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Revista :Estúdio
versão impressa ISSN 1647-6158
Estúdio vol.3 no.6 Lisboa dez. 2012
ÚNICOS
UNIQUE
Da terra e do mar, para outro lugar. Da terra e do mar, eis o lugar: 8º53’39,3378’’ W – 37º10’59,678’’ N
From land and sea, towards some other place: From land and sea, the place is: 8º53’39,3378’’ W – 37º10’59,678’’ N
Isabel Maria Ventura Tavares*
*Portugal, pintora. Professora, graduação, mestrado em Pintura, Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa.
RESUMO:
Do mestre Lagoa Henriques, Paula Rito herdou o gosto pelo diário gráfico. Das muitas dezenas (centenas?) de cadernos que guarda, escolhemos os que repetem ano após ano, um mesmo lugar. Cada um destes cadernos partilha um olhar porque o olhar aprende e o corpo aprende. A capa pode vir depois, olhada à distância, mas reveste-os ainda, de memória e de matéria e habita-os também.
Palavras chave: diário gráfico, desenho, pintura, work-in-progress.
ABSTRACT:
Paula Rito inherited a taste for the sketchbook from Lagoa Henriques. From the many dozens (hundreds?) of sketchbooks she keeps, we chose the ones that repeat the same kind of place, year after year. Each one of these sketchbooks shares a vision because the body learns and so does the vision. The cover may come later, seen from a distance, enveloped by the memory and the matter that also inhabit these sketchbooks.
Keywords: sketchbook, drawing, painting, work-in-progress.
Introdução
Paula Rito é licenciada em Pintura e mestre em Teorias de Arte pela FBAUL e mantém, paralelamente à docência, uma atividade artística regular. O diário gráfico que sempre a acompanha para onde quer que vá, faz jus ao pensamento de Apeles "nulla dies sine línea," descrito por Plínio, o Velho, na História Natural.
Será da terra, será da gente? De ambos certamente e da autora implicitamente. Ritualizado e háptico, o olhar é presente e o gesto predispõe-se sur le motif: são sobretudo paisagens, da terra e do mar, desenhadas num minuto breve porque está sol e é a hora do calor ou numa hora prolongada porque se está bem à sombra, em pleno verão. Há uma possibilidade para os cadernos, após a descoberta do lugar, há um quarto de século atrás, o de ganharem corpo, por partilharem o corpo do mundo.
Face a face, olhar sobre o olhar e recomeçar a representar, reiterando a natureza da representação d’après nature. É uma partida do desenho, para encontrar novas possibilidades para o desenho e para a pintura, um reconhecimento da representação como ritual propiciatório e matricial, partindo de anteriores modos de ver, para novos modos de fazer. Envolver-se e desviar-se pelo gesto treinado do exercício permanente, quotidiano, investindo no desenho como território privilegiado, onde pode exercitar até ao limite, todas as possibilidades de desdobramento do seu pensamento plástico. Os cadernos são já, os princípios geradores da obra, um corpo duplo que se quer afirmar como ponto de vista aberto ao mundo (Heidegger, 1991: 38).
A precisão diarista, dos cadernos deste lugar, não fixa o olhar nem o lugar mais recôndito do desenho que é o seu "não lugar". Feito na imediaticidade dos sentidos, continua a resistir à cor, em jogos de luz e sombra que acentuam o claro/escuro dos volumes, afirmando porventura que é uma espécie de afago dos sentidos entre o corpo que se vê e o corpo que pode ser visto; um corpo que espera, que busca, que procura encontrar, já não a descoberta do lugar, mas o lugar da descoberta.
1. A superfície da terra é uma paisagem com a face sempre mutante
O que é descoberto é somente um fundamento, um meio para tornar infinita a representação entre o excesso e a deficiência da diferença ao idêntico, onde a representação infinita não afirma a divergência nem o descentramento porque tem necessidade de um mundo convergente, de uma razão fundamento (Deleuze, 2000: 421). Na procura de uma identidade sempre assombrada e dominante, a autora questiona a paisagem e constrói por envolvimento, os registos singulares, motivados, como oscilações em relação a uma matéria sempre rebelde que torna possível o desdobramento da representação e desvela a condição do sujeito pensante com o mesmo princípio de identidade, para com o conceito geral.
