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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.6 no.11 Lisboa jun. 2015

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

Eloísa Cartonera: aproximações entre arte, cultura e processos de criação colaborativos

Eloísa Cartonera: closeness between Art, Culture and Collaborative Processes of Creation

 

Ronaldo Alexandre de Oliveira* & Cândida Alayde de Carvalho Bittencourt**

*Professor universitário e artista visual. Par académico externo desta revista.

AFILIAÇÃO: Universidade Estadual de Londrina, Departamento de Arte Visual. Rodovia Celso Garcia Cid, Pr 445 Km 380, Campus Universitário. Cx. Postal 6001, CEP 86051-990, Londrina — Paraná — Brasil.

**Pesquisador / Arte Educador. Licenciado em Educação Artística — Habilitação em Artes Plásticas.

AFILIAÇÃO: Universidade Estadual de Londrina (UEL), Centro de Educação, Comunicações e Artes (CECA), Departamento de artes Visuais (DAV). Rodovia Celso Garcia Cid. Pr 445 Km 380. Campus Universitário Cx. Postal 10011. CEP 86.057-970. Londrina — PR, Brasil.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

Este artigo apresenta reflexões sobre a produção artística da Cooperativa Cultural Eloísa Cartonera — Buenos Aires/Argentina. Eloísa Cartonera é um projeto que articula um forte cunho social, sendo realizado de forma colaborativa com catadores de papelão e seus filhos na cidade de Buenos Aires. Ao produzir arte nesta dimensão, a cooperativa evidencia questões caras à arte contemporânea, tais como a noção de centro e margem do circuito artístico, o hibridismo, a autoria compartilhada e a produção artística em contexto.

Palavras-chave: autoria compartilhada / arte contextual / arte dialógica / circuito artístico / hibridismo.

 

ABSTRACT:

This article presents approaches on the artistic production of Eloísa Cartonera Cultural Cooperative — Buenos Aires/Argentina. Eloísa Cartonera is a project that articulates a strong social emphasis, being accomplished collaboratively with card board collectors and their children in Buenos Aires. By producing art in this dimension, this cooperative makes evident some aspects that are important to contemporary art, such as the notion of centre and margin of the artistic, hybridism, shared authorship and in context artistic production.

Keywords: Shared authorship / contextual art / dialogical art / art circuit / hybridism.

 

Introdução

Criado em março de 2003 pelo artista plástico Javier Barilaro e pelo escritor Washington Cucurto, o Eloísa Cartonera volta-se para um trabalho com catadores de papelão e seus filhos. Neste projeto artístico/cultural estão envolvidos vários aspectos importantes da arte e também da cultura urbana contemporâneas. Nosso propósito de refletir sobre a produção desta cooperativa surge das contradições presentes no contexto da arte contemporânea em que a produção da cultura e seu consumo são geralmente determinados por um mercado cultural que negligencia as produções que, de alguma maneira, ameaçam, questionam e desconstroem o instituído. Neste sentido, o mercado cultural exerce uma forte influência sobre a produção; é o mercado quem determina se as produções merecem ou não fazer parte de um determinado circuito instituído.

 

1. Desenvolvimento

Na contemporaneidade, estamos vivenciando um processo de repressão e manipulação do processo criativo, em que os ditames da indústria cultural interferem na forma como percebemos o mundo, ou na maneira como o mundo interfere nas nossas percepções. Para Fayga Ostrower, trata-se da alienação do ser humano, ou seja, na contemporaneidade, o homem “aliena-se de si, de seu trabalho, de suas possibilidades, de criar e de realizar em sua vida conteúdos mais humanos” (Ostrower, 2002:6). Cultura e arte concebidas como via de expressão e contestação transformam-se em mercadorias reproduzidas em série designadas de acordo com os interesses do sistema econômico capitalista que passam a ser absorvidas pelos consumidores que se tornam não o sujeito, mas o objeto dessa indústria. Nesse sentido, Adorno , ao anunciar a indústria cultural enquanto prestadora de serviço ao cliente, afirma que “a indústria cultural modela-se pela regressão mimética, pela manipulação de impulsos de imitação recalcados” (Adorno,1985:176). Diante disto, a obra de Eloísa Cartonera, aliada às contribuições filosóficas de Theodor Adorno, Max Horkheimer se constitui indubitavelmente numa bela e fecunda contribuição para se pensar nas relações que se estabelecem entre mercado-consumidor-sociedade e processos de criação. Desta maneira, o processo de criação colaborativa praticada pela cooperativa torna-se um exemplo de se fazer instituir ou legitimar outros modos de se fazer arte, cultura e educação.

