SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.3 número5Pela fresta (1998): o papel do espaço e da memória no processo de criação da obra de Shirley Paes Leme a partir de seus cadernos de anotaçõesEnquadramento: Observar índice de autoresíndice de assuntosPesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

Artigo

Indicadores

Links relacionados

  • Não possue artigos similaresSimilares em SciELO

Compartilhar


Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.3 no.5 Lisboa jun. 2012

 

INTENTO

Seu Sami (2007): aspectos do processo de criação da obra de Hilal Sami Hilal

'Seu sami' (2007): Some views on the creative process of Hilal Sami Hilal

 

Aparecido Jose Cirilo*

*Brasil, artista visual e professor na Universidade Federal do Espírito Santo. Doutorado em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Mestrado em Educação pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Graduação em Artes pela Universidade Federal de Uberlândia. É editor da Revista Farol (issn 1517-7858).

Endereço para correspondência

 

 

RESUMO
Cadernos e suas anotações de artistas são loci da investigação do projeto poético da obra e permitem evidenciar a microfísica das relações da obra e do espaço. Este texto centra-se no tempo da gênese de um site-specific, buscando as marcas do processo percorrido pela mente criadora, desde a percepção da imagem geradora até a sua efetivação no espaço do Museu.

Palavras-chave: Arte contemporânea, site-specific art, história e teoria da arte

 

 

ABSTRACT
Seu Sami (2007) is studied from the idea of inseparability between space and form inherent to site specific art. Studying the drafts made by Hilal to masterpiece "Seu Sami" (2007) and its verbal and visual notes we will find evidences of this microphysics between space and form in this kind of artwork.

Keywords: Creative process, site-specific art, Brazilian art

 

 

Introdução

Evidencia-se aqui como se configura a indissociabilidade forma e espaço no projeto poético de um site-specific, por meio da investigação critico-interpretativa de arquivos e documentos de processo de criação da obra Seu Sami (2007) que, apesar de ser um site specific, foi montada em outras cidades. Parte-se do princípio de que arquivos da gênese da obra (Salles, 1998) revelam as relações internas e as pequenas ordens, micro-hierarquias e fraturas que se estabelecem nos cadernos do artista para materializar o projeto da obra, a materialidade e a topografia do espaço.

Esta reflexão parte da obra de Hilal Sami Hilal. Hilal nasceu e trabalha em Vitória (ES). Estudou no Japão práticas milenares do papel artesanal. O artista transforma desenhos em rendilhados, bordados, arabescos e rocailles em elementos textuais: letras que se materializam em pasta de papel de algodão. Suas obras reafirmam o domínio sobre a matéria e a tecnologia, são um jogo matérico e cromático, universo de rugosidade gerando espaços vazios e que revelam uma formação cultural híbrida.

Assim, a partir da gênese de Seu Sami – e de aspectos de suas montagens – busca-se evidenciar como tendências e intencionalidades do projeto poético são afetadas na medida em que deixa de ser um site-specific e torna-se uma instalação comum (site). Analisam-se construções formais e o efeito de sentido da obra, principalmente seu diálogo com o espaço e sua tendência para o vazio e para a ausência, os quais são afetados após seu deslocamento do espaço gerador.

 

1. Seu Sami: o vazio e a incerteza na ausência

Seu Sami (1100m²) ocupou o galpão principal do Museu Vale, em Vitória, ES, em 2007. Revela uma tendência do projeto poético de Hilal Sami Hilal: a impregnação de memórias expressas em quase-grafias orientais em diálogo com o espaço.

