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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.7 no.15 Lisboa set. 2016

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

Isa Aderne: uma senhora gravadora

Isa Aderne: an engraving Lady

 

Liana Miranda Chaves*

*Brasil, gravadora, artista plástica, arquiteta e professora. Licenciatura, Educação Artística, Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Bacharelado em Arquitetura e Urbanismo, UFBP. Mestrado em Serviço Social, UFPB. Doutorado em Arquitetura e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia (UFPB)

AFILIAÇÃO: Universidade Federal da Paraíba, Centro de Comunicação, Turismo e Artes, Departamento de Artes Visuais. Campus I, Cidade Universitária, João Pessoa – Paraíba, CEP 58.051-900 Brasil.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

O presente trabalho apresenta a obra da gravadora Isa Aderne, cuja arte, a xilogravura, apresenta um cunho popular e uma particular preocupação com o social, muitas delas apresentando um acentuado tom político. A artista diz que 'a arte da gravura possibilita o encontro do indivíduo consigo mesmo'. Sua obra recebeu grande influência de Goeldi (que por seu lado teve também grande influência do expressionismo alemão) e da literatura de cordel, com a qual teve contato na sua infância.

Palavras-chave: Isa Aderne; Xilogravura; Ensino de Arte.

 

ABSTRACT:

This study presents the work of Isa Aderne, whose art, wood engraving, presents a popular slant and a particular concern for the social, showing a sharp political tone. The artist says that ' the art of engraving makes possible the encounter of people with themselves'. Her work has received great influence of Goeldi (that had also great influence of German Expressionism) and of popular literature, she had contact in her childhood.

Keywords: Isa Aderne; Woodcut; Art Education.

 

Introdução

A artista Isa Aderne Vieira nasceu no ano de 1923, na cidade de Cajazeiras, na Paraíba, e atualmente (2015) encontra-se radicada no Rio de Janeiro, cidade que adotou como sua. Graduada em Pintura na Escola Nacional de Belas Artes em 1963 e, especialista em Gravura, foi orientada pelo também gravador Adir Botelho. Faz parte de uma família de artistas: é filha da xilogravadora Celina Fontoura e irmã das artistas plásticas Laís e Dayse e da atriz Silvia.

Isa teve contato com a pintura na infância, nos colégios de freiras das cidades do interior nordestino nas quais morava durante o período em que seu pai – mandado a serviço, pela antiga IFOCS (Inspetoria Federal de Obras Contra as Secas) – era "engenheiro das secas, indicado para trabalhar fazendo barragens nos rios" (Isa Aderne, comunicação pessoal, 3 de dezembro de 2010, em João Pessoa – PB). Também brincou muito com o neto de Modesto Brocos no seu ateliê e já adolescente, estudando no Colégio Anglo-Americano, cuja sala de artes havia esculturas de gesso de Bernardelli, fazia desenhos de observação e pinturas que persistia em copiá-las.

A artista diz: "a miséria, a fome e as doenças advindas da seca, como o tifo, provavelmente ficaram em minha memória e dessa forma funcionaram como pano de fundo da minha experiência infantil no nordeste" (Lisa Aderne, comunicação pessoal, 13 de maio de 2013, em Rio de Janeiro). Devido àquelas lembranças, as influências aparecem em sua arte na década de 1960.

Esta é a década em que no Brasil o debate cultural sobre a questão do nacionalismo estava fervilhando e, de certa forma, havia grande inquietação com as tradições. Dessa maneira, com um trabalho contemporâneo, Isa apresenta a tradição do povo nordestino-sertanejo e assim, desmonta o ar de superioridade da gravura urbana sobre a popular. Podendo o termo 'bicultural' de que Peter Burke fala (1989:17) ser aplicado perfeitamente a sua gravura, quando informa que seria a maneira de interação entre as 'culturas do povo', ou seja, quando uma pessoa com mais cultura, cuja formação se dá em instituições universitárias, mas que teve, na infância, nas manifestações culturais populares – canções, lendas, brinquedos e contos – , um caminho de conhecimentos.

Em uma entrevista em 25 de julho de 2015, no Rio de Janeiro – RJ, Isa falou que suas primeiras gravuras não foram numeradas, pois nunca pensou que poderia passar de duas cópias. A humildade da artista é comovente. Ela disse que "... eu não achava meus trabalhos interessantes, ou que alguém os compraria, por isso, no começo eu nem me preocupava em numerá-las" (Isa Aderne, comunicação pessoal, 25 de julho de 2015, em Rio de Janeiro).

 

1. "Aderne é uma madeira... e Aderne é o nome de minha família".

Aderne é uma madeira e Isa fala que quando comprava um pedaço de madeira é como se comprasse um parente próximo, pois tem afinidade com a madeira: "qualquer uma... desde que sirva pra entalhar" (Isa Aderne, comunicação pessoal, 25 de julho de 2015, em Rio de Janeiro). Diz que para ela é mais fácil trabalhar em uma madeira do que com uma tela, uma vez que teve contato com a madeira desde sua infância se expressando com 'segurança e amor' (Isa Aderne, comunicação pessoal, 25 de julho de 2015, em Rio de Janeiro), diz.

