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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.4 no.8 Lisboa dez. 2013

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

A cidade visível e a cidade tangível. A paisagem urbana como palimpsesto na obra de António Ole

The visible and the tangible city: the cityscape in the work of António Ole

 

Teresa Matos Pereira*

 

*Portugal, artista plástica. Doutoramento em Belas Artes (especialidade de Pintura); Mestrado em Teorias da Arte; Licenciatura em Artes Plásticas (Pintura) – Faculdade de Belas Artes de Lisboa.

AFILIAÇÃO: Universidade de Lisboa, Faculdade de Belas Artes, Centro de Investigação e Estudos de Belas-Artes. Largo da Academia Nacional de Belas-Artes, 1249-058 Lisboa, Portugal.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

Na década de 70, António Ole inicia uma pesquisa artística multidisciplinar em torno das arquiteturas e vivências dos bairros pobres da cidade de Luanda (musseques). Desta resultaram um conjunto de fragmentos de paisagens urbanas que se apresentam sob a forma de fotografia, colagem ou instalação confrontando o observador com a precariedade dos materiais mas também com a capacidade de resistência e improviso de quem diariamente constrói estas estruturas de sobrevivência.

Palavras-chave: Paisagem urbana / musseque / arquiteturas de sobrevivência / criatividade / resiliência.

 

ABSTRACT

In the 70s, António Ole initiates a multidisciplinary artistic research around the architectures from the slums of Luanda ("musseques"). This resulted in the creation of a series of collages, photographs and installations that present fragments of urban landscapes confronting the viewer with the precariousness of the materials but also the resilience and improvisation who daily builds these survival structures.

Keywords: Urban landscape / urban slum / architectures of survival / creativity / resilience.

 

1. Visualidade, tangibilidade e visibilidade

António Ole (n. Luanda em 1951) irá desenvolver um percurso multifacetado, dividido entre o cinema, a fotografia e as artes plásticas. Na década de 1970 e início dos anos 80 estuda cultura afro-americana na Universidade da Califórnia UCLA, licenciando-se em cinema no Center for Advanced American Film Studies, do Film Institute (Los Angeles).

Ao longo do seu percurso enquanto artista plástico António Ole irá realizar – através da pintura, da fotografia do vídeo e da instalação – um conjunto de reflexões estéticas a questões que envolvem a história colonial de Angola, a diversidade cultural do país, mas igualmente as vivências do quotidiano urbano da cidade de Luanda, onde reside e trabalha.

As incursões plásticas e fotográficas ao espaço urbano, desenvolvidas por António Ole, definem-se em planos de significação que problematizam as várias modalidades do ver, onde o sentido da paisagem é discutido não só na sua visualidade mas acima de tudo num plano da visibilidade.

Neste caso consideramos em primeiro lugar que a dimensão visual da paisagem supõe simultaneamente a existência de uma realidade concreta e uma codificação do que é observado – traduzido através de uma imagem. Em segundo lugar, o plano visual apresenta-se como ponto de partida para um olhar que indaga a visibilidade dessa imagem, envolvendo um processo elaborado de reflexão onde se articulam elementos visuais, experiências e memórias, resultando na criação de noções que se vão sedimentando a vários níveis das subjetividades individuais, coletivas e sociais.

Assim, os fragmentos da paisagem urbana de Luanda, designadamente dos bairros pobres (musseques) não poderá ser encarados apenas na sua dimensão puramente visual mas integram-se numa reflexão mais ampla em torno da história do país e da sociedade que inevitavelmente foram moldando o espaço da cidade, deixando impressos na sua epiderme os vestígios da passagem do tempo e da ação humana.

 

2. texturas da cidade

O interesse inicial pela arquitetura e pelo urbanismo na década de 70 coincide com as primeiras experiências na fotografia, no âmbito da qual Ole inicia um conjunto de retratos dos habitantes dos musseques que mais tarde se alargarão às estruturas precárias que compõem estes bairros periféricos da cidade de Luanda. Estas investidas estéticas pelos musseques resultam numa gradual aproximação ao fragmento, extraído de paisagens em incessante mutação, alimentadas pela miséria, resiliência e criatividade.

Ao mesmo tempo esta abordagem estética a uma paisagem socialmente estigmatizada revelar-se-á ao logo do percurso de António Ole, sob diversas modalidades estabelecendo, contudo, uma dinâmica de intervisualidade, que atravessa as várias dimensões plásticas da sua obra.