A obra resgata a história artística e pessoal de Hilal que observou que em sua trajetória existiam índices da ausência do pai, tema da exposição. Seu Sami (Figura 1) é autobiográfica e reopera a morte, que lhe imprimiu o vazio (conceito primeiro no projeto poético dessa obra). O site-specific "Seu Sami" se divide em duas áreas chamadas, pelo artista, de "salas": Sala do Amor e Sala da Dor, separadas por uma zona de escuridão, aparente vazio existencial. Partes opostas das paredes foram revestidas por malhas de metal e papel artesanal, penduradas, gestos caligráficos materializados em pasta de papel; essas estruturas descem e tangenciam o chão, quase flutuam. As duas paredes do fundo foram revestidas de espelhos, planos reflexivos opostos. Como suaves brisas, as malhas de papel tocam a face dos espelhos nas respectivas paredes ao fundo; duplicam-se em um espaço material e outro virtual. Confronto e encontro dos extremos: espelhos reproduzem e replicam, criam uma ilusória profundidade, infinita e dual. Alternância de amores e dores. Auto-reflexo de aparente materialidade; presença de imagem, ausência de matéria. Percepção e ilusão fundidas. O sentido da visão comprometendo a percepção, criando ilusões e fantasias, evocando a memória. Espaços construídos e repetidos.

 

 

A instalação revela memórias e paralelos entre presença e ausência, luz e sombra, vazios e materialidade, caracterizando-se nos rendilhados de papel elaborado pelo movimento do corpo, grafias da exclusão, da ausência (outro conceito fundamental para a obra). Peso e leveza. Aparência e fato. Verticalidade e horizontalidade. Ser e parecer. Presença e ausência. Dualidades taoístas propostas. Conceitos constituintes. Fronteiriços.

 

2. Considerações sobre o espaço como estratégia de emolduração e construção do efeito de sentido da obra Seu Sami

Hilal registrou suas escolhas em uma série de cadernos e folhas avulsas, experimentos e maquetes; podemos afirmar que Hilal dialogou com o espaço do Museu. Ao pesquisar os arquivos disponibilizados, notamos que a preocupação com o local onde a obra existirá. Podemos observar que ele testa possibilidades do espaço; encorpora a arquitetura. O ambiente do museu passa a fazer parte da obra. Em muitos estudos, notamos a preocupação com a interação ao ambiente; isso fica evidente quando nos deparamos com imagens nas quais Hilal representa o teto do museu com todas as suas tramas, como também o piso do galpão em perspectiva. Ele testa o espaço em sua dualidade existencial.

2.1 dualidade edificante: opostos complementares

Presença e ausência constroem a forma no trabalho e estruturam um efeito de sentido na mente do público: o vazio e silêncio materializam a insustentável leveza da matéria da obra. Opostos complementares. Taoísmo revelado da formação monástica do artista. Luz e escuridão. Presença e ausência. Cheio e vazio. Vida e morte. Ativo e contemplativo. Amor e dor. A dualidade se materializa na forma e no espaço. Efeito de sentido garantido pelo projeto luminotécnico. A iluminação associada às formas e ao espaço, reforça a intencionalidade do projeto poético do artista: velar a imagem percebida. Como um pintor romântico, Hilal parece colocar uma veladura que reforça o efeito de sentido da reflexão e do silêncio monásticos. As duas áreas de luz intercaladas por uma área sombria. Ausência de luz. Clareza e obscuridade.

Além de testar os elementos constituintes do espaço dual, Hilal incorpora elementos que reforçam a idéia, dentre eles o espelho (Figura 2).

 

 

Nesses documentos verificamos como ele concebe campos de luz e escuridão, intercaladas pela ausência. As imagens (estruturas em papel) e a penumbra (vazio do espaço), tomadas pelos espelhos, vão criando molduras, limites imateriais, sensações e bordas. O vazio bachelariano se instaura. Pura percepção. Ação fenomenológica dos sujeitos. Percebe-se, ainda presente nos documentos de processo referências humanas que permitem dimensionar a obra já em rascunho, escalas numéricas, cálculos e características do local. Pode-se afirmar que o espaço arquitetônico do Museu Vale é agente ativo no processo de criação.