Em 1947 Isa estudou com Renina Katz para poder entrar na Escola de Belas Artes. Quando entrou, fez modelo vivo com carvão, aulas de croquis, desenho à mão livre, 'trabalhos acadêmicos bastante rígidos', segundo ela. E, logo deixou. Volta em 1960 para a Escola e no último ano, já cansada daquele academicismo e das rédeas para realizar qualquer trabalho, conheceu Goeldi (1895-1961).

 

2. A xilogravura na vida da artista

Através de Goeldi, ela viu e sentiu a liberdade: um professor ensinando a técnica do entalhe, mas respeitando a expressão de cada aluno, fazendo de cada aluno um artista. Lá estavam Rubens Gerchman, Antônio Dias e tantos outros. À época, ela estava grávida e disse ao mestre Goeldi que no ano seguinte iria ser sua aluna. Mas, ao procurá-lo depois de se matricular, soube que o mestre havia falecido no dia anterior, numa quinta-feira (1961-02-16), após o carnaval. E, em consequência disso, ela foi a primeira aluna de Adir Botelho.

Na Escola de Belas Artes, ela fazia os trabalhos sob sua orientação, mas em casa, suas composições eram independentes. E assim, sem que Adir soubesse, ela se inscreveu e foi aceita, em maio de 1961, no X Salão Nacional de Arte Moderna, no Rio de Janeiro.

Segundo Isa, por muitos anos Goeldi foi o seu 'orientador espiritual' (Isa Aderne, comunicação pessoal, 3 de dezembro de 2010, em João Pessoa – PB). "Admirava seus pretos e a expressividade dos traços com a influência do expressionismo alemão" (Isa Aderne, comunicação pessoal, 3 de dezembro de 2010, em João Pessoa – PB).

As gravuras de Isa sempre foram ligadas ao seu cotidiano, e a influência de Goeldi foram se dissipando à medida que a artista começava a ter contato, como professora da Escolinha de Arte do Brasil, no Rio de Janeiro (1964-68), com Augusto Rodrigues, diretor-fundador da Escolinha. Ele era de Recife, e antes mesmo da euforia nacionalista das décadas de 1960 e 1970, ele fez uma exposição em 1947 do Mestre Vitalino, ceramista pernambucano, referência brasileira.

Isa sentia influencia também do cotidiano dos alunos que vinham de Olinda e de Recife, orgulhosos de suas culturas, a cultura nordestina. "Aquelas informações me remetiam as minhas origens... as coisas bonitas e as diferentes que tinha visto quando menina. As vaquejadas, até a história de quando nós fugimos de caminhão para o Ceará, porque o Lampião vinha para invadir o nosso acampamento. Lembrança dos carimbos que eu fazia com casca de cajá que enfeitava as capas dos meus cadernos ainda nos colégios das freiras... me lembrava dos livrinhos de cordel e suas gravurinhas lindas, vendidos na feira e que ficavam pendurados nas cordas" (Isa Aderne, comunicação pessoal, 3 de dezembro de 2010, em João Pessoa – PB).

 

3. A obra: a gravura social e a gravura política

Isa começou a gravar em passos lentos, paralelamente às aulas com Edson Motta, Mário Barata, Abelardo Zaluar. Esses dois últimos foram perseguidos pela ditadura militar. Sua gravura política só 'chegou' em 1968, logo depois que ela desembarcou em Salto, no Uruguai (1968). Lá, Isa trabalhou com alunos ricos e pobres. Mas foi com os pobres que ela viu a grande realidade. Viviam a época dos Tupamaros. Aqueles alunos precisavam de tudo e procuravam principalmente a liberdade. Expressavam-se com gravuras panfletárias, nas quais reivindicavam o que necessitavam: "queremos escolas, queremos..., queremos liberdade, etc." (Isa Aderne, comunicação pessoal, 25 de julho de 2015, em Rio de Janeiro).

Sua experiência no Uruguai, somada ao convívio, no ambiente da Escolinha, com alunos dos mais diversos cantos do Nordeste, lhe levou a lembranças das suas origens, da sua infância. Isso se refletia no seu trabalho. Tanto que sua amiga, e também gravadora Heloísa Pires Ferreira, disse: "Isa olhe, a sua obra-prima é aquele 'Santo Onofre', todo rodeado de uma renda com mariposas" (Isa Aderne, comunicação pessoal, 25 de julho de 2015, em Rio de Janeiro). Eram lembranças das rendeiras nordestinas, e ela fazia aquelas rendas no próprio entalhe. Era também a lembrança do seu desembarque no aeroporto Santos Dumont, na sua volta ao Brasil, onde deparou-se com diversos cartazes com 'PROCURA-SE' e as fotos dos procurados políticos, pois aqui, àquela época, também vivíamos uma ditadura militar. Por tudo isso, sua gravura que já era voltada para o social, ganhou mais incrementos e passou a se apresentar com acentuado tom político. Um exemplo dos muitos é a gravura da Figura 1.

