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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.5 no.9 Lisboa jun. 2014

 

DOSSIER: ARTIGOS ORIGINAIS POR AUTORES CONVIDADOS

DOSSIER: INVITED ORIGINAL ARTICLES

As xilogravuras de Amilton Damas e seu processo de formação

Amilton Damas'Woodcuts and his Process of Education

 

Ronaldo Alexandre de Oliveira*

 

*Par académico externo da Revista Estúdio. Professor universitário e artista visual.

AFILIAÇÃO: Universidade Estadual de Londrina, Departamento de Arte Visual. Rodovia Celso Garcia Cid, Pr 445 Km 380, Campus Universitário, Cx. Postal 6001, CEP 86051-990, Londrina – Paraná – Brasil.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

O propósito deste artigo é refletir sobre o processo de criação do artista brasileiro Amilton Damas, assim como sobre o caminho percorrido em seu processo de formação. Os dados nos mostram o quanto a obra de Amilton estabeleu uma sintonia direta com a vida e com seu cotidiano. Por meio de materiais inusitados em xilogravura, o artista dá vida a personagens diversos que vem compondo sua obra desde o início de sua formação em arte.

Palavras chave: Xilogravuras / processo de criação / formação em arte.

 

ABSTRACT

The purpose of this article is to reflect on the process of creation of Brazilian artist Amilton Damas as well as on the journey he went through during his education process. The data show how the work of Amilton established a direct line with life and with his daily experiences. Through unusual materials applied to woodcuts, the artist gives life to several characters which have been composing his work since the beginning of his education in art.

Keywords: Woodcuts / creation process / art education.

 

O propósito deste artigo é refletir sobre o processo de criação e o caminho percorrido na formação do artista plástico brasileiro/paulista Amilton Damas. Amilton é um jovem criador (nascido em Jacarei/SP/Brasil, em 1979), graduado em arquitetura e mestre em Poéticas Visuais (Insituto de Artes / UNICAMP). Acompanho seu trabalho há mais de 15 anos e neste tempo pude ver de perto seu processo de criação e também de formação, iniciado numa oficina intitulada "Oficina da Imagem", oferecida pela Secretaria Municipal de Educação de Jacarei / SP, em 1996.

A crítica genética, principalmente a partir das ideias de Cecilia Salles, contribui para que possamos identificar a sua postura, seu processo de criação. O modo da sua participação nesta oficina fazia nascer imagens, textos, rascunhos com uma conexão direta com a vida. Tudo era orgânico, e ainda hoje permanece em sua postura e produção uma organicidade muito marcante. A partir da sua voz, extraída da sua dissertação de mestrado, Amilton de maneira poética revela o que era deslocar da sua casa até o local em que iniciou sua primeira iniciação artística; uma oficina de desenho: "Nesse trajeto, passávamos por um caminho conhecido como "estrada velha", o qual por muito tempo retratei, seja em forma de poema, verso, desenho e gravura que estão guardados, registrados nos meus diários de bordo." (Damas,2013: 3)

A partir das suas caminhadas Amilton, ainda um pré-adoslescente já demonstrava sua atenção, sua sensibilidade, seu olhar particular para o mundo. Alimentado pelo seu olhar, Amilton dava forma textual e imagéticas às suas observações.

