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Revista :Estúdio
versão impressa ISSN 1647-6158
Estúdio vol.4 no.8 Lisboa dez. 2013
ARTIGOS ORIGINAIS
ORIGINAL ARTICLES
Andrej filho de Andrej filho de Andrej: uma dádiva
"Andrej filho de Andrej filho de Andrej": a gift
Rogério Paulo Raposo Alves Taveira*
*Portugal, artista visual, professor universitário. Licenciado em Arquitectura e Doutorado em Belas-Artes.
AFILIAÇÃO: Universidade de Lisboa, Faculdade de Belas-Artes, Centro de investigação em Belas-Artes (CIEBA). Largo da Academia Nacional de Belas-Artes, 1249-058 Lisboa, Portugal.
RESUMO:
Este artigo aborda uma parte muito específica da obra de Rui Chafes. Aquela em que ele abandona no meio natural, especificamente na costa atlântica em Sintra, peças escultóricas. Deste abandono restam apenas algumas fotografias das esculturas na paisagem. Do acto em si, resiste uma significação perene, uma sombra mais negra que aquela impressa nas fotografias ou pintada nas suas esculturas.
Palavras-chave: Abandono / Dádiva / Natureza / Rui Chafes.
ABSTRACT
This article focuses on a specific body of work of Rui Chafes. In the Atlantic coast, in Sintra, he abandons sculptures. The only thing left of this act, are some black and white photographs of the sculptures in the landscape. The act itself has a stronger and perennial meaning: a black shadow, darker than the darkest black on the photographs.
Keywords: Abandonment / Gift / Nature / Rui Chafes.
O carácter acidental da natureza parece também unir-se, por si, à ideia da personalidade humana e, desse modo, pode parecer mais inteligível, ao considerá-la um ser humano. Por esta razão, foi a poesia o instrumento favorito do amigo da natureza; e nos poemas é onde mais claramente se manifestou o espírito da mesma. Ao ler ou ao escutar um poema verdadeiro, experimentamos a sensação de que se comove uma inteligência muito íntima da natureza; e flutuamos, como um corpo celeste, nela e sobre ela em simultâneo (Novalis, 1988a: 35).
Rui Chafes não consegue precisar o ano exacto em que a ideia de oferecer uma obra à Natureza o assaltou. Esculpia ainda em pedra, nessa altura, no antigo Convento de São Francisco, então Escola Superior de Belas-Artes. Por isso, a ideia inicial possuía essa capacidade de diluir artifício e natureza, pedra na pedra.
Este projeto de amor só veio a concretizar-se quase uma década mais tarde, quando as suas esculturas negras de ferro já constituíam um corpo de trabalho sólido. A evidência de uma dádiva ao que se ama era e é, no entanto, a mesma. Só a obra oferecida é distinta da ideia inicial, ferro negro em vez de pedra. Já não há dissolução entre objeto artificial e natural. Rui Chafes depõe as suas flores de ferro nas rochas atlânticas como alguém que acredita que "a fonte da vida é a certeza da morte" (Chafes, 2006, 95) (Figura 1). Depomos flores nas campas dos nossos mortos, como se elas, a terra e o corpo se pudessem, de algum modo, regenerar a partir desse acto. As flores que fenecem nos cemitérios são, mais que um símbolo, uma mimesis do próprio processo que levou o ser a não ser. A obra de Rui Chafes é obscura como a noite, sopra-nos a alma com uma força invisível e gélida. "O tempo da Luz é mensurável; mas o império da Noite é sem tempo e sem espaço." (Novalis, 1988b: 25). É neste espaço e tempo imensuráveis que vivem as flores negras imarcescíveis de Rui Chafes. Flores de ferro negro. São algumas destas flores que Chafes planta nas rochas da costa atlântica. Local onde nasceu e agora abriga a criação da sua obra, onde está só, com tudo o que ama. Lugar onde ele próprio germina como Ser, "tornado visível, do amor entre a Natureza e o espírito ou a arte" (Chafes, 2000: 85) e, tal como Novalis, se questiona sobre o germe originário, a natureza da Natureza?
