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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.4 no.7 Lisboa jun. 2013

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

Jorge Pinheiro, ou prolegómenos para uma re-escrita de uma partitura de Filipe Pires

Jorge Pinheiro, or the re-writing of a score from Filipe Pires

 

Margarida P. Prieto*

*Portugal, pintora. Frequenta o curso de doutoramento na Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa.

Endereço para correspondência

 

 

RESUMO
Este artigo trata a relação semiótica ente som e desenho, entre uma escrita para ser lida e uma escrita para ser vista. Anaalisa o exercício criatico que subjaz as possibilidades de uma transcrição dsinestésica de ordem ficcional.

Palavras-chave: desenhar, escrever, som musical, visão.

 

 

ABSTRACT
This paper is about the semiotic relation between sound and drawing, between a writing to be read and a writing to be seen. It also analyses the creativity underlying all possibilities of fictional synesthetic transcriptions.

Keywords: drawing, writing, musical sound, vision.

 

Introdução  

Jorge Pinheiro nasceu em Coímbra em 1931. É pintor e a sua formação académica começou na Faculdade de Belas-Artes do Porto. Foi Bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian estangiando na École des Hautes Études en Sciences Sociales (Paris). Leccionou na Faculdade de Belas-Artes de Lisboa até 1995. Expõe desde 1954 e o seu trabalho pode ser encontrado nas mais importantes colecções institucionais de Portugal. Este ensaio incide sobre Prolegómenos para uma re-escrita de uma partitura de Filipe Pires realizados na década de 60 e apresentados ao público na exposição I Would Prefer Not To, Plataforma Revólver, Lisboa (Figura 1).

 

 

1.  

Um dos problemas de expor uma obra é saber qual a forma adequada para a sua apresentação. Para algumas disciplinas das artes visuais como, por exemplo, a fotografia, a pintura e o desenho, existem soluções padrão que usualmente implicam uma parede de sustentação que facilita uma relação verticalizada, frente a frente e nivelada pela altura do olhar de um observador tipificado numa convenção (ou seja, o centro da obra é posicionado a 1.5 metros de altura em relação ao chão). Mas, para o artista no seu processo criativo, a exibição/apresentação da sua obra nem sempre é uma questão que se coloca à partida, ou que esteja presente no momento próprio da sua concepção. Justamente, algumas obras nascem dentro da condição de fragmento; são esboços de ordem experimental e/ou projectual sem a ambição do factum est que a exposição determina. No horizonte de expectativa do próprio artista/autor, estes registos são ensaios, hipóteses de trabalho (no futuro), apontamentos que iniciam qualquer coisa (são germinais) ou vão a caminho de alguma coisa (perseguem um astro), informados em ideias, em histórias, em factos, em interesses. Estas primeiras manifestações são o princípio de um modus operandi e o seu carácter é inconclusivo e afasta-se do factum est exigido na apresentação expositiva. Contudo, documentam um processo imprescindivel: a passagem do pensamento ao acto, da potência à concretude. É nesta passagem germinal que se pode pensar a obra Prolegómenos para uma re-escrita de uma partitura de Filipe Pires onde o pintor Jorge Pinheiro traduz para o desenho, simultaneamente, a audição da música Transfigurations e visualidade da partitura. "Traduz", na medida em relaciona regimes semióticos distintos a partir do desenho, no sentido da sua visualidade plástica e expressiva, e como escrita musical, que implica uma sonoridade e uma relação com a linguagem da música.  

A disciplina do desenho permite dois tipos de abordagem: uma, que se faz a partir da observação, que mima o real; e outra, que expõe um pensamento, que regista um processo mental, que projecta uma ideia, que arquiva um imaginário. Estes dois grandes campos resumem uma prática artística que se concretiza no gesto gráfico.  

Prolegómenos... situa-se no limiar que separa estes dois campos. Se, por um lado, se trata do registo ideias, por outro lado, sustenta-se na audição da obra musical que lhe dá título e na observação directa da sua partitura. São uma reelaboração de carácter sinestésico cujas formas gráficas são suscitadas, simultaneamente, com a análise empírica da partitura olhada como um desenho e também como uma escrita, revém de uma escuta e de uma inteligibilidade mas também de uma observação e de uma análise do visível. As sete páginas que resultam desta observação/audição são reveladoras deste processo, como um esforço de passagem, numa ficção de sinestesias visuais e auditivas.  

 

2.  

Jorge Pinheiro é pintor e desconhece o código da escrita musical, mas reconhece o desenho de uma partitura, e nele, a presença de um código e de uma linguagem. A legibilidade desta escrita permanece na opacidade porque o desenho, originado por ela, transparece e impõe-se. Nestas condições, a percepção da escrita musical e o seu reconhecimento como partitura é (apenas) de ordem esquemática e os contornos são delimitados, a priori, numa predifinição visual que assenta numa grelha de afinidades formais. O pintor escolhe a variedade do papel, diferentes dimensões e tipos para evocar a complexidade da composição (como escrita e, ainda, auditivamente). O papel milimétrico vem convocar um rigor implicado em qualquer processo de transcrição, um rigor matemático e geométrico (espacial) alimentado pela retícula minuciosa pré-impressa que sustenta cada traço e delimita cada mancha. Mas este rigor é ficcional. O que aqui se cria é uma caligrafia pessoal e pictórica, uma escrita como re-escrita, uma trans-escrita que se gera na interacção entre campos artísticos: a música e o seu registo que deriva entre linguagem e desenho onde as percepções sensitivas e cognitivas do pintor ora se distinguem ora se misturam.  