O projeto Eloísa Cartonera faz parte de um movimento cultural de editoras que foi se instalando em diversos países e visa, além de produzir os seus livros artesanalmente — envolvendo os catadores de papelão (recicladores) — a difundir uma literatura que muitas vezes fica à margem do sistema de publicação instituído e validado pelo mercado editorial. Este movimento iniciado com Eloisa Cartonera, em Buenos Aires espalhou-se rapidamente por outros países (Figura 1, Figura 2, Figura 3). No Brasil, são várias as cidades que possuem editoras com este mesmo princípio e pertencentes àquilo que poderíamos chamar de uma “rede cartonera”. Outros países, como Bolívia, Chile, Espanha, Guatemala, Peru, Portugal, México, Uruguai e Moçambique também contam com esta iniciativa.

 

 

 

 

 

 

Em um texto intitulado Cultura, sociedade, arte e educação em um mundo pós-moderno (2005) Arthur Efland reflete sobre a capacidade de construção da realidade por meio da arte e do quanto o sentido de arte — enquanto representação simbólica de diferentes realidades — pode ser alterado em diferentes contextos. Percebemos assim que a arte pode ter a fisionomia que quisermos a ela impingir e isso vai depender do meio e daqueles que as criam, muitas vezes diferentes uns dos outros. Para Efland:

A arte constrói numerosas representações do mundo, as quais podem ser sobre o mundo real ou sobre mundos imaginários, inexistentes, mas a inspiração humana continua podendo criar uma realidade diferente para cada um deles. A realidade social inclui tais coisas como dinheiro, propriedade, sistemas econômicos, classes sociais, gênero, grupos étnicos, governos, sistemas de cerimoniais religiosos e crenças, linguagens e similares. As artes são representações simbólicas dessas realidades. As artes são importantes pedagogicamente porque espelham essas representações de forma que podem ser percebidas e sentidas (Efland, 2005: 183)

Ainda de acordo com Efland, refletindo sobre a condição na modernidade e pós modernidade para o sentido de arte, ele nos diz: “A principal diferença entre a visão moderna e a pós-moderna é que para a arte moderna apenas tipos muito especiais de objetos podem reivindicar ser obras de arte” (Efland, 2005: 177). Estas proposições apontadas por Efland vão ao encontro da perspectiva da rede cartonera e, mais especificamente, para as ações do Projeto Eloisa Cartonera. As ações desenvolvidas com os catadores de papelão e seus filhos começam compra dos papelões recolhidos, passando pela escolha dos textos a serem publicados e todo o trabalho que envolve na construção destas produções — extrapolam os modos tradicionais de fazer arte. Não são profissionais da arte (artistas) simplesmente que se colocam a produzir uma obra ou desenvolver um projeto estético isoladamente, mas sim, profissionais que se unem ao outro para essa construção colaborativa.

O projeto Eloisa Cartonera esteve presente na edição da 27ª Bienal de São Paulo que teve como mote o tema “Como Viver Juntos”. Tal projeto nos instiga a refletir sobre a conexão e contribuição da arte contemporânea e perspectivas para as metodologias do ensino de arte, os limites, as fronteiras daquilo que está no “entre” da arte, da cultura e da educação. Estas ações demonstram este lugar indefinido, de fronteira daquilo que seja ou não arte.