É por isso que Rui Chafes acredita na sacralização das pessoas e das coisas, tal como os Antigos ele ouve a voz da Natureza (de Deus) em cada erva, cada nuvem, na espuma do mar, nas folhas das árvores ou no silêncio.
Rui Chafes não sabe o destino das várias peças que ofereceu a este pedaço de terra e mar, perto do Monte da Lua. Sonha que algumas foram engolidas pelo mar, outras podem estar a enferrujar num qualquer ferro-velho ou mesmo terem sido destruídas, mas, verdadeiramente, pouco lhe interessa o destino das peças, não acredita "nos objetos, só na esperança do objeto" (Chafes, 2006: 41). O seu "coração permanece fiel à Noite e ao Amor criador, seu filho." (Novalis,
1988b: 31). Este acto sagrado de Amor criador consuma-se no abandono, na libertação de uma sombra para que esta se purifique. Como Zaratustra pedindo à sua sombra para descansar na caverna enquanto ele corre, com pés mais leves, pelo Meio-Dia. Talvez oferecer sombras seja uma forma de ganhar leveza, de poder voar como a águia e olhar para os abismos do próprio ser. Esse ser que está, "simultaneamente, dentro e fora da Natureza" (Chafes, 2000: 85).
Um agradecimento não se faz à paisagem, tem de ser mais profundo, muito mais profundo. Não podemos agradecer apenas ao corpo do artista a sua obra, temos de agradecer a todo o seu Ser. Ao seu mais profundo Ser, aquele que se esconde na profundidade negra e abismal. Do mesmo modo Rui Chafes parece agradecer à mais profunda Natureza. À Natureza como Ser. Como possibilidade de entendimento do Humano num sentido mais alargado: "[...] a Natureza só existe a partir do homem. O mundo começa no homem." (Chafes, 2006: 171).
A paisagem constrói-se por conexões sucessivas. É um acto da perceção e inteligência humana: "[...] paisagem é o espaço que se constitui em objeto de experiência estética, e tema de um juízo estético" (Serrão, 2011: 341). A Natureza também o é, mas possui os misteriosos abismos interiores, mais próximos do Ser e não apenas do intelecto. Possui essa ligação primordial do Homem ao "mundo ambiente" conforme Augustin Berque (Serrão, 2011: 188), ecológica e simbólica: As medidas anteriores ao sistema métrico, por exemplo, baseavam-se no corpo humano, direta ou indiretamente existia uma sintonia entre micro e macro cosmos. Existia uma composição de elementos que, se amplificavam ou reduziam gradualmente, a partir do Homem e que permitiam tomar o mundo como uma extensão e vice-versa: "o todo esclarece a parte e a parte o todo" (Chafes, 2000: 71).
A fragmentação e o espectáculo instalaram-se na nossa civilização onde tudo o que reluz é ouro e o sagrado é já apenas um mal entendido. Tudo se direciona para a impossibilidade do pensamento. A arte assume-se, cada vez mais, como um duro exercício de resistência ao facilitismo dos clichés. O acto pensado, sentido e executado por Rui Chafes ecoa um dos fragmentos de Novalis: "O pensamento, tal como a floração, não é, certamente senão a mais delicada evolução das forças plásticas – apenas a força universal da Natureza elevada à potência n da dignidade." (Chafes, 2000: 115).
As fotografias destas esculturas antes do abandono recordam-nos algumas imagens que registam também ações no meio natural: Richard Long ou Walter de Maria. Em ambos os casos só nos restam fotografias das obras na paisagem, uns quantos pontos de vista de uma ação. No caso dos artistas referidos, sobretudo em Richard Long, as obras produzem-se a partir da relação direta com um território. No entanto a obra de Rui Chafes pressupõe um trabalho rigoroso e laborioso de construção de um objeto em oficina, o transporte desse objeto até ao local, a colocação, muitas vezes penosa, do objeto no meio natural e, depois, o abandono (Figura 2). As obras de Rui Chafes existem no tempo pós-fotográfico, naquilo que imaginamos que aconteceu a estas laboriosas peças. Tudo o que não sabemos, tudo o que não está registado, tudo o que não é visível constitui o cerne destas dádivas. O vazio que se instala é a obra de arte. As imagens são apenas registos de um tempo antes da morte destes objetos, ou do início da sua verdadeira vida.
