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Revista :Estúdio
versão impressa ISSN 1647-6158
Estúdio vol.5 no.10 Lisboa dez. 2014
DOSSIER: ARTIGOS ORIGINAIS POR AUTORES CONVIDADOS
DOSSIER: INVITED ORIGINAL ARTICLES
Do Céu aos Céus: Rui Macedo
From heaven to heavens: Rui Macedo
Margarida P. Prieto*
*Par académico da Estúdio. Artista visual e coordenadora da licenciatura em Artes Plásticas da universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias. Membro do CIEBA.
AFILIAÇÃO: Portugal, Universidade de Lisboa, Faculdade de Belas-Artes, Centro de Investigação e Estudos de Belas-Artes. 1249-058 Lisboa, Portugal.
RESUMO:
Este artigo incide sobre o trabalho pictórico de Rui Macedo, nomeadamente a série que representa céus para, a partir da sua análise, convocar as práticas criativas de comunicação do Homem com o(s) seu(s) Deus(es).
Palavras-chave: pintura / céus / ecrã / Deus.
ABSTRACT
A series of paintings about the sky by the author Rui Macedo is the example taken in this article to speak about God in relation to Human kind and creativity.
Keywords: painting / sky / screen / God.
Introdução
A pretexto do tema "Deus" e da sua relação com as artes visuais, nomeadamente com a pintura, apresenta-se um conjunto de obras realizadas por Rui Macedo (Évora, 1975) na primeira década deste século, cuja temática é o céu. Do céu, como espaço divino, aos céus da pintura de paisagens, é traçado um caminho, que se quer esclarecedor, sobre a importância e consequências da relação entre Deus e os Homens.
O artista português Rui Macedo tem formação académica em Pintura e, frequenta o Doutoramento na mesma área da Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. Desde 2000 tem realizado exposições em território nacional e internacional, dedicando-se em exclusivo à pintura numa relação de instalação em espaços de carácter museológico.
1. Do céu aos céus
Pensar "Deus" é evocar a necessária e imprescindível relação que a Humanidade estabelece com o Mundo, na sua origem.
"Deus" é o incompreensível, o imensurável, o infinitamente longínquo e inacessível do Mundo. "Deus" é a instância outra (divina) na qual se projectam os desejos, as ambições e as expectativas. "Deus" é a expressão pela qual cada Homem abre a possibilidade de se exceder, ou seja, "Deus" é o modo como, em cada expectativa, se pode exceder a expectativa.
Neste sentido, e enquanto relação com o Mundo, é através de "Deus" que o Homem se humaniza e civiliza, que progride em direcção a um ideal implicado no próprio conceito de Humanidade. O Homem é mais humano porque existe(m) Deus(es). Não se trata, pois, de uma separação efectiva entre Deus e Homem – justamente, "Deus" é uma criação humana – onde se opõem, entre outras, as clássicas dicotomias divino/humano, céu/terra, religioso/profano. Pelo contrário, "Deus" implica uma convergência em direcção à confiança imprescindível no outro, confiança que tem no seu horizonte, como fundamento e consequência, o tornar-se exemplo de Humanidade, de se exceder para "melhor" no sentido que o termo assume enquanto potência. A palavra "fé" contém, de resto e na sua origem, esta potência do Homem: ter fé é ter confiança no outro (Nancy, 2009: 28), é acreditar que a Humanidade pode exceder-se (sempre).
Se se tomar, como exemplo, as três religiões monoteístas, esta fé no outro é expressa, para os judeus, por um Deus que conhece a justa dimensão de cada um naquilo que mais profunda e fundamentalmente individua, singulariza e abre à possibilidade de relação com os outros e o mundo. Para os islamitas, Deus é Misericordioso, aquele que reconhece a pequenez e fragilidade dos homens e, simultaneamente, lhes dá a oportunidade de se elevarem e dignificarem. Para os cristãos, Deus é expressão do Amor como aquilo que o outro tem de próprio e absolutamente único, aquilo que o leva a ser amado (Nancy, 2009: 25-26).
