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Revista :Estúdio
versão impressa ISSN 1647-6158
Estúdio vol.3 no.5 Lisboa jun. 2012
PALAVRA
Arte e conhecimento: alquimia e o novo paradigma da ciência
Art and knowledge: alchemy and the new paradigm of science
Juliana Alvarenga*
*Brasil, artista visual. Graduada em Artes Plásticas, pela Escola Guignard/UEMG, Belo Horizonte, mestranda em Criacão Artística Contemporânea na Universidade de Aveiro / UA, Portugal.
RESUMO
Apresentação do conceito de transformação da matéria nos trabalhos dos artistas Damien Hirst e Joseph Beuys como fio condutor para pensar o conhecimento e o novo paradigma da ciência. As obras citadas refletem possibilidades de curas relacionadas com a alquimia e apontam a poiesis como procedimento metafórico de investigação do que afeta o homem quando se intervém na sua dimensão orgânica.
Palavras chave: arte, alquimia, conhecimento, matéria, novo paradigma da ciência.
ABSTRACT
Presentation of the concept of transformation of material in the work of the artists Damien Hirst and Joseph Beuys, taken as a guide for thinking about knowledge and the new paradigm of and science. Some of their works reflect healing possibilities related with alchemy. They point poiesis as a metaphorical procedure of investigation that affects man when he intervenes in its organic dimension.
Keywords: art, alchemy, knowledge, material, new paradigm of science.
Introdução
A alquimia tem como objetivo a transformação da matéria, entendida aqui como os elementos encontrados na natureza e também os seres humanos, na qual se unem natureza e ser humano, condição prévia para aceder-se ao conhecimento.
A partir da ciência moderna, o acesso ao conhecimento é estruturado através da separação do sujeito do objeto de estudo sem considerar a subjetividade como parte fundamental.
A arte se abre para diversidade e complexidade do conhecimento. O artista inglês Damien Hirst nascido em 1965 e o artista alemão Joseph Beuys (1921-1986) se referem ao conhecimento oriundo da ciência moderna, de forma a tematizar a relação do homem com os saberes da natureza na construção de suas poéticas visuais.
As analogias e metáforas usadas por Damien Hirst e por Beuys em algumas de suas obras dizem sobre processos naturais e/ou artificiais que interferem na vida. Eles apresentam idéias sobre o homem apartado da natureza, sobre crenças e mitos, que podem ser traduzidas na transformação da matéria em seu sentido alquímico.
1. Transformação da matéria na alquimia
Alquimia é conhecida como arte alquimica ou como ciência hermética, do deus grego Hermes Trismegistro, equivalente ao deus egípcio Thot, o suposto inventor dos hieróglifos – forma de expressão que une imagem e palavra.
A arte alquímica tem por objetivo principal a transformação da matéria, chamada de a Grande Obra ou Pedra Filosofal, através de procedimentos denominados operações. Ao conduzir as operações alquímicas, o operador possibilita esta transformação ao transformar-se a si próprio concomitantemente, acessando o conhecimento adormecido em ambos, resgatando suas potencialidades inertes. Paracelso, alquimista do seculo XVI, que denominava macrocosmos o universo natural e microcosmos o universo do filosofo alquimista, ressaltava que esses dois universos são reflexos um do outro.
Outro conceito importante da ciência hermética é recomposição: partir do material em putrefação, ou impuro, para buscar o mais puro, reconstruindo assim o uno primordial, em um sentido oposto ao da natureza que parte do uno para a decomposição. A putrefação, chamada de fase nigredo, é um objetivo primeiro dos procedimentos alquímicos, pois sinaliza que a matéria foi despertada e entrou em processo de transformação. O apodrecimento da matéria é comemorado pelos operadores porque iniciou a sequencia de transformação, seguida da fase albedo onde a matéria é transmutada em prata.
Jacques Van Lennep, considerado o maior pesquisador da ciência hermética como produção de obras de artes, relata que este é ainda um campo recente e pouco estudado. Van Lennep fala das possibilidades de se fazer uma leitura hermética de certos quadros de alguns pintores como Durer, Rafael, Bosch e Brueghel (Van Lennep, apud Carvalho, 2005). Podem ser também possíveis leituras herméticas de algumas obras de Damien Hirst e Beuys.
2. Joseph Beuys e Damien Hirst sob uma perspectiva alquímica
Joseph Beuys e Damien Hirst têm em comum declarações sobre doença, cura, medicina, ciência, remédio e arte, e é sobre essa perspectiva que procuramos aqui encontrar semelhanças possíveis entre alguns de seus trabalhos e determinados preceitos que regem a alquimia.
Considerando que a transformação da matéria é a grande orientação da alquimia, Beuys se diz regido por essa arte e diz: "interessam-me as transformações" (Girão, 2001, p.18). Em seu trabalho Cadeira com gordura (1963), o artista expõe a gordura em todos os seus estados de transformação (Figura 1).