Neste sentido iremos considerar alguns dos seus projetos quer no âmbito da fotografia quer das artes plásticas ou da instalação onde a reflexão em torno da paisagem urbana – entendida não só nas suas dimensões visuais mas igualmente sociais e históricas – assume uma também uma vertente interventiva que, longe de fazer uma qualquer "apologia da pobreza" denuncia, ao invés, a capacidade de resistência dos habitantes/construtores de tais paisagens – tanto em termos sociológicos como históricos.

Este fato é aflorado por exemplo nos documentários que António Ole realiza no final da década, designadamente o filme "O Ritmo dos N'Gola Ritmos" onde se detém nos sucessivos estratos que compõem as habitações destes bairros pobres, afirmando que "os musseques crescem ao ritmo da história; crescem, multiplicam--se […] superfícies, arranjo … a miséria criando as suas armas de defesa" (Ole: 1978) Posteriormente esta pesquisa resultará não só em séries de fotografias que retratam vestígios de arquiteturas marcadas pelo abandono onde a passagem do tempo e a ruína não deixam de se constituir como metáforas de uma realidade violenta onde os seus atores, embora fisicamente ausentes, são convocados através de uma cenografia fantasmagórica.

Nas palavras do autor estas imagens constituem-se como "[…] um jogo cénico sem personagens. Não estão ali fisicamente mas deixaram o seu rasto irreparável, criado pelo espetro das ruinas e do absurdo" (Ole, 2003: 18).

No tríptico Urban Choices (I) (Figura 1) este rasto é pressentido através das sucessivas camadas que sobressaem das paredes em deterioração e que metaforicamente se configuram como palimpsestos reescritos e reconfigurados ao longo do tempo pela ocupação e abandono, onde a epiderme das estruturas urbanas emerge como suporte simbólico de uma realidade social corroída pela guerra.

 

 

Neste caso poderemos falar numa "estética do fragmento" onde a precariedade e a descontinuidade podem abrir a possibilidade de releituras e de ressemantizações.

 

3. A paisagem urbana como símbolo de resiliência

A instalação "Na Margem da Zona Limite" de 1994 no Teatro Elinga em Luanda (Figura 2) marcará simultaneamente o culminar de um processo criativo desenvolvido pelo artista durante os anos anteriores onde a pintura se vai assumindo como suporte matérico de processos de acumulação (de vestígios, caligrafias e imagens) através da colagem, mas também como ponto de partida para um conjunto de instalações intituladas Township Walls que o artista vai apresentando nas diversas exposições internacionais – Chicago 2001, Veneza 2003, Lisboa 2003 (Figura 3), Düsseldorf 2004 (Figura 4), e Washington (2009) – e que integram igualmente vestígios urbanos recolhidos nas cidades onde realiza as instalações de grande escala.

 

 

 

 

 

 

As fachadas dos musseques de Luanda surgem como evocações de uma paisagem urbana que configura uma diversidade de geografias humanas e sociais onde a temporalidade fragmentada da história se reflete na materialidade da obra. Em Margem da Zona Limite – e posteriormente nas Township Walls – começa por integrar uma construção formada por chapas metálicas, tábuas, fragmentos arquitetónicos (portas, janelas…), etc., que evocando a arquitetura dos musseques, confronta o observador com a precariedade dos materiais mas também a capacidade de resistência e improviso de quem diariamente constrói estas estruturas de sobrevivência.

Estas instalações exploram por um lado, a criatividade contingente dos construtores efémeros destas habitações – estruturas de sobrevivência como virá a chamar-lhes – e por outro evocam a capacidade humana de superar as dificuldades mesmo dispondo de escassos recursos. Nas palavras do autor

Durante todos estes anos o meu trabalho foi à volta das "urbanidades", da observação destes mecanismos de resistência e sobrevivência. A minha arte é muito sobre isso, sobre como se supera, como se sobrevive (Ole: 2009)

Neste sentido, para lá da dimensão visual e plástica estas instalações não deixam de evocar em primeiro lugar, uma dimensão sociológica que acompanha a história da própria cidade de Luanda, constituindo-se igualmente como elementos de reflexão em torno da história violenta de Angola – quer durante o período colonial quer após a independência do país – onde as estruturas e fachadas visíveis denunciam uma textura deixada pelo tempo, pelas vivências e trânsitos humanos.