A profunda fenda do Eu leva a autora a pensar a paisagem como modo, representando-a desigual e singular no momento, mas tornada idêntica e plural quando vista à distância. Como sujeito coimplicado, Paula Rito pensa a forma como desejo tangível de pensar-se e os cadernos do lugar adquirem um saber cumulativo da espera, de uma oportunidade para o encontro. O exercício permanente do desenho torna-se uma absorvente descoberta, razões de sentido e de esperança de um permanente poder ser; espera por natureza algo que transcenda a sua natureza, uma identidade sempre inacabada, em que o horizonte da satisfação não permanece uma fronteira fixa, mas algo para onde se viaja e que se afasta proporcionalmente, na medida em que o sujeito dele se aproxima, mas ainda assim, não deixa de o perseguir (Borges, 2011: 52).
A sua pintura é feita a partir de cadernos de desenho, diários gráficos, cadernos de viagem, territórios mínimos que funcionam como localizações. É aqui, na terra tão perto do denominado "O fim do mundo" que ano após ano, o regresso à pequena aldeia implantada num conjunto de cerros e envolta pelo cordão dunar lhe proporciona ir caminhando e desenhando, desde a aldeia até ao Pontal ou mais além, na orla das arribas, onde se distinguem os xistos predominantes e se avistam os cumes dos cerros ou os matagais e a mancha do pinhal velho que sempre a si chama, como chamados são os trilhos dos aromas e das marés ou o gosto por uma terra com sabor a mar (Figura 1, Figura 2, Figura 3, Figura 4).
Distintos e aproximados os muitos cadernos guardados, encerram lugares de um mesmo lugar, imagem de origem e camadas de um sujeito nunca satisfeito, a sua predisposição e temporalidade, o seu corpo que insiste em não lhe ser conforme, por excesso face ao mundo, na medida em que ao olhar-nos nos obriga a olhar verdadeiramente para o seu fundo, não para o rever, mas para o constituir (Didi-Huberman, 2011: 144).
Confidente, o diário gráfico é uma prática académica, um campo de experimentação, observação e verificação do olhar que nunca é neutro nem passivo (Merleau-Ponty, 2009: 56). Olhar para o fundo, para o lugar daquilo que nos olha e destacar a figura da superfície que a suporta e nos suporta é como se a nossa figura se identificasse com a imagem que reciprocamente nos é cúmplice e nos implica em exercícios de autorrepresentação, autobiografia e autorreferencialidade (Figuras 5, Figura 6).
Uma vez fixado o momento, começa a errância da representação, da projeção do próprio corpo no corpo do mundo (Merleau-Ponty, 2011: 48). A visão colide sempre com a experimentação táctil. O diário gráfico é já um suporte antes do suporte pictórico, uma presença constante do processo artístico que surge como emergência da projeção do desenho que antecede a obra.
Normalmente, Paula Rito usa a analogia do trabalho como se fosse um território ou mapa. Não encontramos uma sucessão de momentos que vão evoluindo em função uns dos outros, mas uma possibilidade de criar um terreno, onde se pode explorar determinadas matérias, num alargamento e aprofundamento do território sempre recuperável. O trabalho da autora não funciona por etapas, mas sim por séries. No seu percurso artístico, tem voltado aos mesmos temas vezes sem conta, é como voltar ao passado, mas já com história do futuro. Há a constituição de um mapa de interesses, de uma aprendizagem visual e corporal porque na pintura e no desenho, o olhar aprende e o corpo aprende; há uma adaptação do corpo e da visão que são modos de relacionamento com o mundo e que constituem um património que vai adquirindo que vai sendo recuperado, refeito e repensado.