Percebo que desde o início da sua carreira, Amilton tem um olhar atento, cuidadoso, minucioso e sua postura silenciosa e corpo franzino contrasta com a brutalidade das suas gravuras. Sempre chamou minha atenção o contraste entre a postura aparentemente frágil, silenciosa e tímida com a força que são transmitidas pelas suas imagens. Seus traços, seus gestos, nascem de uma visceralidade que impressiona os nossos olhares. Os materiais, as ferramentas e os suportes que utiliza na construção das suas imagens em muito se distanciam dos instrumenos tradicionacionais da xilogravura. Portas e madeiras em desuso, furadeiras, lixadeiras, formões de marceneiro vão constituindo instrumentos e materiais adequados para este jovem artista que faz da xilogravura seu lugar de experimentação e criação. Lugar onde a vida vira arte, poesia. Amilton nos faz ver o mundo por outro prisma: "As experimentações de diversos materiais resultaram em inúmeras produções, possibilitando a ampliação do conhecimento da técnica e estabelecendo relações das potencialidades e limitações de cada suporte."(Damas, 2012:18) No embate com os materiais, e revisitando anotações que são registradas em seus diários de bordo nascem transeuntes, anônimos, pessoas comuns, muitas delas que vivem à margem da vida, como podemos ver na Figura 1, uma xilogravura em matriz perdida da série "Preconceitos" intitulada "Lésbicas".

 

 

Evidentemente cada artista, ainda que com os mesmos materiais, cria sua técnica, seu jeito de fazer, de ver, de constituir sua obra e isso tem a ver com sua visão de mundo. Zorzo (2007) em seus estudos nos fala sobre a técnica:

O procedimento compõe-se de gestos e enunciados, de modos de aplicação de materiais e ideias. O procedimento é o mecanismo que o artista constrói visando dar vazão à fonte de sua obra, negociando com a tradição, a técnica e a estética. Para o artista transpor o abismo entre a concepção da obra e a realização da sua performance, ele conta com uma estrutura de ação, com que possa alimentá-la de propostas, improvisos e variações. Com esse mecanismo artístico ele estabelece regras e, se necessário, as subverte, permitindo à obra ter um avanço sucessivo e um acúmulo progressivo de efeitos (Zorzo, 2007: 2).

Ao optar pela matriz perdida para a construção de uma boa parte da produção Amilton nos diz muita coisa sobre procedimentos técnicos. Ao se referir sobre a matriz perdida Damas nos diz:

Entendo a matriz perdida como um meio condutor da imagem que desvela, pela matéria, suas possibilidades de conduzir o espaço gráfico com a cor. Permite, com isso, que eu abandone o rigor dos registros precisos do processo de uma gravura e que a matriz deixe de ter a função de multiplicar uma imagem única. No percurso de elaboração, ela dá margem à edição de duas a quatro impressões. Percebo, então, que me encanto pela duplicidade da matriz e não pela sua multiplicidade (Damas, 2012: 60)

Com esse encantamento pela possibilidade de construir cada imagem e não de reproduzir em série – característica própria da gravura – Amilton nos fala de singularidade. O artista faz com que cada gravura seja uma; mesmo aquelas em que ele acaba por fazer mais de uma imagem, são feitas de forma única. Amilton singulariza a construção das suas imagens porque singulariza também cada um dos personagens/pessoas/transeuntes/anôninos que ele presentifica nas suas xilogravuras. Essa postura nos faz refletir sobre o sentido do fazer arte e de técnica que ele confere ao seu processo. De acordo com Deleuze e Guatari:

A arte é um modo de reunir afetos, afeto com afeto, dor com dor, alegria com alegria, alegria com dor. Arte requer um procedimento que comporte e suporte o afeto; exige, portanto, um veículo e uma série de operações que conformem conexões com a emoção. Basicamente, uma arte de procedimento consiste em operar as sensações, em vibrá-las, distendê-las, esvaziá-las, e expandi-las, e alcançar, com esses passos, o plano de composição da obra (Deleuze; Guatari, apud Zorzo, 2007: 2).

Vejo que neste procedimento de Amilton existe uma busca intensa de aproximar forma e conteúdo. Dizer aquilo que se tem para dizer com o melhor meio com que se possa dizer. Ao se apropriar dos mais variados materiais para contruir suas imagens, ele vai construindo uma escritura única, intensa, vibrante, com uma força que nos surpreende pelo desejo de gravar, de marcar, de restituir vida aos materiais dos quais ele lança mão e dar materialidade e visibilidade às suas ideias. Amilton confere a estes personangens/figuras uma outra possibilidade de existência, de destino que ele configura sob forma de arte.