Na verdade, o crescimento da cidade sobretudo a partir do final da II Guerra Mundial – em virtude de um crescimento populacional e económico – esteve na origem de uma separação cada vez mais acentuada entre a cidade do asfalto (a cidade colonial) e os bairros periféricos de construção precária e configuração labiríntica onde residia a população pobre, o espaço físico e social dos colonizados, dos marginalizados e cuja fisionomia estava em permanente transfiguração. No final da década de 50 e sobretudo na década de 60 será nesta outra cidade de terra batida, que os movimentos nacionalistas irão encontrar um terreno fértil à sua propagação, assumindo igualmente um outro sentido de resistência (neste caso de sentido histórico contra o colonialismo).

As fachadas do musseque, reconfiguradas nas instalações de António Ole representam também uma segregação que, sendo inicialmente racial durante o período colonial, transformou-se posteriormente numa segregação social separando o território de diferentes classes.

Esta dialética entre resistência, sobrevivência e criatividade que alimenta o processo criativo do artista, alarga-se para lá dos limites da cidade de Luanda estendendo-se a outras cidades onde constrói as suas Township Walls recolhendo localmente os materiais que as irão compor. Na verdade o autor explica que as instalações são "[…] sempre diferentes, com materiais recolhidos em cada um dos lugares onde foram feitas e após visitas a espaços das respetivas cidades que tivessem a ver com essa problemática – sempre a da arquitetura ligada a esquemas de sobrevivência" Estas Township Walls iriam estar na origem da instalação integrada na exposição Who Knows Tomorrow e intitulada The Entire World/Transitory Geometry (2010) no Hamburger Bahnhof – Museu de arte contemporânea em Berlim, onde o artista realiza uma parede composta por contentores e que – para lá da alusão ao muro que dividiu a cidade durante cerca de 29 anos – permite estabelecer um feixe de significados que sintetiza a reflexão estética desenvolvida por António Ole desde a década de 70. Partindo de uma referência aos fluxos comerciais e migratórios transnacionais problematiza as contingências a que os imigrantes enfrentam nas metrópoles ocidentais, relembrando – através da recolha de materiais in loco – as condições precárias em que estes (sobre)vivem e integrando transitoriamente as paisagens urbanas transformando-as, complexificando-as.

 

4. Nota final

A pesquisa realizada por António Ole em torno da paisagem urbana constitui, como vimos, uma componente essencial do seu percurso artístico permitindo articular as dimensões da perceção, da memória sensorial e da plasticidade inerentes à deambulação pelos diversos espaços da cidade com uma reflexão mais alargada acerca da resiliência humana face à violência (quer em termos históricos quer vivenciais).

Na verdade, as estruturas abandonadas ou as fachadas do musseque vão testemunhando, através de letreiros, sinais, cicatrizes, acidentes e texturas impressas nas superfícies dos materiais, os trânsitos e ação humana, mas também problematizam as diversas fronteiras/margens existentes no tecido urbano onde a fisicalidade dos materiais surge como uma pele que corporiza a invisibilidade das relações humanas nos vários espaços da cidade.

 

Referências

AA.VV. (1997) António Ole: Retrospetiva 1967/1997. Luanda: Centro Cultural Português – Instituto Camões.

AA.VV. (2004) António Ole: Marcas de um Percurso. Lisboa: Culturgest.         [ Links ]

AA.VV. (2009) António Ole: Na Pele da Cidade. Luanda: Instituto Camões – Centro Cultural Português.

Mixinge, Adriano (1999) "António Ole – La Travesía desde Angola". Lapiz, Madrid, nº155, (Julho), pp. 61 – 67.

Mixinge, Adriano (2011). "António Ole, un artiste en constant renouvellement", in Angola : Figures de Pouvoir. Paris : Musée Dapper, pp. 269-271.         [ Links ]

Piedade, Joana Simões (2009). António Ole : Texturas Urbanas. [Consult. 2013-08-23] Disponível em http://www.opais.net/pt/revista/?id=1639&det=7972&mid=1        [ Links ]

Ole, António (1978) O Ritmo dos N'Gola Ritmos. Documentário        [ Links ]

 

Artigo completo recebido a 6 de setembro e aprovado a 24 de setembro de 2013

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: teresamatospereira@yahoo.com (Teresa Matos Pereira)

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