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Revista :Estúdio
versão impressa ISSN 1647-6158
Estúdio vol.4 no.8 Lisboa dez. 2013
ARTIGOS ORIGINAIS
ORIGINAL ARTICLES
As paisagens obscuras de Lizângela torres: incursões noturnas como método
The dark landscapes of Lizângela Torres
Clóvis Martins Costa*
*Brasil, artista visual e professor universitário. Professor do Curso de Artes Visuais da Universidade Feevale – Novo Hamburgo/RS. Mestre em Poéticas Visuais. Graduado em Artes Plásticas.
AFILIAÇÃO: Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Porto Alegre/RS Brasil). Instituto das Artes. Programa de pós Graduação em Poéticas Visuais. Rua Senhor dos Passos, 248, CEP 90020-180 – Centro – Porto Alegre, RS. Brasil.
RESUMO:
Este artigo versa sobre experiências em paisagens noturnas como escopo para uma investigação no campo da arte. A noção de indeterminação é observada na ação geradora de imagens, bem como na proposição de situações expositivas que exploram formas de apresentação diversas: produções textuais, fotografias, vídeos e trabalhos in situ.
Palavras-chave: noite / experiência / indeterminação / fotografia.
ABSTRACT
This paper discusses some experiences in night landscapes as base for a research in the field of art. The notion of indeterminacy is observed on the actions which generate the images, as well as in the proposition of the exhibition situations, exploring a range of presentation forms: textual productions, photography, videos and works in situ.
Keywords: night / experience / indetermination / photography
Incursão inicial
Um passeio à noite deflagra um circuito de procedimentos calcados na experiência. Lizângela Torres opera neste lugar instável, onde qualquer forma de racionalização barra na espessura característica do breu noturno. A paisagem aqui é este campo de passagem no qual o corpo avança, atravessando o que a artista denomina zona de indeterminação (Figura 1). Lembremos então que a noção de paisagem nesta poética remonta aos tempos arcaicos da experiência humana, onde a noite (e porque não dizer, a natureza) consistia em um espaço a ser vencido, repleto de perigos e devires, espaço povoado pelas sombras. Sua obra, portanto, advém de um impulso volitivo rumo ao desconhecido, à desrazão que envolve a grande noite, cosmos onde a consciência se evade.
Lizângela aciona seu corpo através de incursões noturnas para a captura desta ação por meio da fotografia. O meio empregado se coaduna com o conceito operacional, noite, uma vez que a substância noturna é aquela que compõe a caixa preta, lugar do aparelho fotográfico que "deve ser impenetrável para o fotógrafo, em sua totalidade" (Flusser, 2011: 43).
Neste mistério da aparição/desaparição da imagem no ambiente escuro, reside o escopo de suas investigações, como se o operador adentrasse a câmara-noite no enlevo de decifrar seu mistério, ou ao menos se lançar em sua direção. Como simulacro da noite, a fotografia é experienciada pelo outro através de projeções de imagens, caixas de backlight, textos ou objetos, todos instalados em espaços escuros (Figura 2). O sujeito que participa da noite transfigurada no momento da fruição, completa a experiência artística, deflagrada na paisagem e transportada ao espaço de montagem.
1. A noite proposta
Segundo Lizângela, a montagem in situ dos desdobramentos da experiência na noite, promove um campo de investigação onde a procura pela imagem sublinha o caráter indeterminado das suas proposições:
O espaço é elaborado para a experiência do fruidor, contando com a ação do público para o assomo da obra. Instalada em um ambiente escuro, a fotografia, projetada, ou através de backlight, ilumina sutilmente o espaço, abrindo rasgos de luz, de forma a incentivar o deslocamento do observador pelo ambiente enegrecido. Banhado por um véu de luz, o corpo do observador se move pelo espaço escurecido, num processo investigativo, em busca de imagens (Entrevista com a artista em agosto de 2013).
Observa-se a intenção de distender a experiência na paisagem noturna por meio de uma situação instalada. As formas de apresentação utilizadas pela artista variam, como que proliferadas pelo seu lugar de origem. Se a noite é o espaço da indeterminação, esta estratégia se releva eloqüente. O outro, que adentra esta noite transfigurada, protagoniza novos acontecimentos obscuros. De certa forma, este sujeito é arremessado ao espaço vertiginoso das forças que compõem a paisagem noturna: espaço do fora, diante do qual o arrebatamento é inevitável.
O trabalho Incursões noturnas – Ibiraquera (Figura 3, Figura 4), composto pela captura do deslocamento de um automóvel numa estrada de chão durante a noite, apresenta a experiência do trajeto percorrido nesta zona indiscernível que aparece à frente do para-brisas do veículo. A imagem resultante da iluminação do farol do automóvel parece descolar-se do campo visual, produzindo uma atmosfera densa na qual a experiência se condensa. A paisagem, portanto, torna-se um amálgama do composto sujeito/fora. Evasão dos sentidos no caldo negro da noite. De fato, é no momento do contato com os trabalhos (sejam eles fotografias, vídeos, objetos ou textos) que a noite proposta por Lizângela alcança a espessura necessária para que os afetos adentrem a hora do lobo, ápice da noite, hora intensa, noite abissal.