Para estabelecer uma relação com Deus, o imaginário humano colocou-o no Céu. O Céu é, pois, um lugar que se assume como o de todos os lugares. É um lugar plural, passando a sua terminologia a ser, também, plural: os Céus. E este plural desenvolveu uma imagética própria, literalmente, hierarquizando a sua representação pictórica em planos celestes, separados e justapostos, que relevam do mais elevado dos céus. Por outro lado, "os céus" – sublinha-se o plural – é uma expressão empregue para descrever as representações da atmosfera na Pintura. Termo que veio em substituição de outro, mais antigo: "os longes" (por oposição aos "pertos") e que denominou o que se representava no fundo, no último plano da composição pictórica, aquele, mais afastado do plano primeiro que, por sua vez, seria o mais aproximado, em termos de escala de representação, ao observador e ao real. Esta denominação é de ordem simbólica e mostra como a linguagem persegue o imaginário que irrompe daquele céu plural e estratificado.
É, a meu ver, pela observação dos céus pintados nas composições de vocação paisagística que se torna, paradoxalmente, mais acessível a compreensão do conceito de ubiquidade, inerente ao lugar que é todos os lugares – porque Deus está em toda a parte ao mesmo tempo. As representações do azul sem fundo, das nuvens, das trovoadas, do nascer e do desvanecer da luz oferecida pelos astros, conduzem o olhar em direcção ao horizonte pictórico – ficcional por definição e, quase sempre marcado pela linha de terra –, rumo ao infinitamente distante, à amplidão imensurável. Pela representação destes fenómenos atmosféricos potencia-se um imaginário que carrega as imagens pintadas com sugestões – sugestões da potência que é esse Deus enquanto natura naturans, quer dizer, como força que faz nascer e morrer. Precisamente, este termo latino remete para a época em que a Natureza era tida como a espantosa manifestação do poder divino. São os artistas visuais que, por sua vez, garantem visibilidade a este imaginário nascido da observação das manifestações da natureza (onde se inclui o céu), convertendo as imagens mentais em imagens da percepção através do seu fazer pintura. Este fazer é da ordem da natura naturans, tornando a pintura natura naturata, ou seja, a pintura enquanto coisa feita, factum est, expressão dessa força implicada no fazer da obra.
2. Uma análise sobre as relações arcaicas entre o homem e o Céu
Em termos simbólicos, o Céu é uma abertura: espaço de comunicação e nomeação que põe em relação e contacto os Homens e o(s) seus Deus(es). Torna-se veículo das mensagens divinas tendo, como intermediários, os adivinhos que o olham como uma tela de comunicação entre o visível e o invisível. O céu, como espaço mágico da adivinhação, é o ecrã primitivo. É espaço de interpretação que deriva de um exame ao visível e ao real. É espaço de nomeação, na medida em que confere existência linguística: as relações mais arcaicas entre imagem e linguagem articulam sempre a palavra com o céu. "A linguagem é um segredo que contém em si, mas à superfície, as marcas decifráveis daquilo que pretende significar. É a um tempo revelação subterrânea e revelação que a pouco e pouco se estabelece numa claridade ascendente" (Foucault, 1966:91). O trabalho do adivinho é observar os acontecimentos do espaço celeste, como o voo dos pássaros e o movimento das estrelas, e interpretar essas manifestações visíveis como expressão do invisível. O estatuto particular dos adivinhos revém do monopólio dos códigos que permitem decifrar e traduzir as mensagens do plano do invisível para o do visível. Justamente, o(s) Deus(es) não se expressa(m) num idioma diferente do dos homens; (apenas) recorre(m) a formulas encriptadas, às quais só os adivinhos acedem como seus (únicos) tradutores, a partir de um raciocínio por analogia, de onde retiram as suas considerações. "Considerar" é um termo cuja raiz é comum aos termos "legível" e "visível". Deriva do latino "considerare" que se divide em "cum" e "sideris" que, no plural, designa as estrelas em constelação no espaço celestial.
Contudo, como espaço observável, o céu está abandonado pelo(s) deus(es) e, por isso, é tornado propriedade dos homens, produto do seu olhar e território de exercício (Christin, 1995: 226). Assume-se, assim, como superfície de planificação, plataforma de raciocínio: torna-se a base estrutural da astronomia, da geometria e da cartografia, mostrando-se como superfície de inteligibilidade que serve para a compreensão do mundo. "Céu" torna-se um conceito de apropriação abstracta do mundo e, também, um limite, na medida em que estabelece um vínculo com a actividade imaginada que se encontra "para lá" de si e, nesta passagem (entre planos ou estratificações celestiais), oferece-se como superfície mágica e medium para as mudanças ou transformações entre a vida e a morte.