Intitular um acto Andrej filho de Andrej filho de Andrej remete-nos para uma genealogia. Remete-nos para algo que se perpetua indefinidamente, como as manchas negras dos tigres de Borges no conto A escrita de Deus, onde um sacerdote prisioneiro, Tzinacán, consegue decifrar uma mensagem divina, uma sentença mágica, a partir da hereditariedade dessas manchas (Borges, 1998: 617-620).
Este perpétuo movimento genealógico construído a partir de uma tripla repetição – um filho é um acto de amor tornado visível – e duma triplicidade fundacional – corpo, alma e espírito – pode também ser interpretada a partir da ideia ternária de Novalis segundo a qual "1. Tudo se deve tornar céu. – 2. tudo se deve tornar espírito. – 3. e tudo se deve tornar virtude. 3. é a síntese de 1. e 2." (Chafes, 2000: 75). Para Novalis o Mundo é imperfeito, o céu perfeito. Esta imperfeição patente na vida do Mundo torna-se perfeita pelo exercício da virtude, a morte. Mas, de novo, a partir da saturação das polaridades da morte – positiva e negativa – nasce a vida. Neste Mundo onde se dá a união imperfeita do espírito com a Natureza, ansiamos pela união do espírito com o céu. O espírito está entre estas duas polaridades o Céu e a Terra. Podemos apenas ansiar, através do exercício da virtude, que cada acto de amor dê origem a um novo espírito. E que esse amor tornado visível seja cada vez mais céu.
As obras abandonadas na costa atlântica, em Sintra, parecem conformar-se com um gesto de amor a um Todo. Um Todo entre o Céu e a Terra onde a luz não chega. No mesmo espaço sombrio de onde emerge toda a obra de Rui Chafes. Um espaço e tempo eternamente retornavel, porque eternamente inatingível. O mesmo espaço e tempo onde caminharam Andrej Rubliov ou Andrej Tarkovsky.
Referências
Borges, Jorge Luis (1998) Obras Completas 1923-1949. Lisboa: Teorema. ISBN 972-695-347-2 [ Links ]
Chafes, Rui (1995) Würzburg, Bolton, Landing. Lisboa: Assírio & Alvim. ISBN 972-37-0383-1 [ Links ]
Chafes, Rui (2000) Fragmentos de Novalis. Lisboa: Assírio & Alvim. ISBN 972-37-0303-3. [ Links ]
Chafes, Rui (2006) O Silêncio de… Lisboa: Assírio & Alvim. ISBN 972-37-0975-9 [ Links ]
Chafes, Rui (2011) Contramundo. San Francisco: Fundación Luis Seoane/ Artedardo. ISBN978-84927772-26-1 [ Links ]
Chafes, Rui (2012) Entre o Céu e a Terra. Lisboa: Documenta. ISBN 978-989-97719-6-3. [ Links ]
Nietzsche, Friedrich (1988) Assim Falava Zaratustra. Tradução de Alfredo Margarido. Lisboa: Guimarães Editora. s/ISBN. [ Links ]
Novalis (1988a) Los discípulos en Sais. Edición de Félix de Azúa. Madrid: Hiperión. ISBN 84-7517-228-8 [ Links ]
Novalis (1988b) Hinos à Noite. Tradução de Fiama Hasse Pais Brandão. Lisboa: Assírio & Alvim. s/ISBN. [ Links ]
Schelling, F. W. J. (2001) Ideias para uma Filosofia da Natureza. Tradução, prefácio, notas e apêndices de Carlos Marujão. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda. ISBN 972-27-1088-5 [ Links ]
Artigo completo recebido a 9 de setembro e aprovado a 24 de setembro de 2013
Correio eletrónico: rogeriotaveira@sapo.pt (Rogério Taveira)