Tony Smith, artista referencial para a pesquisa da artista, relatou que a experiência noturna em uma auto-estrada constituiu-se como um momento revelador, como se a perda dos referenciais seguros da paisagem, ao se dissolverem na escuridão, inaugurassem uma nova concepção de arte. Didi-Huberman comenta esta situação de embate como:
...uma experiência em que a privação (do visível) desencadeia, de maneira inteiramente inesperada (como um sintoma), a abertura de uma dialética (visual) que a ultrapassa, que a revela e que a implica. É quando fazemos a experiência da noite sem limite que a noite se torna o lugar por excelência, em pleno meio do qual somos absolutamente, em qualquer ponto do espaço onde nos encontremos. É quando fazemos a experiência da noite, na qual todos os objetos se retiram e perdem sua estabilidade visível, que a noite revela para nós a importância dos objetos e a essencial fragilidade deles, ou seja, sua vocação a se perderem para nós exatamente quando nos são mais próximos (Didi-Huberman, 1998: 99).
2. Ocaso
Termos obscuros compõem o repertório conceitual desta pesquisa pela noite enquanto escopo, lugar de prospecção e campo de ativação de sentidos. Noite, Breu, Ocaso e Zona de indeterminação são alguns enunciados que apontam para a dimensão da escrita no trabalho de Lizângela Torres. A paisagem explorada aqui se constitui como lócus do aparecimento dos conceitos. Da criação destes, podemos aferir o grau de intensidade da noite experimentada. Haveria uma relação aqui entre universos heterogêneos, o dentro e fora, a luz e a sombra, o dia e a noite. Nesta zona de embate, está o corpo, anteparo da luz projetada ou instrumento da ação. A zona indeterminada pertence ao domínio do litoral, linha divisória entre o real e o sujeito. Mistura, portanto, de onde emerge a palavra. A escrita seria então a produção resultante desta fricção entre díspares, contato entre o fora e o dentro. Nesta borda indeterminada situada entre a artista e seu campo de ação (paisagem noturna), abre-se o abismo do qual a palavra emerge.
Capturado nas incursões noturnas, o termo ocaso, que, segundo Torres, está em processo de delimitação conceitual, apresenta-se como instrumento investigativo para a reflexão sobre o seu trabalho. Este momento crepuscular, onde se dá a transição do dia para a noite, vem a ser a duração da experiência artística na ocasião da exibição, do acesso ao outro. Trata-se, portanto, como nos informa a artista:
...do momento que precede a noite, tensão entre dia e noite; zona mestiça; cruzamento entre diferenças; momento trágico dionisíaco/apolíneo; entre a embriaguez e a razão; aparição da desaparição; presença da reverberação de uma ação ausente. Podendo significar, também, a morte, o fim, o declínio, a ruína, OCASO está diretamente relacionado com a mudança, com o vir a ser outro diferente, indeterminado, impensado (Comunicação pessoal, agosto de 2013).
A apresentação da paisagem noturna, em consonância com a delimitação do conceito operacional ocaso está presente no trabalho intitulado Kínesis (Figura 5, Figura 6). Uma instalação formada pela projeção da imagem da noite em estado de aparecimento, o dia escoando para dentro da noite. O entardecer é capturado em um vídeo realizado no terraço de um edifício, apreendendo uma tomada de 360º. Projetado sobre uma parede na qual foram instalados diversos
Noite afora
As paisagens aqui experimentadas ativam as noções pelas quais o trabalho da artista/pesquisadora se orienta nesta noite densa. Por meio da delimitação de conceitos e enunciados, Lizângela cria espécies de fontes luminosas, como o farol do carro que ilumina a estrada ou o seu próprio corpo nas incursões noturnas. As palavras, aos rasgarem o breu, projetam sobre as zonas de indeterminação trilhas possíveis para o acesso à noite, e porque não falar de uma noite-outro, o sujeito adiante do qual se projeta uma existência. Sair à noite pode ser entendido, desta forma, como o exercício da alteridade: sair de si para adentrar o ocaso da experiência.
Referências
Didi-Huberman, Georges (1998). O que vemos, o que nos olha. Rio de Janeiro: Ed. 34. ISBN: 85-7326-113-7 [ Links ]
Flusser, Vilém (2011). Filosofia da caixa preta: ensaios para uma futura filosofia da fotografia. São Paulo: Annablume. ISBN: 978-85-391-0210-5 [ Links ]
Artigo completo recebido a 9 de setembro e aprovado a 24 de setembro de 2013
Correio eletrónico: clovismartinscosta@gmail.com (Clóvis Martins Costa)