, a Portugal Film - Agência Internacional de Cinema Português, em 2013, ambas presentes nos principais mercados dos filmes e empenhadas na promoção do cinema nacional. De resto, as atividades especificamente vocacionadas para os profissionais da indústria floresceram nos últimos anos. O Curtas concebeu o “Curtas Pro”, com iniciativas como debates, encontros e apresentações de filmes em fase de pós-produção (Curtas Vila do Conde International Film Festival, s.d.b). O Indie criou a secção “Industry”, responsável por dinamizar as “Lisbon Screenings” (sessões privadas para a indústria internacional), por gerir um Fundo de Apoio ao Cinema (que apoia filmes nacionais numa fase de pós-produção) e que, em 2023, vai promover o “IndieLab” (um workshop de desenvolvimento de projetos) e um Fórum para co-produções internacionais (IndieLisboa Festival Internacional de Cinema, s.d.). Este festival chegou ainda a desenvolver, entre 2018 e 2021, o “Plot”, um laboratório de desenvolvimento de guiões (FilmFreeway, s.d.). Contudo, apesar destes avanços, que se poderiam julgar ocasionadores de algum conforto, a batalha por financiamento (e pela manutenção da reputação entretanto granjeada) é feita a cada edição.
Notas sobre a organização nos festivais de cinema analisados
Estruturas dos festivais
O organigrama dos festivais em análise está espelhado nas fichas das equipas que estes disponibilizam nos seus websites ou nos catálogos anuais. É possível destacar, num e noutro caso, esferas centrais, a saber: a direção; a programação; a produção; o sponsoring ou financiamento; a administração e gestão financeira; a comunicação; a assessoria de imprensa; a gestão de cópias; o acolhimento de profissionais e convidados; o serviço educativo; as atividades destinadas à indústria (designadas de industry); outras atividades paralelas (festas, extensões, etc.); e a dimensão técnica.
No Indie, não só a equipa é mais numerosa como há, em algumas situações, mais do que um elemento associado a uma área (caso da gestão de cópias e do serviço educativo). O nível de especialização na atribuição de responsabilidades parece ser mais elevado e há atividades-chave que são relevadas (o comité de seleção, por exemplo, com os seus atuais 24 elementos). Por seu turno, no Curtas, observa-se que uma equipa menor tem como efeito a sobreposição de papéis (e.g. a mesma pessoa articula a coordenação da programação, das competições e da indústria; algo semelhante sucede com a assessoria de imprensa, a comunicação e as redes sociais), o que indicia uma menor especialização e requisitos de polivalência, flexibilidade e de acumulação de responsabilidades.
O tipo de estrutura discernida nestes festivais é em tudo semelhante à presente nos organigramas identificados num estudo extensivo sobre festivais de cinema e audiovisual em França (Taillibert, 2009), o que pode indiciar a tendência para a uniformização destes organismos, decorrente do seu processo de profissionalização. O que introduz variações são, como se referiu, os recursos humanos e financeiros disponíveis para alocar a cada domínio, pelo que avaliar as estruturas destes festivais permite entrever os efeitos do maior ou menor vigor orçamental na sua organização - algo que, naturalmente, não deve ser dissociado da sua missão, dimensão e alcance.
Temporalidades e recursos
Uma das consequências dos constrangimentos orçamentais sentidos pelos festivais observados é a escassez de recursos humanos. Fazer flutuar a mão-de-obra envolvida na sua organização é, como reconheceram outros autores (Fischer, 2013; Loist, 2011; Taillibert, 2009), uma das estratégias utilizadas para contornar esta adversidade. Estes festivais, à semelhança de outros, articulam uma equipa permanente, em funções durante todo o ano, com uma equipa sazonal - à medida que se aproxima a data do festival, as duas equipas vão coincidindo e os recursos humanos afetos à organização aumentam bastante. Este é o método de organização comum; o que varia, de acordo com a solidez dos certames e a sua função económica, é a proporção de trabalhadores assalariados, estagiários e voluntários, como observou Taillibert para o contexto francês (2009).
No caso do Curtas e do Indie, constatou-se que, no seguimento da sua profissionalização e consolidação institucional, os festivais sentiram a necessidade de estabilizar equipas para crescer de forma mais sustentada. A estratégia passou por investir em atividades realizadas para lá do espaço-tempo circunscrito dos festivais. Fizeram nascer outras entidades (complementares aos festivais, mas que os prolongam), investiram em curadorias e programações avulsas, organizaram extensões dos festivais, apostaram em iniciativas vocacionadas para a indústria, entre outras ações, por forma a poderem concorrer a financiamentos diferenciados e, desse modo, manter equipas permanentes mais extensas. Esta é, como notou Fischer (2013) uma forma de evitar o elevado turnover associado ao trabalho sazonal e de conter a perda de pessoas altamente qualificadas. E foi o que observou, no Curtas, com a criação da Agência da Curta Metragem, da Solar - Galeria de Arte Cinemática ou do projeto educativo Animar. E, no IndieLisboa, com a autonomização do IndieJúnior (a “secção” do festival passou a ser organizada no Porto, sob a designação IndieJúnior Allianz) ou da Portugal Film - Agência Internacional de Cinema Português.