O eu frontal parece não lhe ser conforme, assombrada com a ideia de materialidade, de um mundo concreto, em que o corpo se relaciona com o corpo do mundo, espesso e táctil. Na pintura e no desenho, fixado o lugar, escolhe os corpos e consegue destacar o objeto do fundo, mas o interesse reside na escolha que faz, que corpo destaca e como se constitui. O tema da paisagem possui para si, uma possibilidade constante de adequação, de corporização do seu objeto. Criar um objeto é dar um salto na linguagem, sendo esta limitada. No fundo, continua a tratar-se da mesma problemática de formação do objeto, visto este como acontecimento (Merleau-Ponty, 2012: 95).
Tomando a metáfora paisagística como meio operativo, a sua pintura é um exercício permanente sobre as condições de procedimento da própria pintura, sobre a ligação da imagem pictórica com o mundo visível e a fenomenologia da visão, mas também uma reflexão, sobre o corpo que pinta e sobre o corpo que vê.
A consciencialização da subjetividade nos processos de representação, a partir da relatividade da localização espacial, revela-nos a íntima ligação da autora, à prática do desenho como disciplina. O diário gráfico constitui-se como atividade de inscrição e exercício programático estrutural da prática artística com forte ligação ao gesto, mas uma atividade fisicamente investida, cuja natureza é rigorosamente conceptual. O processo cognitivo deriva de um jogo de sentido entre interior e exterior que pode ser reinventado linguisticamente e que se pode expandir permanentemente.
Os desenhos da paisagem nos diários gráficos guardam uma atenção ao vivido, à vivência percetiva, habitada e continuada; são tentativas de moldar a forma, por uma visão constituinte dos objetos, ligada à materialidade e são ainda, o modo como o corpo que é o nosso vê o corpo da pintura que está a ser visto. Na medida em que nos representamos no que está perante nós, cada paisagem transmutada pode ser um lugar de aprendizagem do olhar sobre o mundo e sobre as condições de procedimento da própria prática da pintura. A vivência da perceção é habitada por um corpo e por um mundo de espessura recíproca (Ineinander).
Reaprender a ver, recomeçar escavando, regressar à paisagem e estar atento à espessura que nos separa da obra, são os princípios geradores do desenho e da pintura de Paula Rito, uma forma de transformação que pode ser um lugar mítico, retornado, diário gráfico do lugar onde as coordenadas espaciais se fendem e se abrem diante de nós, acabando por se abrir em nós e assim, nos incorporam, por inteiro. É quando uma obra dá lugar a outras plurais que percebemos que as coisas visuais são sempre já lugares (Figura 7, Figura 8).
Referências
Borges, Anselmo (2011) Corpo e transcendência. Coimbra: Almedina. ISBN: 978-972-40-4650-1 Deleuze, [ Links ] Gilles (2000) Diferença e repetição. Lisboa: Relógio D’Água. ISBN: 972-708-595-4
Didi-Huberman, Georges (2011) O que nós vemos, O que nos olha. Porto: Dafne Editora. ISBN: 978-989-8217-12-7 [ Links ]
Heidegger, Martin (1991) A origem da obra de arte. Lisboa: Edições 70. ISBN: 972-44-0524-9 Merleau-Ponty, [ Links ] Maurice (2011) Le visible et l’invisible. Mesnil-sur-l’Estrée: Gallimard. ISBN: 978-2-07-028625-6
Merleau-Ponty, Maurice (2009) O olho e o espírito. [s.l.]: Vega. ISBN: 972-699-352-0 [ Links ]
Merleau-Ponty, Maurice (2012) Phénoménologie de la perception. Mesnil-sur-l’Estrée: Gallimard. ISBN: 978-2-07-029337-7
Artigo completo recebido a 8 de setembro e aprovado a 23 de setembro de 2012.
Correio eletrónico: isabelventurat@gmail.com (Isabel Ventura).