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Revista :Estúdio
versão impressa ISSN 1647-6158
Estúdio vol.7 no.14 Lisboa jun. 2016
ARTIGOS ORIGINAIS
ORIGINAL ARTICLES
Narrativas Ficcionais de Tunga
Ficcional Narratives of Tunga
Marta Martins*
*Brasil, artista Visual. Licenciatura em Educação Artística. Centro de Artes da Universidade do Estado de santa Catarina (UDESC). Mestrado em Poéticas Visuais. Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Doutorado em Teoria Literária.Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
AFILIAÇÃO: Universidade do Estado de Santa Catarina, Centro de Artes, Departamento de Artes Visuais. Avenida Madre Benvenuta, 2007 – Itacorubi, Florianópolis – SC, CEP-88035-001 Brasil.
RESUMO:
Temos aqui por objeto de estudo a obra "Teresa" de Tunga. Nela as combinatórias do legível e do visível derivam de uma estética barroca onde o excesso rasga os limites artisticos: da escultura à instalação, do desenho à performance, do vídeo à textos, de manifestações cênicas até experiências plástico- sonoras. Sua obra trata de ir ao encontro de uma poética onde a aglomeração se impõe como uma faísca provocadora visando a manifestação de uma complexidade formal e conceitual, fazendo parte de uma constelação estética que configura um espaço onde é possível pensar um conceito ampliado de arte.
Palavras-chave: Arte brasileira, arte contemporânea, barroco, experiência.
ABSTRACT:
As an object of study here, we have "Teresa" a work of art created by Tunga. readable and visible elements derive from a baroque aesthetic where excess tear the artistic boundaries: from sculpture to installation, design to performance , video to text, scenic manifestations to sound plastic- experiences, is work comes to meet a poetic where the agglomeration is imposed as a provocative spark. Art work of formal and conceptual complexity, as part of an aesthetic constellation that sets up a space of an expanded concept of art.
Keywords: Brazilian art, contemporary art, baroque, experience.
Introdução:
A obra do artista visual Tunga se caracteriza por um sentido de movimento e de circularidade. Obra que não se encerra, mas que é aberta à criação auto-remissiva e ao retrospecto, e que é capaz de gerar um mecanismo onde os elementos físicos e temáticos retornam ao longo do tempo, como num movimento em espiral. A espiraléuma forma sem começo nem fim, formada de uma linha em movimento que, dependendo do ponto de vista, marca um subir ou descer, que sugere um retorno ou um avanço. A cada vez que uma memória, um pensamento, um gesto ou conceito voltam, eles trazem em si um descolamento que antes agregava um signo e um significante. Com isso, rompe-se um sentido único ou uma verdade inequívoca. Por isso, na obra do artista, os elementos que retornam, inviabilizam uma leitura fechada e produzem constantemente, novos sentidos e interpretações.
1. Narrativas ficcionais de Tunga
As (re) interpretações dentro e fora da obra do artista Tunga são possíveis num contexto de arte no qual a verdade das imagens não se encontra mais aderida a uma pedagogia do mundo. O colapso do paradigma que unia sujeito/objeto como sistema básico da produção de conhecimento manifesta-se mais visivelmente, no saber europeu, ao final do século XX e lançou novas premissas nos conhecimentos filosófico, artístico e psicanalítico que se tornaram as bases conceituais com as quais a estética da modernidade operaria. Nesse sentido, a experiência moderna se efetiva na medida em que se encontra com um sujeito esvaído da segurança e da previsibilidade do mundo ao enfrentar-se com um esvaziamento da experiência por meio do "monstruoso desenvolvimento da técnica sobrepondo-se ao homem" (Benjamin:1985. 15).
Teresa que é uma obra em formato de instauração, realizada sucessivamente no Rio de Janeiro, em Los Angeles, Buenos Aires, e São Paulo, quando integrou a instalação Resgate, elaborada para a inauguração do Centro Cultural Banco do Brasil, em São Paulo, em abril de 2001.