Javier Barilaro em entrevista ao Fórum Permanente por ocasião da 27ª Bienal de Internacional de São Paulo qualifica o projeto como uma Escultura Social, a partir da noção de Joseph Beuys. Interessantemente esta associação do projeto cartonero com o conceito de escultura social de Joseph Beuys vai ao encontro daquilo que Suzi Gablik salienta e critica em relação à arte nas sociedades contemporâneas. Para a autora, a arte passou a ser entendida como um conjunto de objetos especializados, que são elaborados não por razões morais ou sociais, mas sim, por motivações individualistas que buscam nas obras somente a experiência de contemplação e apreciação. Projetos artísticos/culturais/sociais, tais como o Eloísa Cartonera, relacionam-se com aquilo que, na década de 1990 do século XX, Suzi Gablik denominou como Estética Conectiva, defendendo uma produção artística que mantém estreito vínculo com as questões sociais, com o Outro e com a própria vida.

Diante disto, a obra do grupo Eloísa Cartonera, assim como destas outras editoras, pratica um tipo de produção que muito se alia àquilo que Gablik vêm chamando de “novas manifestações”.

Seus livros, criados de maneira compartilhada com os catadores de papelão estão alocados na contramão do capital financeiro. Ao trabalhar com papelão reciclado comprado dos cartoneros argentinos — ou catadores de papéis — estes criadores desafiam o mundo das editoras tradicionais. Acreditamos que a produção da cultura não precisa ser condicionada pelas imposições do consumo, uma vez que existem encaminhamentos políticos que contribuem para a emancipação de sua função, direcionando outra lógica do pensamento que não esteja restrita à lógica do mercado e da padronização. É nesse prisma que assistimos às críticas de Adorno referentes à sociedade do consumo e da mercadoria, em que a indústria cultural alega guiar-se pelos consumidores e fornece-lhes aquilo que desejam. Nesse sentido, a obra de Eloísa Cartonera tem o desafio de romper os ditames da indústria cultural e devolver aos espaços da cultura o livre exercício de sua atividade criativa, influenciando inclusive os modos de operar das editoras tradicionais e também o próprio conceito e os modos de operar diante daquilo que foi historicamente construído e que passa a ser considerado como arte (Figura 4, Figura 5, Figura 6).

 

 

 

 

 

 

A arte que Gablik traz em evidência, e que relacionamos intimamente com a produção do grupo Eloisa Cartonera, provoca uma relação essencialmente dialógica, que, na maioria das vezes, não é fruto das elaborações de um indivíduo. Trata-se, sobretudo, de um processo colaborativo e interdependente, que parte da ideia de inclusão daqueles que foram excluídos da sociedade.

Embora os participantes do grupo Eloisa Cartonera juntamente com os catadores de papel produzam capas para livros de textos de literatura latino-americana, cedidos pelos autores e isso gere renda para os mesmos, os componentes do grupo têm clareza do pequeno alcance de seu trabalho; dos seus limites, do quanto faz-se necessário criar uma consciência junto a estes catadores quanto àquilo que estão fazendo (Figura 7, Figura 8). Mas Barilaro fala também sobre as possibilidades do trabalho desenvolvido; fala em gerar uma potência simbólica (Projeto Eloísa Cartonera, 2006). E percebemos claramente a presença desta potência simbólica no trabalho desenvolvido pela Cooperativa Cultural Eloisa Cartonera. Seus participantes lidam com aquilo que está à margem. Primeiramente, com uma população que tem pouco acesso cultural, pessoas que vivem à margem da sociedade, ainda que vivam no meio daquilo que a sociedade gera e descarta. Todos os envolvidos trabalham com muitas margens: o papelão/lixo descartado pela sociedade urbana; os próprios catadores e também a natureza dos títulos/ temáticas que eles publicam. Andréa Terra Lima, destaca que “um movimento como as editoras Cartoneras pode ser entendido como, justamente, um movimento de transgressão dessa lei de reprodução criada por um centro, que nada mais é do que um ponto social também arbitrário” (Lima, 2009: 8). Para a autora, o trabalho das editoras cartoneras apresenta em si uma perspectiva de transgressão; tanto a concretude do papel que pela margem é vinculado ao centro, como pela transgressão do lixo que é transformado em arte. A transgressão está presente na eliminação do limite entre literatura e artes visuais. É transgressão a atitude diante do refreamento imposto à voz pelo centro. Transgride também os materiais e principalmente os modos de operar e fazer arte desta maneira.