A gordura tem um ponto de fusão baixo e por isso facilmente tem seu estado alterado; derrete e endurece à mínima alteração de temperatura. Segundo o artista, em suas obras "várias operações se dão na maior parte delas: reações químicas, fermentações, mudanca de cor, degradação, ressecamento. Tudo está em estado de mudança" (Beuys, apud Borer, 2001: 26).
Damien Hirst também trata da transformação da matéria, das substancias medicamentosas vinculadas ao organismo humano, em uma denúncia da ausência do sentido alquímico de cura. No trabalho The Existence of Nothing Causes Nothing (1999), Damien Hirst apresenta um armário de medicamentos com embalagens vazias, onde o homem pode ser tomado como resultante de efeitos medicamentosos (Figura 2).
Damien Hirst faz uma crítica à interferência supressora da indústria farmacêutica que trata a cura medicinal como um processo restaurador. De uma forma quase hermética, pode-se pensar que o artista reclama essa união do homem com a natureza de que trata a alquimia ao sugerir uma falsidade curativa dos medicamentos industrializados como síntese do homem. Damien Hirst fala como a medicina tradicional impede a manifestação humana com sua tentativa de exterminar o desagradável e desenvolve sua crítica como um alquimista que sabe da necessidade da fase nigredo para que existam as transformações humanas curativas. Segundo ele,
If you're happy, you paint a yellow-and-red painting; If you depressed you paint a sombre brown and purple painting; or you're a smart you give up painting and shared your good feelings with your friends, or when you're down, cheer up and don't drag people" (Hirst, 2005: 246).
Damien Hirst em seu trabalho A impossibilidade física da morte na mente de alguém que vive (1991), expõe um tubarão morto em um tanque com formol (Figura 3). O artista demonstra assim a interferência humana em processos naturais como a morte e o deterioramento corporal, de modo a querer controlá-los.
O uso da química para evitar a decomposição orgânica do animal mostra a forma ilusória com que a ciência mantém a aparência de vida em um corpo morto. O fato do corpo do animal ser impedido de mudar de estado decompondo-se organicamente é a crítica mais pertinente do ponto de vista alquímico, pois não permitir a transformação da matéria é não realizar a obra alquímica.
Na obra Coyote, I love America, America likes me (1974), Joseph Beuys tranca-se por 3 dias com um coiote em uma galeria de Nova York e utiliza o feltro e a gordura como elementos alquímicos de uma mitologia individual, transitando entre o simbólico, o autoterapêutico e o autobiográfico (Figura 4).
Com a intenção de fazer conexão com o conhecimento ancestral xamânico, Beuys trata de comunicação e reconciliação com a natureza como fundamento para cura individual e social. A forma como o artista se refere à cura tem o mesmo sentido da alquimia, ele acreditava que a autotransformação gerava também a transformação do indivíduo e do seu entorno social na medida em que instigava outras transformações em outras matérias e também em outras pessoas. O xamanismo para Beuys assemelha-se a uma espécie de alquimia ritualística onde as práticas laboratoriais são substituídas por rituais com o mesmo intuito de se reintegrar à natureza para restabelecimento de cura. Joseph Beuys se declara um estudioso da alquimia e encontramos em suas palavras uma das leis dessa ciência hermética; "[…] aprender das próprias substâncias as potencialidades que elas encerram e, por conseguinte, as nossas." (Beuys, citado por Borer, 2001, p.15).
A pintura de Damien Hirst intitulada Naja naja (2000) é parte de uma série de trabalhos que o artista afirma terem propriedades farmacológicas específicas (Figura 5).
Naja naja é um antídoto, fabricado a partir do veneno da cobra naja que gera a cura, o que é em si um preceito alquímico: buscar no mais impuro o que vai se tornar o mais puro. Arthur Danto relata não perceber na pintura Naja naja relação entre a forma química do veneno e o trabalho de Damien Hirst, como acha que o artista não tinha a consciência do que é esse medicamento. Mas o filosofo considera de forma análoga que, nas palavras do autor, "[…] a idéia da pintura ser uma forma de farmacologia faz dela a possibilidade literal do artista ser um farmacêutico" (Danto, 2000, p38). Do ponto de vista alquímico, onde a cura é um restabelecimento de uma condição anterior à deterioração natural, a beleza pode ser considerada fator reconstituinte. Segundo Danto, "Existe […] uma verdade que vale a pena considerar, que é que ambos os trabalhos são extremamente belos, e enquanto eu não sei como conectar a beleza com (o que suponho ser) o aborto, me parece que uma possibilidade é que a beleza cura" (Danto, 2000, p38.). Não se trata aqui de averiguar a verdade, e sim de constatar a verossimilhança, uma semelhança capaz de gerar outras possíveis narrativas que englobem a alquimia e a arte como matéria de transformação.