Destas mesmas mãos, desejos e intenções, também nascem festas, folguedos, alegrias. Nasce a vida. Ainda se valendo da técnica da matriz perdida, Amilton faz nascer imagens coloridas com cores vibrantes, que colorem as imagens, seu universo e também o mundo daqueles que as contemplam. Em sua dissertação de mestrado intitulada "Festas populares paulistas: impressões xilográficas", apresentada em 2013 no Instituto de Artes / UNICAMP / SP, as festas populares do Vale do Paraíba / São Paulo / Brasil são o centro da sua investigação artística. Construindo xilogravuras coloridas por meio da técnica da matriz perdida, Amilton constrói gravuras em grandes dimensões. Folguedos, tocadores, cavaleiros, reis, rainhas, palhaços, cavalhadas, danças, bandeiras, carros de boi configuram este universo mágico, encantado. Novamente a intimidade e relação do universo pessoal com a pesquisa artística se faz presente. Amilton retoma suas lembranças de infância e recobra de sua memória próxima a sua ligação com estas festas e manifestações populares. "Desde sempre, por uma questão de fé e família, estive presente em várias festas do catolicismo popular no estado de São Paulo, características das cidades de Igaratá, Jacareí, Santa Isabel e São José dos Campos." (Damas, 2013: 22)

Ao frequentar e vivenciar estas festas, Amilton tem a preocupação de registar aquilo que vê, aquilo que vive!

Em quase todas as festas que frequentei, ao mesmo tempo em que as vivenciei, fiz muitos desenhos sobre os suportes simples de cadernos, blocos e folhas soltas, bem como fotografias digitais. Na coleta das imagens, procurei com mais dedicação utilizar desenhos de anotação que dessem conta de capturar de modo rápido a maioria dos acontecimentos festeiros (Damas, 2013: 22).

Ao revisitar as anotações gráficas de Amilton percebo que seus gestos guardam o frescor e o momento de captura daquilo que se vive. Em muitos momentos percebe-se que ele se detem diante daqueles que serão seus futuros personagens/retratados. O silêncio, a espera, o tempo que ele dispensa para registar aquela presença, aquela performance, como podemos ver na Figura 2. Em outros, principalmente quando observa e capta as imagens de figuras em movimento, a rapidez e a agilidade dos seus gestos e dos seus traços preserva a essência daquilo que se viu e viveu, e que reaparecerá nas futuras imagens que serão gravadas. De acordo com o próprio artista "O desenho constantemente resulta como fonte e possibilidade de encontro, de descoberta, tanto das minhas experiências vividas com as festas populares, quanto como exercício sensorial e cognitivo com a linguagem visual" (Damas, 2013: 50).

 

 

Esses procedimentos e atitudes de Amilton frente ao desenho e ao seu próprio processo de criação nos conecta às ideias de Cecília Salles, quando esta afirma que:

O desenho da criação, portanto, são peças de uma rede de ações, bastante intricada e densa que leva o artista à construção de suas obras. São desenhos de passagem, pois são transitórios; são geradores, pois tem o poder de engendrar formas novas; são móveis, pois são responsáveis pelo desenvolvimento da obra. São atraentes e convidam à pesquisa porque falam do ato criador (Salles, 2006: 117).

Ainda que as anotações plásticas / gráficas de Damas tenham vida própria, ele as considera enquanto anotações e parte de um processo. Segundo ele:

Refletir acerca dessa dimensão do desenho de criação é considerá-lo como desencadeador de uma potencialidade mútua, pré-existente ao enlace com a obra acabada, contida no pensamento e no registro momentâneo da criação plástica (Damas, 2013: 50).