Não obstante estes esforços, um traço persistente dos festivais analisados é o facto de neles haver um mínimo de trabalhadores remunerados e uma esmagadora maioria de mão-de-obra não paga, composta por estagiários e, sobretudo, voluntários. Dos poucos trabalhadores assalariados, alguns são-no a tempo inteiro, outros, a tempo parcial. A celebração de vínculos contratuais é rara, sendo o mais comum a prestação de serviços. Reportando-nos ao período da pesquisa no terreno, verificou-se que o Curtas Vila do Conde dependia muito mais do trabalho amador e voluntário para áreas-chave do festival, como a direção ou a programação, do que o Indie. A equipa permanente do evento nortenho era constituída por 11 pessoas. Mais próximo de julho, mês do festival, iniciava funções a equipa sazonal e, durante o certame, coexistiam entre 60 a 70 elementos - entre chefias intermédias e vários técnicos, mas também estagiários e voluntários. Para a pesada tarefa de seleção dos filmes em competição, a organização convidava várias pessoas externas à estrutura - mais de uma dezena - que eram integradas nos diversos Comités de Seleção existentes. Tais elementos faziam-no a título voluntário, sendo, posteriormente, gratificados com passes para o festival. Em alguns casos, a sua participação prolongava-se na escrita de conteúdos sobre os filmes para o catálogo do festival. Hoje, segundo informação disponível na página oficial do festival, o staff permanente será de apenas 12 pessoas, mas as colaborações externas “mais de 50" e os voluntários ”cerca de 100" - o que denota um crescimento muito acentuado desta estrutura, assente, principalmente, no trabalho sazonal e no voluntariado.
Já o orçamento mais robusto do IndieLisboa, aliado ao facto de o evento decorrer na capital, facilitou, desde a sua génese, o acesso a recursos humanos especializados. A equipa permanente do festival lisboeta, no período em que se desenvolveu o trabalho de campo, era mais extensa do que a do Curtas. As tarefas de programação e de seleção de filmes eram repartidas por alguns destes integrantes permanentes. Contrariamente ao Curtas, existia apenas um ou outro convidado, exterior à equipa, para desenvolver esta função (não tendo sido possível descortinar se remunerado ou em regime de voluntariado) - situação muito diferente do atual extenso comité de seleção. À medida que se aproximava o mês da realização do festival, maio, a organização era apoiada pela equipa externa, sazonal, além de um conjunto importante de estagiários (cerca de 20) e por ainda mais voluntários (em torno dos 80). Durante o festival, a equipa completa ascendia às 150 pessoas. Atualmente, o número de voluntários por edição do IndieLisboa rondará, segundo informação constante na página oficial do festival, as 120 pessoas, o que representa um incremento muito significativo deste contingente desde a avaliação anterior.
Em suma, nos festivais analisados parece haver uma tensão entre a institucionalização, profissionalização e a abertura ao mercado exigidas a estas entidades, vinculadas ao Terceiro Setor - a “racionalidade empresarial” a que se referia Wong (2011) - e a persistência (e, até, exponenciação) de modelos organizativos caraterizados pela precariedade, pela informalidade e por uma crescente dependência do voluntariado.
Caraterísticas do trabalho, remuneração e tipos de recompensas
Apresentadas as estratégias de organização do trabalho nestes dois festivais, sintetizam-se, de seguida, as principais caraterísticas que, na nossa pesquisa e prática, pudemos identificar no trabalho, remunerado e voluntário, desempenhado nos festivais de cinema que informaram este artigo. Constatou-se que as especificidades observadas são, em muitos aspetos, consentâneas com a literatura disponível que discute o trabalho desenvolvido nas indústrias culturais e criativas, como sugeriam Loist (2011) ou (Czach, 2016) a respeito de festivais de cinema internacionais.
A invisibilidade do trabalho
A organização de um festival de cinema, em particular quando este tem alguma dimensão, envolve um esforço considerável. Porém, as especificidades das funções realizadas e as dificuldades que resultam de ter de gerir recursos humanos insuficientes (e um exército de mão de obra gratuita) raramente são exteriorizadas. A tendência é para dar a conhecer os aspetos atrativos de trabalhar nos festivais (Mitchell, 2017), fabricando-se um hype em relação ao trabalho cool realizado nestes contextos (Neff et al., 2005). Esta é, no entanto, uma narrativa parcial, cuja desconstrução é urgente, como é urgente tornar mais acessível o conhecimento das operações levadas a cabo nos festivais.