3. Conhecimento e intuição
Segundo Edgard Morin (2007), hoje a ciência deveria reatar com a filosofia e ter a reflexão sobre o conhecimento adquirido, consistindo este fato em uma impossibilidade para o autor, por ser o método cientifico baseado na disjunção de sujeito e objeto. Tudo o que se diz sobre um objeto parte do sujeito, e que, portanto, não haveria outra forma de abordagem do objeto que não a subjetiva.
A passagem da alquimia para a química moderna se dá quando as preocupações humanas deixam de ser entender o que é o mundo para tornar-se como ele funciona. O pensamento racionalista dos séculos XVI e XVII caracteriza a revolução industrial e a passagem do pensamento holístico e sistêmico para o mecanicismo especialista. Pode-se dizer que a manipulação é uma das formas na qual mais se manifesta essa mudança epistemológica. Ao contrário do sentido de manipulação alquímica, onde a matéria é a natureza e o homem, na ciência moderna a matéria a ser manipulada é o método que através da técnica quer manipular a natureza. O método experimental característico da ciência moderna é, nas palavras de Edgar Morin, "um método de manipulação que necessita cada vez mais de técnicas, que permitem cada vez mais manipulações" (Morin, 2007, p.19).
A alquimia é um conhecimento onde sujeito e objeto estão fundidos. A arte pode também ser entendida como uma junção de sujeito e objeto quando a transformação da matéria (orgânica e/ou pensamento) em obra de arte reflete também a transformação do artista através do processo de produção artística. A obra de arte reflete o conhecimento acessado pelo artista ao produzi-la.
No processo de conhecimento das artes e da alquimia, as metáforas e as analogias são amplamente usadas englobando saberes de outras áreas. Através de analogias, procedimento de transportar relações de um campo do conhecimento para outro, podemos pensar o ato de refletir como método artístico e alquímico. Esses campos de conhecimento diferentes são regidos pelos mesmos preceitos holísticos de integração do homem ao cosmos e por isso guardariam as mesmas relações. Nesse sentido, pode ser que a arte e alquimia sejam parte da inovação científica.
Conclusão
Tanto a prática artística quanto a prática alquímica estão em acordo com o novo paradigma da ciência por ser uma das suas características fundamentais a junção do sujeito com o objeto. Nesta fusão sujeito-objeto, o corpo surge como o espaço onde o conhecimento se dá, por onde passarão os impulsos instintivos e intuitivos da criatividade; segundo Berger: "O saber não é mais suficiente como tal, ele é acompanhado de uma intuição 'orgânica' " (Berger, 2003: 43). O corpo como organismo é matéria de transformação na arte e na alquimia, afetado pelo conhecimento refletido na obra.
Através de um dos fundamentos da alquimia no qual o microcosmos do universo humano está refletido no macrocosmos do universo, e com a consideração de que a natureza é determinante dos seus processos mais fundamentais, percebemos como as transformações humanas se dão a partir da própria natureza. Aqui propomos uma alternativa de uma noção de natureza na qual se imprime a relação do corpo humano com a vida.
A diferença entre a alquimia e a química que faz Fernando Pessoa (1986) é análoga à diferenciação entre um objeto de arte e o objeto comum que faz Arthur Danto; tendo em vista que são idênticos, apenas a intenção poderia separá-los. Seria a intenção a diferenciação de todas as coisas? Possivelmente a arte e a alquimia pretendem ter grandes narrativas sobre o tema.
Referências
Berger, René (2003) Tornar-se os primitivos do futuro? In: Domingues, Diana (org.), Arte e vida no século XXl: tecnologia, ciência e criatividade. São Paulo: UNESP. [ Links ]
Borer, Alain (2001) Joseph Beuys. São Paulo: Cosac & Naify Edições. [ Links ]
Carvalho, J. J. (1995) Mutus Liber. O Livro Mudo da Alquimia. São Paulo: Attar Editorial. [ Links ]
Danto, Arthur C. (2000) Death in the Gallery. Nation. New York: November 20. [ Links ]
Girão, João A. A. (2001) Anatomia de um desenho, Revista Margem. Guimarães: Ed. Escola Superior Artística do Porto – Extensão Guimarães. [ Links ]
Hirst, Damien (2005) I want to spend the rest of my life everywhere, with everyone, one to one, always, forever, now. Londres: Ed. Other criteria. [ Links ]
Morin, Edgard (2007) Ciência com consciência. Rio de Janeiro: Ed. Bertrand Brasil LTDA. [ Links ]
Paracelso (1973) A chave da alquimia. São Paulo: Ed. Três. [ Links ]
Pessoa, Fernando (1986) A procura da verdade oculta. Lisboa: Ed. Europa América. [ Links ]
Artigo completo submetido em 20 de janeiro e aprovado em 8 de fevereiro de 2012.
Correio eletrónico: jualvarengaf@gmail.com (Juliana Alvarenga).