Podemos perceber na Figura 3 e na Figura 4 as marcas das ferramentas, os sulcos abertos com materiais que diferem dos tradicionais. A textura criada na madeira, a largura das linhas/formas que marcam a madeira provêm de algo mais agressivo, cortante, forte. Sendo conhecedor do artista, fico imaginando seu corpo franzino no embate com estes instrumentos e materiais. Há um esforço, uma entrega no seu fazer, no seu criar que confere à produção e ao artista uma dimensão transformadora. É quando se transforma a matéria em arte, sendo que este processo também o transforma. Nas palavras do próprio Amilton podemos perceber que:

As primeiras gravuras dessas séries se constituem em cortes e sulcos abertos com o instrumento convencional tipo goivas. Percebi que, com o aumento da dimensão, o instrumental persistia como vício da gravura em pequeno formato. Logo, nas gravuras seguintes reforcei o instrumental com formão de marceneiro para corresponder às necessidades postas pela gravura em grande formato (Damas, 2012: 65)

 

 

 

 

Essa sua fala nos faz perceber esse sentimento de entrega, dedicação, de pesquisa. Amilton é um investigador nato; sempre esta buscando pela melhor maneira de dizer, aquilo que tem a dizer. Estar atento ao seu processo, o faz atentar também para a vida e para aqueles que estão à sua volta. Como o próprio artista nos assinala que o contato e as anotações feitas ao longo do seu processo de criação " possibilitaram não somente um melhor entendimento das manifestações, como também uma aproximação maior das relações entre o humano e o divino que movem as festas em si e, no meu caso, como parte do próprio fazer artístico. Compreendo que essa confluência de festas / desenhos / falas se reflete plenamente na práxis das gravuras (Damas, 2013: 23).

 

Considerações Finais

Ao revisitar este percurso e fazer esta incursão pela obra do Amilton vou me dando conta do quanto os materiais que sempre serviram para sua produção foram materiais alternativos. As matrizes das suas gravuras são realizadas com pedaços quaisquer de madeira, caixotes, portas, janelas, gavetas ou borrachas que estavam disponíveis para suas experimentações. Amilton consegue dar vida a estes materiais que há muito tempo perderam a vida, isto é, ressignifica os materiais e sua vida, por meio do seu fazer. Outro ponto interessante na sua produção é a organização, o cuidado que dispensa para com os materiais, os suportes, os arquivos. Amilton, guarda todas as suas matrizes, exceto uma "O Tear da fábrica de tapetes Santa Helena" que me confessou, não saber onde tinha ido parar. O próprio álbum, onde arquiva suas fotos/ registros, demonstra como vem construindo sua carreira. Organizando coerentemente, consciente do próprio processo em que está envolvido, Amilton nos mostra que o encontro e a escolha da arte na sua vida é algo determinante e decisivo. Este cuidado e dedicação pode ser visto no arquivo que faz, incluindo as fotos que documentam suas primeiras exposições, as intervenções como educador, o processo de trabalho como artista e suas idas e participações em salões de arte. Este fato/ arquivo evidencia para nós o seu processo, e o coloca em contato com a produção contemporânea, contribuindo assim para a sua formação, que vai se estruturando de forma intensa e silenciosa, conectada com o mundo e consigo mesmo.

 

Referências

Damas, Amilton (2013) Festas populares Paulistas: Impressões xilográficas. Campinas: Insituto de Artes / UNICAMP/ SP, dissertação de Mestrado.         [ Links ]

Salles, Cecilia Almeida. (2006) .Redes da Criação: Construção da Obra de Arte. Vinhedo: Editora Horizonte, ISBN: 978-85-992-7906-9        [ Links ]

Zorzo, Francisco Antônio. (2007) Procedimentos Visuais: Alguns problemas do desenho Contemporâneo. Curitiba: Graphica. [Consult. 2010-04-06] Disponível em: http://www.exatas.ufpr.br/portal/docs_degraf/artigos_graphica/Procedimentos.pdf        [ Links ]

 

Artigo completo enviado a 26 de janeiro e aprovado a 31 de janeiro 2014

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: roliv1@gmail.com (Ronaldo Oliveira)

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