Elevadas qualificações e exigências de polivalência
Os profissionais assalariados e os voluntários envolvidos na organização dos festivais de cinema tendem a, na generalidade das áreas de ação, ter qualificações académicas elevadas ou muito elevadas, na linha do que fora identificado para o SCC europeu (KEA European Affairs, 2006) e para os profissionais da cultura em Portugal (Gomes & Martinho, 2009). Contudo, a estes não é exigida uma formação específica, como fizera notar Loist (2011). Foi-nos possível encontrar elementos com funções similares e formações distintas: formação artística, em alguns casos, nomeadamente na área do cinema, ligações à academia ou de áreas muito diversas (educação, advocacia, contabilidade, gestão, design, entre muitas outras). Nestas estruturas são também frequentes as exigências de polivalência. Ou seja, é esperado que a mesma pessoa seja flexível e desenvencilhada, o que significa estar disponível para acumular funções díspares e que exijam competências distintas - que podem, ou não, ter a ver com a sua área de formação e especialização (e.g. o produtor executivo também programa, faz a gestão de bases de dados e de cópias, acolhe convidados, apresenta filmes; o académico programa, edita publicações, acolhe convidados, apresenta filmes, realiza entrevistas, integra a equipa de produção; a direção programa, gere pessoas e conteúdos, acolhe convidados, etc.).
Vínculos precários e pluriatividade
A organização do trabalho nos festivais de cinema assenta em formas atípicas de emprego e de subemprego. Os vínculos laborais são precários e os trabalhadores permanentes e a tempo inteiro uma minoria. O trabalho é predominantemente sazonal e/ou a tempo parcial, sendo comum os profissionais que trabalham para os festivais em regime parcial acumularem trabalhos para entidades diferentes. A sazonalidade e irregularidade inerentes ao trabalho na área da produção do cinema e audiovisual em Portugal foram evidenciadas por Gomes e Martinho (2009) e os eventos cinematográficos prolongam essa lógica. No caso dos festivais de cinema, e para os profissionais mais cobiçados, é possível, por exemplo, trabalhar em mais do que um festival, fazendo-o sequencialmente - algo permitido pelo calendário espaçado dos festivais. O grosso dos trabalhadores não permanentes tem uma segunda e terceira ocupações, que pode(m) nada ter a ver com as tarefas que desempenham no festival. A pluriatividade é o expediente utilizado para reunir rendimentos que permitam fazer face às necessidades financeiras quotidianas, combater a vulnerabilidade económica e a desproteção social.
Elevado turnover
A precarização dos vínculos laborais significa que, por um lado, a continuidade dos postos de trabalho é sempre condicional, e, por outro, que, na ausência de uma gratificação compatível com o trabalho desempenhado, o compromisso dos trabalhadores com as entidades tende a ser menor. Logo, é frequente os profissionais abandonarem os projetos por considerarem que as suas expectativas (de remuneração, de crescimento profissional, de estatuto, etc.) não serão atingidas. Por sua vez, os profissionais mais experientes e qualificados, uma vez acumulada experiência, tendem a aceitar trabalhos mais bem pagos. Por isso, a elevada rotatividade dos profissionais é um problema frequente com que têm de lidar os festivais, em particular aqueles com menores orçamentos disponíveis (Rüling & Strandgaard Pedersen, 2010). O avultado turnover é um obstáculo a uma visão mais sustentável das organizações dos festivais de cinema, pelo que significa em termos de desperdício na formação de profissionais experientes (Fischer, 2013).
Networking e autopromoção
Os festivais proporcionam encontros entre públicos cinéfilos, cineastas e outros profissionais da indústria do cinema, agentes de vendas, produtores e distribuidores, jornalistas, patrocinadores e parceiros, representantes do poder local, etc., cada qual movido por interesses específicos (Harbord, 2002; Rhyne, 2009). Para as pessoas que trabalham nestas organizações, uma parte significativa do tempo de trabalho (e do tempo de lazer) é despendido a expandir redes interpessoais. Nos estudos das indústrias culturais, o conceito de rede aparece ligado à relação que ali se estabelece entre economia e a atividade social. Blair (2001, 2009), por exemplo, que estudou o mercado laboral da indústria cinematográfica inglesa, concluiu que o networking é central neste meio; e que é “ativo”, já que os diferentes atores o fazem conscientemente e de forma instrumental. A fragilidade das condições de trabalho no mercado cinematográfico português que, além do mais, é exíguo (Gomes & Martinho, 2009), promove a competição entre pares, pelo que estão criadas as condições para a glorificação da autonomia dos trabalhadores, das suas competências empreendedoras e de autopromoção (Banks, 2007). O networking é uma dimensão essencial dos festivais de cinema, e uma parte importante das atividades planeadas para estes eventos (os happy hours, as festas) são pensadas com esse fim. Quem os frequenta já tem essa expectativa, o que se pôde comprovar no nosso trabalho de campo e prática. O mesmo se aplica ao voluntariado. É muito evidente, sobretudo da parte de voluntários jovens, a ambição de encontrar nos festivais uma porta de entrada para o mercado de trabalho e a ativação de uma motivação instrumental para o exercício do voluntariado - o que já foi discutido em estudos sobre o fenómeno, como o realizado por Rego et al. (2017).