3. Dos aviões de papel sobre céus sem fim
Na pintura, a transparência infinita do céu é sugerida com a aplicação de velaturas de azul (ou azuis). Esta percepção (dos vários planos de representação e do vazio que os distingue e separa) acontece porque o sistema de percepção humano tem necessidade de atribuir sentido ao que percepciona com base na sua experiência vivencial do tempo e do espaço numa relação de afinidade com o real (uma necessidade que é prioritária). Justamente, em termos científicos, o azul do céu atmosférico é a reacção do sistema visual humano à luz que é difractada enquanto passa por um medium transparente ou translúcido (como é o caso da atmosfera). Em vez de ser absorvida, a energia desta luz erradia e choca com as pequenas partículas de matéria constituintes da densidade do ar. Assim, o dia é luminoso porque há difração da luz do sol na atmosfera. Sem atmosfera o céu seria tão escuro como é na lua. Por isso, a cor azul é uma consequência directa dos comprimentos de onda mais curtos que são os que mais se espraiam contra as partículas de matéria e predominam na luz que nos chega do céu, tornando-o celeste (Bruce, 1996: 5).
Os céus celestes de Rui Macedo conjugam a representação rigorosa de, por exemplo, miras (Figura 1) que, assim convertem a superfície pictórica num ecrã de projecção ou fazem do suporte rectangular o enquadramento do dispositivo de visualização do real remetendo, de imediato, para os instrumentos científicos e tecnológicos cuja função escópica permite o Homem ver melhor: ver mais longe (telescópio), ver mais perto (microscópio), ver mais dentro (estetoscópio). Perante estas pinturas, o olhar do observador repete o deslumbre de origem: continua ca(p)tivo pelo espaço celeste considerando-o representação de uma composição criada por Deus. As consequências desta contemplação derivam de dois modos distintos: olhar e ver. No idioma português, estes verbos podem ser usados como sinónimos mas, em rigor, têm acções diferentes. Olhar é um observar atento da ordem da contemplação onde o exercer do sentido da visão é estático e procura um prazer estético. Ver é usar o sistema visual para compreender o visível que se estabelece como real, implica transitividade na medida em que retira conclusões da coisa observada: ver é uma modalidade que participa num raciocínio, enquanto olhar é uma procura que deseja o belo. Se o trabalho do pintor concilia estas duas modalidades então o trabalho do observador é exercitá-las perante o objecto pictórico.
Também as janelas abertas (Figura 2) se disponibilizam como passagens onde o espaço celeste se oferece como superfície mágica e medium para as mudanças ou transformações entre a vida e a morte. Este céu pintado equaciona o visível próprio e imprescindível da pintura com o invisível dos conceitos da matemática e da geometria, e demonstra como a criatividade humana se potencia e estimula pela observação directa do espaço celeste. Precisamente porque o visível se pode definir como o que remete para o modo (geral e espectacular) do aparecer. O visível é revelação; e a sua eficácia está garantida pela capacidade de atracção, no efeito de enigma suscitado pela novidade pura.
Habitado por origamis (Figura 3 e Figura 4), o céu de Rui Macedo, alude ao sonho ancestral imortalizado no mito de Ícaro: o desejo de voar. Na composição, os aviões de papel estão representados a várias escalas para iludir o seu voo em profundidade, em direcção ao infinitamente distante. O seu desenho mostra o rigor da linha recta (representação do vinco) e os triângulos transformam a superfície lisa e plana da folha em objecto tridimensional e aerodinâmica. Neste movimento construtivo – que é um jogo de infância –, a geometria emerge e mergulha na profundidade atmosférica, devolvendo a(os) Deus(es) o que nos ofereceram, num atributo agradecido. O céu é o lugar do voo e, nesse voo, o Homem excede as suas capacidades naturais: ultrapassa-se e expande em direcção ao infinitamente azul.
Referências
Bruce, Vicky, Green, Patrick R., Georgeson, Mark A. (1996), Visual Perception: Physiology, Psychology, and Ecology. U.K.: Psychology Press(3ª ed.), p. 5. [ Links ]
Christin, Anne-Marie, (1995, 1º ed.), L'image écrite ou la déraison graphique. Paris: Editions Flammarion, col. Idées et Recherche. [ Links ]
Nancy, Jean-Luc (2009), Dieu, La justice, L'amour, La beuté: Quatre petites conference. Montrouge: Bayard. [ Links ]
Foucault, Michel, (1ª ed., 1966), As palavras e as coisas. Uma Arqueologia da Ciências Humanas, trad. António Ramos Rosa. Lisboa: ed. 70. [ Links ]
Artigo completo recebido a 7 de setembro e aprovado a 23 de setembro de 2014
Correio eletrónico: emam.margaridaprieto@gmail.com