Quando Hilal chega mais próximo do seu projeto final, ele constroi fisicamente uma miniatura do espaço e instala o projeto da obra nessa maquete para visualizar o que é efetivamente a obra no espaço. A maquete materializa algumas idéias desenvolvidas nos desenhos e esboços: as linhas estruturais do prédio, o piso quadriculado e a malha de madeiras do teto, são chamadas para mediar a definição das formas no espaço. O pé direito do galpão é a referência para a dimensão das lâminas das paredes laterais (520cm x 950cm cada). As lâminas tangenciam o chão, tocam os espelhos, demarcam a área de luz na obra. Evidencia-se a singularidade da obra em construção, o que remete à idéia de que o site-specif art é singular e autêntico.

2.2 de site specific a site: a relocação e a desconstrução do sentido da obra

Configurada a relação do artista com o espaço, pode-se afirmar que Seu Sami é um site-specific assimilativo (Kown, 2004) e, como tal, interdepende do local e resignifica-o de modo harmonioso e coeso. Fica evidenciada uma indissociabilidade entre os elementos materiais, estruturais e simbólicos que a constituem. Seu Sami é uma experiência sensória no aqui e no agora. Intencionalidade revelada: compartilhar a imensidão da vazio e a plenitude da ausência.

Mas a relocação de Seu Sami altera seu efeito de sentido: retirada do Museu Vale a obra é destruída, embora sua forma física permanecesse. Mas a obra é mais que a matéria física de sua construção. E o deslocamento de um site specific do seu local específico "destroi" a obra. Relocar Seu Sami para outros locais a esvazia de seu significado constituinte; o processo de re-instalação da obra opera uma espécie de mumificação para a eternalização. A passagem do provisório e do instável para o perene e fixo.

Mas, é no conjunto da relação simbólica e sensível que se encontram alguns dos elementos que sofrem um esvaziamento nas outras montagens. São novas heterotopias que afetam o efeito de sentido da obra. Esvaziamento fenomenológico de sentidos e conceitos. Com a remoção, a experiência sensorial da obra sofre alterações semânticas que a desconstroem: a dualidade monástica que gerou o efeito de sentido, cede lugar ao requinte e ao luxo dos pisos brilhantes e tecnológicos (Figura 3); os espaços novos deixam de ser matéria da obra e se torna uma estratégia de emolduramento.

 

 

Não há mais tensão entre o vertical e o horizontal. Observa-se na imagem que as grandes lâminas laterais não mais tangenciam o solo na rigidez monástica do ângulo reto, não mais demarcam os planos; elas deitam-se no piso (Figura 4). Não há mais tensão entre o vertical e o horizontal, a dualidade edificante se desfaz. Cede lugar ao aconchego das folhas que se repousam sobre o piso, como que cansadas da tensão que as concebeu. Infinito o plano que se constrói. Suavidade da transição. Outra obra.

 

 

 

Conclusão

A relação da obra com a estrutura arquitetônica do prédio original é um dos elementos topológicos que não encontraram equidade semântica nos outros locais de montagem da obra, contribuindo para alterações no efeito de sentido da obra nessas novas localidades. A dualidade tensionada que era estruturante se desconstroi. A instalação se desfaz. Estabelece-se agora como obras isoladas (Figura 3 e Figura 4). Não há mais a obra original. Muito da relação estética do objeto permaneceu, mas essa nova obra se afasta da interação fenomenológica prevista no projeto poético inicial, mas não a recoloca numa relação social ou mesmo discursiva que definem os trabalhos para um local específico. Como tal, essas montagens de Seu Sami convidam o público para vivenciar a genialidade de um artista, mas afasta-se do compartilhamento de memórias que se faziam matéria em seu site original.

 

Referências

Salles, Cecília Almeida. Gesto Inacabado. São Paulo: Annablume, 1998.         [ Links ]

 

 

Artigo completo submetido em 20 de janeiro e aprovado em 8 de fevereiro de 2012.

 

Endereço para correspondência

Correio eletrónico: josecirillo@pq.cnpq.br (José Cirilo).

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons