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Revista :Estúdio
versão impressa ISSN 1647-6158
Estúdio vol.6 no.11 Lisboa jun. 2015
ARTIGOS ORIGINAIS
ORIGINAL ARTICLES
Ruth Sousa e as lembranças inventadas: a arte como promessa de algo melhor?
Ruth Sousa and the invented memory. Art as a promise of something better
Eduardo Figueiredo Vieira da Cunha*
*Artista visual. Graduação em Artes Visuais (IA-UFRGS 1982), Master of Fine Arts MFA (City University of New York,1990), Doutorado em Artes e Ciências da Arte (Université de Paris-1— Panthéon-Sorbonne, 2001).
AFILIAÇÃO: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Artes, Departamento de Artes Visuais, Programa de Pos-graduacao em Artes Visuais Av. Independencia 98/704 CEP 90035070 Porto Alegre RS Brasil.
RESUMO:
O artigo trata da poética de Ruth Sousa (Brasil, 1968) que através da criação de uma empresa fictícia propõe-se a atender desejos. Trataremos da relação entre arte e desejo, da fotografia como ficção e da inserção de práticas artísticas no quotidiano. Como possível conclusão, faremos uma relação do trabalho de Sousa com a questão proposta por Jeff Wall que, relendo Stendhal, vê a arte como promessa de algo melhor.
Palavras-chave: Fotografia / ficção / desejo / mimetismos.
ABSTRACT:
This article surveys the work of Ruth Sousa (Brazil, 1968) that, through the creation of a fictitious company aims to attempt desires. The text speaks about a link between art and desire, of photography and fiction and the insertion of other art practices in the real world. As a possible conclusion, we establish a relation of Sousa goals and a matter proposed by Jeff Wall that, reading Stendhal, face he art as a promise of something better.
Keywords: photography / fiction / desire / mimesis.
Introdução
Comparando o resultado plástico do trabalho de Ruth Sousa com seu discurso manifestado em textos e em entrevista, onde a artista apresenta os motivos que a levaram à criação de um sitio da internet destinado a atender a desejos de quem a solicitar e a fabricar acontecimentos impossíveis, pretende-se utilizar uma metodologia dialética para discorrer sobre questões que envolvem o mimetismo, a camuflagem, o simulacro, a criação de duplos de substituição e o desejo nas artes visuais. Passaremos por outros artistas que se utilizam dos mesmos princípios, estratégias e conceitos operatórios presentes em Sousa para procurar ver onde elementos como verdade e ficção, mimese e simulacro, semelhança e construção artificial se confundem através dos movimentos do desejo na criação artística. O objetivo desta reflexão seria o de aproximar estes desejos ao objetivo da arte proposto Stendhal, reproduzida por Baudelaire em O Pintor da Vida Moderna e retomado posteriormente por Jeff Wall (Wall, 1983): “a arte não é senão a promessa da felicidade”. O desejo de Sousa não seria o de prometer algo melhor, de oferecer um estado de espírito que tem a felicidade como fim, onde o conceito de promessa, cumprida ou eternamente adiada, estaria sempre presente através das possibilidades da fotografia?
Nascida em Brasília, Distrito Federal, Ruth Sousa é uma artista visual que, para a realização deste trabalho denominado Made-up memories corp escolheu a fotografia como linguagem, embora ela trabalhe com outros elementos como o discurso, além da web. De qualquer forma, a presente análise foi feita a partir de uma série fotográfica exposta na pinacoteca Barão de Santo Ângelo, em Porto Alegre, como resultado final do trabalho, em 2013, ano em que a artista apresentou sua tese de doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil. O presente artigo recorre a referências bibliográficas que incluem a da tese de Sousa (Sousa, 2013), além de um artigo de Thierry de Duve publicado na coletânea La confusión de los géneros en fotografia (Picaudé/Arbaizar, 2001) e de Formless, mode d’employ, de Rossalind Krauss e Yve-Allan Bois (Bois e Krauss, 1997) um artigo de Roger Callois, Mimetismo e Psicatenia Legendária (Callois, 1986), e O Efeito Pigmalião, de Victor Stoichita (Stoichita, 2011).
1. Mimetisando futuro e passado
A arte imita a vida, que imita a arte. Rossalind Krauss já se referira a este exemplo de mimetismo entre arte e vida em um texto sobre a entropia, relacionando a segunda lei da termodinâmica com os estudos sobre o mimetismo realizados por Roger Callois (Krauss, 1997). As estratégias de dissolução de limites e fronteiras entre figura e fundo, entre realidade e ficção, podem ser relacionadas ao fenômeno mimético, utilizado pelos animais e plantas ora para se defender, ora para atacar um inimigo, onde a intenção de produzir um efeito de semelhança serve para confundir o olhar, se infiltrar ou passar desapercebido. Ruth Sousa utiliza-se deste mesmo princípio mas de início parece não buscar defesa ou ataque. Seu www.made-up memories corp. é bem claro em objetivos: um protocolo para criar lembranças inventadas.
Sousa conta que começou a se interessar em utilizar-se do procedimento de “procurar ouvir histórias, desejos frustrações, situações que queria algum ter vivido, e nunca vivera” (Sousa, 2013) desde seus estudos de Mestrado. Mimetizando-se ora de psicanalista, ora de vidente, a artista diz que sempre teve a vocação de ouvir e receber pedidos de desejos. Misturando seu desejo com o desejo de quem a solicita, em um efeito de espelhos e duplos (Stoichita, 2012), Sousa cria uma obra baseada nessa reconstrução de acontecimentos almejados.
Teoricamente, a artista afirma que absorve um modelo descrito por Cauquelin (Cauquelin, 2005): o de imitar a vida, mais especificamente a vida dos negócios, levando às últimas consequências um processo que, em arte, começaria com a imitação à natureza. A artista aponta para uma sutil diferença com o processo que Duchamp utilizara ao selecionar objetos do mundo de negócios para transformá-los em objetos artísticos. Para Sousa, seu trabalho consiste em “confeccionar objetos que reconstroem um acontecimento, tornando-o crível para as outras pessoas” (Sousa, 2013). Há, pois, além da descrição do relato por parte do interessado, uma seleção e confecção de objetos físicos que se justapõe às imagens.
Se formos analisar somente o trabalho final da artista, exposto em galerias, veremos uma sobreposição de temporalidades: o passado do relato e das fotografias, o presente dos objetos confeccionados e ou selecionados como evidência pela artista, e o futuro do passado, apontado pela da descrição da confecção do acontecimento impossível.
Os desejos de transformação e substituição
Ao anunciar que atende desejos e fabrica acontecimentos antes nunca realizados (Figura 1), Sousa recebe através do sítio pedidos tanto em forma de texto como relatos em vídeo. As respostas são selecionadas através de critérios não apresentados. A partir daí, a artista começa seu trabalho em buscas de objetos e fotografias antigas em mercados de pulga. Há um “diário de obra” que acompanha com anotações os passos do processo, como uma narrativa ficcional. A história do desejo é repassada através da sua concretização no processo, como uma reinvenção do passado transformado, moldado e acompanhado com um relatório de obra.
O mecanismo deste “sítio de desejos”, como uma ilha da fantasia, começa com a proposta de um jogo que, sem regras muito estabelecidas, se engajam artista e publico. A artista lembra da estratégia do jogo de xadrez onde o sacrifício de uma peça pode representar uma abdicação momentânea, mas significa uma aceitação como parte do todo do processo. Segundo a artista, está implícito o blefe, a falsificação, e a camuflagem para chegar a um resultado final.
O sitio apresenta paralelamente um histórico de pedidos já atendidos, que se transformaram em trabalhos. No de número 39, o pedido é o de “possuir uma criança inquebrável”. A solicitante anônima conta que ganhou no passado uma boneca de vidro. E que este foi o último presente do pai, que partiu para nunca mais voltar. Ela diz que alimentou, durante muitos anos, a fantasia de que se não quebrasse a boneca, o pai voltaria. Mas ao fazer 15 anos, a boneca se quebrou. E que, quando, adulta, atribuiu o fato de ser incapaz de ter filhos ao acidente da quebra da boneca. O pedido é para “ter uma criança inquebrável, numa carcaça imaginária” (Figura 2).
A partir do relato, Sousa conta que encontrou em uma feira um negativo de vidro onde havia uma mulher com o filho. Diz como acrescentou à foto, colocada em um estojo protetor, um conjunto de ilustrações antigas sobre o sistema reprodutor feminino. Ao conjunto, anexou um certificado de autenticidade de desejo atendido, devidamente registados em cartório.
No pedido número 27, a solicitação é de alguém que sempre teve o desejo de “ser um apicultor”. Este conta que, quando criança no interior do Brasil, viu um homem coberto de abelhas , sem que este sentisse nenhum medo. O solicitante tinha um desejo de estar no lugar do apicultor. A partir da solicitação, a artista junta os seguintes itens que compõe a obra: receptáculos de vidro para mel, resina de pinheiro, um jornal antigo com uma reportagem sobre apicultura, e registros fotográficos variados. E anexa também um certificado de autenticidade devidamente reconhecido em cartório.
Os objetos e fotos produzidos pela Made-up memory corp. segundo a artista “dissolvem a imobilidade e a uniformidade ilusória do passado, para reordenar o tempo e as lembranças”. Souza deixa claro a construção de novas evidências para que a “nova memória” deste novo passado se torne indistinguível de qualquer outra anterior, já vivida. O resultado, ainda segundo a artista, seria a construção de novos passados que seguem o funcionamento psíquico da memória, que “divide e agrupa elementos modifica a ordem dos acontecimentos, intensifica instantes insignificantes temporariamente, porém decisivos emocionalmente” Ela afirma transformar o passado em algo tão dócil e plástico quanto o futuro.
As superficções
As reflexões teóricas da artista não encontram lugar no sitio, mas são acessíveis através de uma pesquisa na web sobre sua tese (Sousa, 2013). Lá, veremos que essa aparente banalidade de proposição possui uma reflexão projetada no trabalho de outros artistas que tem a mesma ótica ficcional de criação de realidades. Ela cita o estudo de Peter Hill que, também em uma tese de doutorado, intitulada Superfictions: the creation of fictional situations in international contemporary art practice estuda outros procedimentos de mimetismo e camuflagem na construção de ficções. O trabalho de Guillaume Bijl e Res Ingold, que cria toda uma infraestrutura física de diversos estabelecimentos como supermercados e escolas é citado, com o objetivo de “transformar as galerias em espaços considerados úteis para a sociedade”(Souza, 2013). Sousa lembra também a criação de uma companhia aérea fictícia dos mesmos artistas, que conta inclusive com uma aeronave própria. Ela cita um “mimetismo morfológico” isto é, passar-se por uma empresa verdadeira mas não o ser. Entretanto, podemos fazer uma distinção deste tipo de proposta de trabalho para o trabalho de Sousa: embora a artista utilize-se deste princípio de mimetismo, a particularidade de seu trabalho é a de reinventar o passado para atender a desejos, elemento que não está presente, pelo menos explicitamente na obra destes demais artistas.
Conclusão
Embora Sousa lembre que prefere mostrar a banalidade na execução da obra ao invés de “decisões conceituais e plásticas complexas que antecedem tais ações” (Sousa, 2013), e de deixar claro que trabalha com o princípio do jogo, ela refere-se à função social do artista que, dotado da palavra, cria um discurso persuasivo capaz não somente de transformar a matéria do objeto, mas de responder ao desejo de criar. Ela cita Paul Audi (Audi, 2012) para falar do compromisso ético e estético do artista, que seria não apenas o de produzir uma obra, mas de instaurar o possível, fazer com que as possibilidades aconteçam: “diante do impossível, cabe ao artista tornar a vida ainda e sempre possível” (Sousa, 2013).
Embora sob o aspecto da clínica psicanalista a proposta de fabricar acontecimentos impossíveis e de atender a desejos seja algo discutível, a função da arte pode sobrepor-se a esses limites éticos de instaurar o possível, fazer com que as possibilidades aconteçam? Essa é a dúvida saudável que apresenta o trabalho de Sousa. Adorno já afirmara que a arte é uma promessa de felicidade, mas uma promessa traiçoeira (Adorno, 1992).
Sousa, entretanto, talvez prefira ficar com a definição de Stendhall, oferecendo através da arte a possibilidade de algo melhor. Mesmo criando falsos passados para satisfazer a desejos. Se os fins justificam os meios, a fotografia aparece aqui como o meio privilegiado para, através das suas possibilidades ilimitadas, reproduzir através do trabalho de Sousa essa promessa que talvez nunca seja cumprida.
Referencias
Adorno, Theodor W. (1992) Teoria Estética. Madrid, Taurus Ediciones. [ Links ]
Audi, Paul (2012) Discours sur la legitimation actuelle de l’artiste. Paris: Editions Les Belles Lettres.
Bois, Yves-Allan e Krauss, Rossalind. (1997). Formless, an user’s guide. New York, Zone Books.
Callois, Roger (1986) Mimetismo e psicastenia. Che Voi? São Paulo, vol 1, numero zero. [ Links ]
Cauquelin, Anne. (2005) Arte contemporânea: uma introdução. São Paulo: Martins Fontes. [ Links ]
Duve, Thierry de. (2004. “Jeff Wall: pintura y fotografia” In: La confusion de los géneros en fotografia. Barcelona, Gustavo Gilli,
Hill, Peter. (s/d) Superfictions. [Consult. 2015-01-02]. Disponível em http://www.superfictions.com [ Links ]
Stoichita, Victor (2012). O Efeito Pigmalião. Para uma antroologia histórica dos simulacros. Lisboa: Imago. [ Links ]
Sousa, Ruth. (2013). Made-um memories corp. Tese apresentada ao Programa de Pós Graduação em Artes Visuais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre. Disponível em http://www.madeupmemoriescorp.br [ Links ]
Wall, Jeff. (1983).”The side of Culture.” Vanguard, maio.
Artigo completo submetido a 7 de janeiro e aprovado a 24 de janeiro 2015
Correio eletrónico: ecunha@cpovo.net