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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.5 no.10 Lisboa dez. 2014

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

Sinval Garcia e os fluxos incessantes em Samsara

Sinval Garcia and incessant flows in Samsara

 

Cinthya Marques do Nascimento* & Orlando Franco Maneschy**

 

*Brasil, Fotógrafa e Pesquisadora. Licenciatura em Artes Visuais pela universidade Federal do Pará e Bacharelado em Artes Visuais pela mesma universidade.

AFILIAÇÃO: Universidade Federal do Pará, Instituto de Ciências da Arte (ICA/UFPA) Av. Presidente Vargas, S/N, Praça da República – Belém – Pará, CEP: 66017-060, Brasil.

**Artista Visual, Curador independente e professor pesquisador Programa de Pós-Graduação em Artes do Instituto de Ciências da Arte da universidade Federal do Pará (ICA/uFPA)

AFILIAÇÃO: Universidade Federal do Pará, Instituto de Ciências da Arte (ICA/UFPA) Av. Presidente Vargas, S/N, Praça da República – Belém – Pará, CEP: 66017-060, Brasil.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

Sinval Garcia (1966-2011) desenvolve a série Samsara (1997) buscando discutir os limites entre as relações do ciclo de vida e morte, tendo como vetor o corpo e suas representações na arte, utilizando as perspectivas da fotografia manipulada para relacionar conceitos sobre arte/vida por meio de intervenções pictóricas empregadas na fotografia para constituir cenas e personagens com seus dramas particulares.

Palavras-chave: Sinval Garcia / vida/arte / transcendência.

 

ABSTRACT

Sinval Garcia (1966-2011) develops the Samsara (1997) series attempting to discuss the limits of the relationship between life and death cycle, as a vector having the body and its representations in art, using the perspectives of manipulated photography to relate concepts about art / life through pictorial interventions to be employed in the photograph scenes and characters with their private dramas.

Keywords: Sinval Garcia / life/art / transcendence.

 

A ciência supõe a fé perceptiva e não a esclarece.
– Maurice Merleau-Ponty

 

Introdução

Quando a arte propõe uma reflexão do mundo é possível perceber quais os limites entre vida, percepção e relações de transcendência, a partir do momento em que se adentra o estado de percepção sobre o outro e seu universo simbólico. O artista paulistano Sinval Garcia (1966-2011) desenvolveu rica obra artística que discute essas percepções entre arte e transcendência durante a construção da série Samsara (1997), tendo parte significativa de sua produção autoral produzida durante a década de 1990 e os anos 2000, período em que viveu em Belém do Pará, no norte do Brasil. Este projeto artístico constitui-se no interstício entre a fotografia e pintura, destacando reflexões acerca da representação, dos limites entre linguagens, bem como deflagra questionamentos sobre o lugar da imagem na cultura visual, amplificando discussões sobre corpo e imagem ao longo da história da arte.

As reflexões sobre os limites entre fotografia e pintura são os temas norteadores para um estudo sobre a obra de Sinval Garcia. Entre os seus conteúdos de observação estão composições que transitam entre o exercício do artista sobre um suporte fotográfico manipulável e direcionado para um resultado pré-estabelecido, que transformava suas experiências em expressivas realizações foto-pictóricas. e propõem relacionar uma reflexão do mundo sobre o termo que cede nome à exposição, em que os limites das percepções humanas estão sendo descobertos em experiências sensíveis, e as fotografias discutem o percurso da vida em imagens em que o corpo, com suas tensões e desejos são trabalhados de forma intensa.

Sinval Garcia expõe pela primeira vez em Belém na Galeria Theodoro Braga, no subsolo da Fundação Cultural do Pará Tancredo Neves (CENTUR, Belém/PA). A proposta busca desenvolver um trabalho fotográfico que revele as múltiplas instâncias das experiências humanas, a partir do estudo de "deuses" e "demônios" que influenciam os ciclos do Samsara, re-significado, por meio da imagem o conceito que cede nome à exposição, cuja origem vem do sânscrito e significa o ciclo contínuo da vida e da morte para várias filosofias presentes na índia, como o Hinduísmo, o Budismo, etc. O desenvolvimento do Samsara acontece durante os sucessivos renascimentos da alma humana, englobando todos os ciclos do renascimento do "indivíduo" e sua alma, que dependendo de como o sujeito constitui seu percurso, pode torna-se uma "prisão", um Karma, após os ciclos incessantes de renascimento.

Na obra de Sinval Garcia a leitura da alma é proposta com a presença da figura humana em diversas perspectivas e posições, revelando emoções e angústias ressaltadas ao longo do processo, em cada escolha do modelo que irá fotografar, na construção da luz para a fotografia, na direção das poses e expressões, bem como no trabalho posterior, em que o artista desencadeava um processo de intervenções que destaca as noções de luz e sombra, dentro e fora do laboratório fotográfico, para, a partir daí, utilizar-se da pintura, evidenciando detalhes, sombreando áreas e modificando essas imagens, dialogando com referências da história da arte e pensando o corpo humano e seu lugar no mundo (Figura 1).

 

 

A fenomenologia pode ser uma abordagem para este estudo da obra do artista Sinval Garcia ao discutir a série Samsara. Ao mergulharmos nos processos constitutivos das escolhas de modelos e das "representações" com as quais o artista desejava dialogar, observamos que este instaura um campo sutil de referências articuladas que atravessam desde a escolha dos tipos, com suas características físicas, passando pela iconografia da história da arte e da fotografia, estabelecendo um território pulsante entre o pensamento e a forma, rico em suas complexidades.

Sinval Garcia transformava seus personagens em criaturas que extrapolavam sua imaginação. O criador proporcionava vida a densos personagens, gerando imagens para aludir sensações, emoções e passagens presentes na vida e também na morte, e que se manifestam no hinduístmo e no budismo, dentro de sua interpretação do Samsara. Dessa forma o artista amplia a discussão sobre transcendência, por meio da imagem, constituindo um discurso com o qual articula das noções de um pensamento que vai do existencial ao transcendente, elaborando relações por meio da presença da figura humana para falar de estados d'alma, aquela que está sempre à procura do sentido de seu lugar no mundo e em busca de sua própria existência.

As manipulações que Sinval Garcia propõe na busca do resultado fotográfico em seu trabalho estão diretamente relacionadas com a Pintura, seja no uso dos químicos no laboratório, seja quando intervém pictoricamente sobre suas cópias após o processo de manipulação laboratorial das cópias fotográficas. Essas relações são evidenciadas nas exposições que o artista realiza ao desenvolver as duas técnicas, naturalmente atravessando possíveis limites entre Fotografia e Pintura. Dessa forma constrói imagens através de desconstruções, em um processo contínuo de experimentação.

Em seus processos o artista trabalha cada imagem fazendo com que o observador não consiga distinguir os limites entre a Fotografia e a Pintura, revelando um campo presente no interstício das linguagens, que ultrapassa o lugar da técnica, reportando-se a uma história da imagem na cultura.

 

1. Sobre o corpo pictórico como local do espírito

Sinval Garcia oferece o corpo das suas fotografias para o mundo de Samsara, um universo repleto de imagens e imaginação. Para construir este ambiente o artista contextualiza através das fotografias os ciclos de vida e morte em matéria do visível, construindo possibilidades de visualidades para os corpos que fotografa. Ao intervir pictoricamente sobre os retratos, o artista rompe com o dado de real, destaca expressões para que seus personagens estejam em um lugar além do humano. Merleau-Ponty afirma no texto O Olho e o Espírito que "... o pintor, qualquer que seja, enquanto pinta, pratica uma teoria mágica da visão." (Merleau-Ponty, 1964)

A busca pelo que está imerso nos sentimentos é articulada pela pintura, destes corpos em preto e branco que ganham, cor pela pintura na série Samsara, parece-nos dar pistas de que a fotografia em película preto e branco pertence ao mundo do imaginário apesar de sua aparência real (Figura 2). Com cores se constrói o mundo e a natureza, e ao inserir tinta colorida nas imagens impressas Sinval Garcia constrói outro mundo, um lugar em que a espiritualidade se torna cognitiva, no sentido de permanecer além do que é vivo e aquém do que os olhos conseguem ver. Dessa forma evidencia se que o gesto de olhar é um ato físico, mas a possibilidade de ver exige cognição dos atos do sensitivo.