 

 

 

 

Considerações finais

No movimento desenvolvido pelas editoras cartoneras, do qual a Cooperativa Eloísa Cartonera faz parte, existe toda uma delicadeza presente no trabalho, nas relações entre as pessoas e as coisas no mundo. Pensamos aqui o quanto existe de relacional, de dialógico nos vários níveis e momentos do trabalho feito pelo Cartonera. Esta presença relacional, este respeito ao outro se manifesta na recolha dos papelões, na aquisição deste material recolhido pelos catadores por um maior valor monetário pela cooperativa, até à transformação do papelão/lixo em arte, na produção, assim como nas publicações. Percebemos, assim, a preocupação destes produtores/propositores em dialogar com o espaço e com as pessoas envolvidas na produção de arte. Ao incorporar o outro aos seus processos de criação, dando voz ao outro, o artista possibilita meios para que este outro se expresse em comunhão com tantos outros. Estas ações em muito se aproximam das reflexões de Paulo Freire quanto à dimensão dialógica da construção do conhecimento e de seu sujeito. Para Freire, o diálogo se dá no encontro entre as pessoas e é deste encontro, que nascem os processos de um conhecimento construído em comunhão uns com os outros. Freire ainda nos adverte: “Como posso dialogar, se me fecho à contribuição dos outros que jamais reconheço, e até me sinto ofendido por ela? Como posso dialogar, se temo a superação e se, só em pensar nela sofro e definho? (Freire, 1987: 80).

Essa postura com relação ao trabalho desenvolvido, diante do fazer arte com os catadores de papelão, em muito se distancia dos modos tradicionais de operar no campo da criação; distancia-se principalmente da ideia de artista fechado em seu ateliê. No modo mais tradicional, após a criação, a obra tradicional ganha as paredes das galerias, museus, entrando para o circuito tradicional dos modos de exibição de arte. Esta realidade nos remete às indagações que têm surgido a respeito do papel do artista na sociedade, desde o sentido que se dá ao processo de criação como também à apreciação artística. Trata-se de uma necessidade premente de se pensar estes processos de modo a avaliar até que ponto a arte de nossos dias tem demonstrado possuir um valor social. A noção de trabalho colaborativo e também a noção de comunidade se opõem radicalmente contra a perspectiva individualista de criação artística.

Nesta margem da cidade, por meio da produção artística, a ação humana, isto é a capacidade de transformar o material bruto em cultura e arte, torna possível o contato com outras possibilidades de criação e revisão dos processos de vida — o “estar no mundo”. Essas possibilidades não dizem respeito somente a consumir aquilo que é produzido por outrem, mas sim, fazer com que as suas produções transitem. Aquelas que são produzidas na margem possam também circular pelo centro.

 

Referências

Efland, Arthur (2005) “Cultura, sociedade, arte e educação em um mundo pós-moderno.” In: Barbosa, Ana Mae e J. Guinsburg (org). O Pós — Modernismo. São Paulo, Perspectiva, ISBN: 85-273-0711-1

Freire, Paulo. (1987). Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra. ISBN: 978-85219-0427-4.         [ Links ]

Gablik, Suzi. (2005), “Estética Conectiva: A Arte depois do Individualismo.” In: Guinsburg, J., Barbosa, Ana M. (Orgs). O Pós Modernismo. São Paulo: Perspectiva. pp 601-610. ISBN: 85-273-0711-1

Horkheimer, Max & Adorno, Theodor (1985) Dialética do esclarecimento: Fragmentos filosóficos. Tradução Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. ISBN: 85-7110-414-X         [ Links ]

Lima, Andréa Terra (2009). A Estética do (In) desejável: Uma Margem Catadora. Porto Alegre, UFRGS, (Trabalho de Conclusão de Curso)         [ Links ]

Projeto Eloísa Cartonera: entrevista com Javier Barilaro (2006) Revista Expediente nº oito, pag. 16-7 [Consult. em 201501-05]. Disponível em http://www.forumpermanente.org/rede/numero/revNumeroOito/         [ Links ]

Ostrower, Fayga. (2002). Criatividade e processos de criação. Petrópolis: Vozes, ISBN13:9788532605535         [ Links ]

 

Artigo completo recebido a 13 Janeiro e aprovado a 24 de janeiro de 2015

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: roliv1@gmail.com

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