O lado performático da instauração Teresa teve a duração de um dia, e contou com 110 participantes. Tunga prefere usar o termo instauração para denominar algo que, na prática, excede tanto a noção de instalação quanto a de performance. Talvez uma de suas ambições seja encontrar um conceito mais efetivo ou de precisão, capaz de aglomerar, de uma só vez, a fugacidade do acontecimento proposto pela sua obra, bem como a permanência do que sobra desta situação passageira. Além disso, todo o evento de Teresa persegue a idéia da possível aquisição da liberdade. Na gíria dos marginais, uma "Teresa" é uma corda confeccionada com tecidos rasgados, sobras de lençóis, blusas e cobertores, que vão sendo atados por nós, para serem usados nas fugas dos detentos. Em um belo texto, que consta de um catálogo de Tunga para esta mesma instauração, encontramos uma interlocução do artista com seu pai, o escritor Gerardo Mello Mourão. Realizando uma operação retrospectiva ao período dos místicos espanhóis, esse pequeno texto do poeta, nos elucida a razão do uso na gíria carcerária, do nome Teresa para designar as cordas que são feitas pelos presos com os lençóis ou trapos disponíveis nas celas, com o propósito de auxiliá-los no escape:
TERESA
Na gíria de nossas grandes cidades da América Latina chama-se "Teresa" a uma corda formada por lençóis torcidos, amarrados para o necessário comprimento, pendurada da janela presidiária, por onde os prisioneiros descem para a perigosa liberdade. A "Teresa", da gíria do Rio e do "lunfardo"de Buenos Aires, tem uma tradição de 500 anos e a mais nobre das origens na historia da literatura e da mística religiosas do século XVI. Naquele tempo a grande Santa Teresa e S. João da Cruz eram perseguidos pelos poderosos mosteiros dos carmelitas que não queriam as reformas ascéticas adotadas por aqueles dois santos. João da Cruz foi encarcerado pelos frades numa cela de cerca de dez pés de comprimento por seis de largura-cerca de 3m x1,80 - da qual era retirado todas as noites para sessões de tortura física. Depois de meses, teve uma visão, em que uma imagem luminosa lhe transmitia instruções de santa Teresa: rasgasse os dois velhos cobertores que lhe serviam de cama, enrolasse as tiras como uma corda e saltasse pelas grades do cárcere. Pendurado na corda, o santo prisioneiro escorregou até o pé do muro da prisão. Tombou sobre montes de resto de cozinha, de onde um cachorro saiu correndo na noite escura. O frade o acompanhou. O cachorro pulou o muro. Ele também. Caiu num pátio, onde ouviu vozes de mulher. Era o pátio do convento de Santa Teresa, que o chamava para escondê-lo. Desde então correu a notícia pela cidade: João da Cruz escapara com a ajuda de uma Teresa, e os presos de toda a Espanha, quando faziam uma corda de lençóis para escapar ao cárcere, invocavam o nome de Santa Teresa e chamavam carinhosa e respeitosamente a corda de "Teresa". O nome passou da Espanha para a América Latina, nunca uma gíria teve origem mais nobre. Teresa, doutora da Igreja e reformadora das Carmelitas é a mais importante escritora de língua espanhola.E João da Cruz é o poeta dos mais apaixonados cânticos eróticos da lírica espanhola e da literatura universal de todos os tempos. Seus poemas reunidos com o título de "La Noche Oscura" foram feitos no cárcere. Compunha e decorava uma quadra cada noite, pois não tinha como escrever. Numa das mais belas quadras – ele fala sempre no feminino, porque é sua alma quem fala – está a evocação da noite da fuga pendurado em sua "Teresa"- salí sin ser notada. Outros santos também fugiram com a ajuda de uma "Teresa", como São Geraldo Majella, em sua cidade dos Apeninos, que escapou para refugiar-se num mosteiro. "Buttósi per la finestra" – mandou-se pela janela – diz uma parenta sua em depoimento de cartório. (Mourão: 2001)
Gerardo Mourão capta o quanto esta instauração reflete a energia caótica das grandes metrópoles da América Latina. Em uma versão que antecedeu em dois anos as apresentações feitas em São Paulo e em Brasília, Teresa fez parte de uma exposição no Centro Cultural La Recoleta de Buenos Aires, em 1999. A esperança de liberdade que Teresa aborda, foi lida pela curadora da exibição do trabalho de Tunga em La Recoleta, Mercedes Casaniegra, como uma inserção imaginária em circuitos ideológicos e sociais já existentes na realidade de nossos países:
Tunga proviene de Brasil, un país donde el porcentaje de exclusión social es muy alto y donde ésta es una realidad que no se soslaya. La Argentina, actual anfitrión de esta performance, es un país donde la justicia está puesta en cuestión. Y por último el sistema económico que ha triunfado y que da forma a la vida contemporánea en el mundo globalizado tiene como contracara la marginalidad. La obra es porosa de esta realidad: sale de ella para volver a ella. Ética y estética se aproximan. La ética puede llegar a experimentarse como estética. (Casaniegra:1999)
A ênfase na inflexão material com a qual o artista opera aproximações de coisas de natureza aparentemente díspares entre si, leva a curadora a uma leitura onde a energia do barroco é colocada em oposição às limitações fixas.