Gratificações simbólicas
As condições gerais de trabalho nos festivais são em tudo semelhantes às identificadas para as indústrias culturais e criativas, em geral, e para a indústria cinematográfica em particular. Prevalecem os vínculos laborais precários, as baixas remunerações e o trabalho gratuito, a sazonalidade e o trabalho a tempo parcial, a insegurança, as baixas perspetivas de progressão na carreira e a falta de proteção social. Na nossa pesquisa, verificou-se haver algum descontentamento, por parte dos elementos das organizações (da direção aos trabalhadores de base, remunerados e não remunerados), pelo facto de não ser possível garantir uma retribuição material correspondente às qualificações, responsabilidades e tempo despendido. Porém, detetou-se também uma tendência para se discursar sobre essas dificuldades como algo natural ou inevitável, porque imprescindível para a realização dos festivais.
Outras formas de gratificação foram sendo elaboradas, tanto nos discursos de trabalhadores assalariados como de voluntários, como motivações para contribuir para estas estruturas: i) a acumulação de know-how sobre áreas em que estudam ou trabalham (cinema, gestão, organização de eventos) e que sentem poder, de futuro, vir a capitalizar (acumulação de capital cultural); ii) o estabelecimento de uma rede de contactos profissionais que possam proporcionar oportunidades de trabalho no futuro (acumulação de capital social); iii) a possibilidade de contribuir para um setor de atividade que consideram apaixonante e para o qual sentem uma vocação especial (a “paixão” como forma de retribuição simbólica); iv) a eventualidade de privarem com artistas e profissionais que admiram, e a recompensa pessoal que é participar no happening cultural e social, no acontecimento raro, efémero e vibrante que pode ser um festival de cinema (o glamour e a atratividade do meio); e v) a possibilidade de integrarem a festa, de assistirem a filmes “gratuitamente” (com passes “oferecidos”) e de frequentarem zonas de acesso restrito (o sentimento - ou a ilusão - de pertença ao meio).
Conclusão
O lugar de destaque que os festivais de cinema ocupam na (re)organização da cinematografia mundial é indiscutível. No entanto, como fica evidente nos festivais analisados, eles podem ser estruturas frágeis e subfinanciadas, forçadas a lidar com a sua própria contingência e com novas exigências. A precariedade e informalidade das situações de emprego aí detetadas é indissociável da dificuldade em obter financiamento num contexto em que proliferam eventos cinematográficos e em que formas de organização modeladas pela racionalidade empresarial ganham terreno. Os festivais de cinema são pressionados a não parar de crescer e inovar: exibir mais filmes, captar mais públicos, impactar a economia local, investir na internacionalização, cativar os mercados dos filmes, identificar e conquistar novos mercados. O conhecimento sobre os efeitos destas modalidades organizativas, orientadas para o mercado mas exigidas a entidades que se inscrevem no Terceiro Sector, é ainda diminuto.
Nos festivais estudados foi possível identificar afinidades com o que a literatura tem vindo a destacar para o trabalho realizado na esfera cultural, nomeadamente nas indústrias culturais e criativas, no que toca à precariedade e informalidade das relações de trabalho, mas também à reprodução de desigualdades sociais. No entanto, apesar dos desafios a que estão sujeitas estas estruturas - que têm como efeito óbvio fazer aumentar, de forma exponencial, os custos indispensáveis para a sua manutenção - o escrutínio em torno das soluções encontradas para lhes fazer face é lacunar. Como alertam Rego et al. (2017, p. 93), o que subscrevemos, “importará manter uma vigilância crítica sobre o eventual papel de substituição do trabalhador remunerado pelo voluntário”, sempre que os voluntários sejam reconhecidos como fundamentais para viabilizar organizações e torna-las sustentáveis.
Para finalizar, sublinha-se que os resultados apresentados neste artigo são produto de etapas de pesquisa distintas, faseadas, circunscritas a casos específicos e a períodos temporais particulares. Portanto, a sua análise não pode ser extrapolada para lá desses casos e dessas temporalidades, em especial tratando-se de um objeto de estudo tão volátil. Por outro lado, o artigo não pretende ultrapassar questionamentos que só seriam resolvidos com um estudo extensivo das formas de organizar o trabalho nos festivais, das condições laborais, vínculos e perfis profissionais. O mesmo poderá ser dito em relação ao voluntariado.