A linguagem do desenho é colocada ao serviço da percepção sonora. O som enforma cada traço, cada grelha, cada gráfico. Dá a ver um raciocínio matemático onde o pensamento se regula por números e proporções, ao mesmo tempo que se expressa por formas (pontos, linhas, texturas) e cores. Uma panóplia de esquemas mentais e visuais faz a composição destas páginas, para dar a ver o gesto de desenhar que cria e individua uma nova caligrafia informada pela música.  

Neste esquema de transposições, o registo do som é como um grito mudo que se dirige ao sistema perceptivo visual apelando, simultaneamente, ao ver e ao ler e, secretamente, ao ouvir. As sete páginas acumulam-se como desenhos avulsos. São resultados de audições repetidas que, de cada vez, originam grafismos outros, por acumulação. O silêncio deste desenhar está impregnado de som e tudo no seu processo é linguagem. O som musical e o seu registo gráfico são tomados como musa.  

O desígnio deste labor é a sua infinitude: são sete, mas poderiam ser inúmeras as páginas deste exercício. Transfigurations III, de onde parte este exercício, é o título da composição musical de Filipe Pires. A partitura é constituída por seis folhas cuja escrita esquemática é dirigida à leitura/interpretação do músico. Não se trata de uma partitura convencional, clássica, com pautas de cinco linhas, mas de uma actualização da escrita dentro do registo electro-acústico. A partir da sua observação/audição, Jorge Pinheiro faz uma partitura de sete páginas que se dirigem aos olhos, são pura visualidade: páginas soltas documentam esta nova escrita que nasce do exercício e do esforço de uma transcrição e que aguardam uma forma final de apresentação. São a escrita de um livro por vir.  

 

3.  

A reelaboração da escrita musical é um processo interno ao seu próprio desenvolvimento e actualização. Ao longo da sua história podem existem momentos absolutamente determinantes, nomeadamente na passagem da Ars Antiqua para a Ars Nova que se dá na Alta Idade Média. Em termos gráficos, as notações musicais tendem a criar paralelos sinestésicos com o desenho artístico e procuram os sinais da escrita linguística, quer para introduzir o texto ao longo das melodias, quer pela pontuação que adquire novas valências e significações, mantendo afinidades conceptuais e funcionais: ajuda ao ritmo, à expressão e cadência, informa onde são as paragens ou pausas, as durações e os pontos a enfatizar, etc.. De cada vez que novas sonoridades são introduzidas na música é re-elaborada a sua escrita num acrescímo de códigos. O trabalho de Jorge Pinheiro escapa a convenção destes códigos convocando o que neles é desenho e estrutura conceptual: as repetições do sinal, a organização esquemática que, embora possa parecer abstracta para um leigo, têm uma função performativa e significativa para o intérpete, são tomados pelo artista, na composição de cada página, numa acumulação aparentemente dispersas de registos que se revelam conectados numa visualidade/sonoridade de carácter autoral.  

 

4.  

As afinidades e os paralelismos entre a linguagem musical e linguagem não-musical são uma constante na sua própia construcção. Por exemplo, nos países anglo-saxónicos, o nome das sete notas musicais é equivalente às sete primeiras letras do alfabeto, mantendo a sua ordem estabelecida: começando no A, que corresponde ao Lá (nota de afinação do diapasão, na actualidade tomada como ponto de referência para a afinação das outras seis notas), numa lógica sequencial até ao G que nomeia o Sol. A própria frequência sonora, que dá a referência para a afinação dos instrumentos, sofre alterações que se reflectem auditivamente mas sem uma transposição propriamente inscriptiva e por isso se a inscrição musical de um compositor barroco representa-se hoje, exactamente, como há 250 anos atrás, em rigor, o que se ouve está alterado. Em última instância, o exercício de reescrita de Jorge Pinheiro sublinha uma indeterminação: aquela da impossivel correspondência entre o signo de inscrição e a sua significação, mesmo quando essa inscrição se regula por parâmetros rígidos, como acontece com a música. A percepção das transposições musicais é decisiva para a Grécia da antiguidade clássica onde, cada escala tonal assume características específicas e humores distintos. O modo «Lígio», que em grego significa voz agradável, canto sonoro, projectado e audível, coíncide com o que posteriormente se denominará por modo maior e é associado os estados de alegria relevando dos poderes anímicos da música.  

 

Conclusão  

Prolegómenos delimita-se dentro de uma herança europeia onde as questões internas da escrita e da interpretação musicais são alvo de transposição e, neste exercício visual nascido do pensamento gráfico em função da música, o som colabora na sugestão de imagens mentais que o gesto regista numa ficção sinestésica entre humores, cores, formas, sons, gestos. A rapidez do traço, a célere fricção do lápis no papel informa, deforma, transforma, reformula-se num lugar (qualquer) da página. Por afinidade com a partitura, os sinais de pontuação estruturam o desenho, colaboram entre si em articulação com a gralha milimétrica. Um arco-íris feito com quadrados sucessivos vem colorir expressivamente a composição. Remete para a animosidade das escalas felizes da Grécia, que Platão relata como tendo um efeito moral e ético no comportamento dos cidadãos.

 

 

Artigo completo recebido a 13 de janeiro e aprovado a 30 de janeiro de 2013.

 

Endereço para correspondência

Correio eletrónico: emam.margaridaprieto@gmail.com (Margarida P. Prieto).

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