Nessa obra Tunga opera numa confluência de tradição discursiva, que é, ao mesmo tempo, hermética e cristã, e tal ambivalência, acaba por gerar uma espécie de leitura difusa de sua obra. Por esse motivo, os aparentes elementos de natureza "hermética" ou ainda, "os outros simbolismos", com os quais a crítica identifica uma marca de extensão temporal na polivalência destas obras, possuem também, uma inscrição ligada a temas da cristandade, nem sempre facilmente identificável no contexto, em grande parte, laico da arte contemporânea.
Santa Teresa desenvolveu uma mística erótica emanada a partir de seu corpo, como experiência subjetiva na qual subjaz, no calor da metáfora, a linguagem como propiciadora do arrebatamento dos sentidos. E isto coloca em discussão, um veemente problema sobre a questão do corpo como instrumento mediador das potências da alma, e capaz de determinar, a uma só vez, o desejo e o abandono.
Esta experiência está associada na obra, a um dionisíaco estado febril que ela provoca, diante do sentimento de uma possível fuga libertadora que se aproxima. Sentimento, que opera tanto individualmente, quanto na ordem coletiva das pessoas que vão se encontrando ao acaso, durante as longas horas do evento. Esta situação acaba por formar uma espécie de complô de uma utópica e variada apreensão do conceito de liberdade, ou uma aleatória ordenação comunitária, efêmera, impermanente, onde a heterogeneidade de todos, por breves instantes, trança e evoca, a partir de variados destinos, um sentido comum.
Há também uma remissão concreta à tranças, outro elemento emblemático da poética de Tunga, e pela qual o artista forja certos grupamentos temporários ou efêmeros, que se baseiam em três elementos. Vale relembrar, também, que os três elementos trançados são cobertas de presídio, o que, por extensão remete a uma frágil esperança de fuga. No entanto, esta esperança coloca em comunhão tanto os performers quanto o público, gerando um envolvimento cênico que é comum a todos, já que a ação se desenrola no espaço inteiro da mostra, sem limites que determinem o campo próprio da representação e o espaço de apreciação. Por esse motivo, Teresa provoca uma série de fortes reações em cadeia, em cada lugar na qual é configurada, e, no caso da experiência de Tunga em Buenos Aires, o fato de que uma grande parte dos participantes fossem meninos de rua, ou pessoas oriundas de favelas, gerou uma tensão, e até mesmo um clima de provocação mútua entre as comunidades diferentes que formavam, então, uma espécie de trança social, que é interessante para o artista na medida em que conforme declara:
Isso me permite observar como as pessoas se manifestam diferentemente participando do mesmo evento. Se faço a proposição na Argentina, na Alemanha ou no Brasil, a reação, não só do público, mas das pessoas que participam, é extremamente diversa; e você quase pode medir uma série de outros elementos que estão embutidos nessa obra e começam a aparecer, vindos à luz, a partir daí. Isso é só um dado mais curioso, uma espécie de termômetro para a liberação de grupos culturais. (Tunga, 2001)
A obra de Tunga formula, por sua vez, uma identificação revisitada, com a confluência entre a teoria e a prática da invenção do barroco, como próprio de parte da tradição vanguardista. Tunga retoma este aspecto da vanguarda, que já devidamente incorporado à sua gramática como um elemento a mais da tradição da arte a ser discutido, para novamente obter potência e gerar sentido à construção estética. A constituição de Resgate trata de operar uma provocação simultânea dos sentidos, onde a heterogeneidade pautada por excesso e radicalidade, deflagra uma irrupção sensorial (Figura 1, Figura 2). Esta irrupção estaria implicada na descoberta dos elementos, e da velocidade das ações, que, articuladas entre si, propõem surpresas e acasos a cada momento.
Em última análise, a obra de Tunga trata, voluntariamente, de ir ao encontro de uma poética onde a aglomeração se impõe como uma faísca provocadora, e onde a estética barroca é posta em articulação, visando o manifestar da complexidade formal e conceitual de sua arte.
Referências:
Benjamin, Walter(1985) Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. Obras escolhidas. Vol. I. SP: Brasiliense. [ Links ]
Casaniegra, Mercedes (1999) "Tunga em Buenos Aires." Buenos Aires: Centro Cultural la Recoleta. [ Links ]
Martins, Marta (2013) Narrativas ficcionais de Tunga. RJ: Apicuri. [ Links ]
Mourão, Gerardo Mello(2001) "Teresa". In: Assalto. Catálogo da exposição. Brasília: Centro Cultural do Banco do Brasil. [ Links ]
Tunga (2001) Metro: a metrópole em você. SP: CCBB. Entrevista a Luis Camillo Osório. In: Assalto. Brasília: Centro Cultural Banco do Brasil. [ Links ]
Artigo completo recebido a 21 de dezembro de 2015 e aprovado a 10 de janeiro de 2016.
Correio eletrónico: martamartins07@outlook.com (Marta Martins)