Talvez agora se perceba melhor todo o alcance dessa pequena palavra: ver. A visão não é um certo modo do pensamento ou presença a si: é o meio que me é dado de estar ausente de mim mesmo, de assistir por dentro á fissão do ser, término da qual somente me fecho sobre mim. (Merleau-Ponty, 1964)

 

 

Para construir a realidade fantasiosa de Samsara, Garcia precisou observar o mundo além da sua visibilidade, e ao construir suas fotografias manipula a realidade em prol da construção de um universo complexo que rege. Para poder reconhecer que a visão é um espelho, mas não do real, e sim reflexo de seu universo imaginário. Para tal é paradoxal perceber que o visível no sentido profano cria suas premissas para recriar uma visibilidade e liberar os rostos e corpos presentes em Samsara. A construção de fotografias com figuras humanas oferece a Sinval Garcia uma possiblidade de autonomia maior sobre o ato criador, no que tange o sentido de revelação desses corpos e rostos, permanentes na matéria do sensível.

O visível no sentido profano esquece suas premissas, repousa sobre uma visibilidade inteira a ser recriada, e que libera os fantasmas nele cativos. Os modernos, como se sabe, liberaram muitos outros, acrescentaram muitas notas surdas à gama oficial de nossos meios de ver. Mas a interrogação da pintura visa, em todo caso, essa gênese secreta e febril das coisas em nosso corpo. (Merleau-Ponty, 1964)

Para refletir o homem é necessário observar o seu reflexo e espelhar uma possível projeção de "realidade" em que o seu corpo é substância para o corpo do outro, dos personagens de Samsara, com todas suas cargas de paixões, medos, desejos e aspectos de transcendência presentes no ciclo da vida e morte. Ao construir as imagens Sinval Garcia as insere no lugar do intermediário daquele que olha: estar morto ou vivo é uma prerrogativa que intercepta os dois lados do ciclo de Samsara. As imagens aludem ao permanecer em contínua transição sobre diversos aspectos da existência (Figura 3).

 

 

 

Conclusão

O corpo é aquilo que o torna visível, no sentido de estar no mundo, para ser visto, e o pintor oferece seu corpo para transformar o mundo em pintura, porque o corpo é vidente e visível, ele se olha, se vê é visível e sensível para si mesmo. Fotografia e Pintura constituem os interstícios presentes nesta série, e Samsara é visualizada a partir da constituição de retratos com os quais Sinval Garcia procurava investigar a alma humana.

Discutir sobre as diferenças entre pintura e fotografia não é o que interessa aqui: cabe falar a respeito das interseções existentes entre as duas técnicas na obra do artista, que experimenta na exposição Samsara (1997) um caminho em suas experimentações para uma relação maior com a imagem do que com o índice da técnica fotográfica.

Observar as relações em Samsara permite analisar o contexto em que faz uso da linguagem como forma de expressão, e perceber a discussão dos limites da manipulação entre fotografia e pintura, no que tange a manipulação do aparelho fotográfico e suas experimentações que resultam em obras potenciais para a observação e análise. Sua produção artística revela um atento pesquisador, instigado pela arte que busca esgarçar os limites da fotografia enquanto linguagem, desenvolvendo pesquisas extensas sobre a imagem e a representação, constituindo uma obra cuja beleza não se encontra apenas nas imagens, mas na conduta séria, dedicada. Garcia constituía por meio da fotografia um espaço de pensamento e de conduta, que se desdobrou entre sua arte e sua vida. Um artista numa busca contínua que deixa um legado para pensarmos o papel da fotografia no mundo contemporâneo. Nesse fluxo do tempo, em que seguir não é permanecer no mesmo lugar, o olhar acompanha os ciclos de Samsara. Sinval Garcia talvez não saiba, mas existem traços de transcendência em sua obra, no reflexo desse corpo, aquele que está em constante mutação, figura o seu próprio caminho em busca da eternidade.

 

Referências

Maneschy, Orlando (2007) Sequestros: Imagem na arte contemporânea paraense. Belém, PA: Edufpa. ISBN 978-85-247-0405-5.         [ Links ]

Merleau-Ponty, M. (2004) O olho e o espírito. São Paulo: Cosac Naify. ISBN 978-85-405-0354-0        [ Links ]

Oliveira, Adelaide (2012) magens do corpo e da sensualidade na arte contemporânea paraense: o erotismo masculino nas fotografias de Sinval Garcia e Orlando Maneschy. Universidade Federal do Pará: Mestrado Acadêmico.

 

Artigo completo submetido a 7 de setembro e aprovado a 23 de setembro de 2014

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: cinthyamnascimento@gmail.com

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