 

 

É tanto que na sua obra 'Procura-se um Padroeiro', o Santo Onofre, que na Bahia é o padroeiro das prostitutas, apresenta-se com figuras ao seu redor: de frente e de perfil, exatamente como os cartazes que procuravam os contrários ao regime militar se apresentavam. "A gravura 'Procura-se' fiz destinada às pessoas comuns, nós todos que estávamos precisando de proteção, de auxílio, porque estávamos todos vulneráveis" (Isa Aderne, comunicação pessoal, 25 de julho de 2015, em Rio de Janeiro).

O tom político também aparece nas gravuras 'Queremos chuva I' (1968), 'Queremos chuva II' (1968), 'Parem os ventos' (1968). Dessa última, Isa fala: "essa gravura foi feita na época da repressão... tinha o sentido de pararem aquelas repressões, e... tanto aquele vento do Nordeste, os rodamoinhos, que tem muito a ver com a seca, como o vento político são ventos que trazem insegurança, trazem agressividade e mortes... significando: parem a censura, a dominação, parem as perseguições e as torturas, parem as mortes, parem de enganar e tantos outros parem" (Isa Aderne, comunicação pessoal, 25 de julho de 2015, em Rio de Janeiro).

A gravura 'E agora José?' (1968) é a obra que apresenta a miséria com as vacas magras, a vegetação seca e urubus. As vacas famintas encaram o observador que tem a nítida sensação de ser, a qualquer momento atacado por elas. Sobre a mesma, Carlos Drummond de Andrade escreveu à Isa: "Convivo agora com os bois de Itabira, em grave e ritmada postura, perguntando (ou respondendo): E agora José? Senti a força e o mistério das coisas que você soube comunicar no traço firme e sensível sobre a madeira" (Carta a Isa Aderne. Rio de Janeiro, 1971-02-22).

Uma gravura que depois mudou de nome, ou seja, ganhou um complemento foi a 'Queremos'. Todos perguntavam: queremos o que? E ela lembrou-se de tudo que se juntava: os alunos uruguaios, os alunos nordestinos da Escolinha, nós brasileiros que necessitávamos de liberdade em 1968, sua infância no nordeste e, assim, disse: "Queremos chuva, pois no nordeste, havia muita seca" (Lisa Aderne, comunicação pessoal, 13 de maio de 2013, em Rio de Janeiro). Título 'camuflado' para que a sua gravura não fosse censurada. Coisa bastante natural naquele período brasileiro (Figura 2).

 

 

Nas nove gravuras do 'Sofrimento de Cristo', muitos acham que ela se inspirou no Cordel nordestino. Ela acredita que a principal inspiração foram os trabalhos de Goeldi com todos aqueles pretos, depois as lembranças de sua vivência no Nordeste, aqueles livrinhos de cordel que via nas feiras, as vaquejadas e os cantadores... além dos contadores de histórias. No entanto, ela afirma categórica que seu trabalho é mais elaborado que as xilogravuras do cordel, os quais geralmente são trabalhos bem simplificados.

Isa fala que quando resolveu fazer as xilogravuras do 'Sofrimento de Cristo' não pretendia fazer uma via-sacra, pois na via-sacra propriamente dita tem quatorze passagens. Ela disse que começou a fazer uma por uma nas madeiras redondinhas, e cada cena sozinha, totalizando nove (Figura 3). Em todas elas, Isa colocou um cachorro, que era a sua cachorra Queen, que vivia junto dela sempre. O Cristo vestido com uma roupa que o deixou parecido com os homens que carregavam as cruzes lá no interior do Nordeste, fazendo os pagamentos de suas promessas.

 

 

4. O processo criativo

Quanto ao seu processo criativo, Isa diz que: "não faço nada assim muito planejado, mas sempre tenho perto, dentro da bolsa, lápis e papel" (Isa Aderne, comunicação pessoal, 25 de julho de 2015, em Rio de Janeiro). Segundo a artista, quando ela vê algo que a toca, ela desenha. Quando chega em casa, tranquila, se aquilo realmente serve, vira rapidamente uma gravura, se não, ela guarda ou às vezes destrói. Quando se encontra só, ela, muitas vezes, escreve e, se aquilo valer a pena, um dia, vira trabalho e ela entalha. Seu processo de criação dialoga permanentemente com a sua vida. Ela diz que: "agrido a madeira para fugir das agressões da vida" (Lisa Aderne, comunicação pessoal, 13 de maio de 2013, em Rio de Janeiro). Foi o caso da gravura 'Meu crochê'. Primeiro veio a doença do marido. Ele internado no hospital, ela ficava só em casa durante as noites e numa dessas noites ela escreveu a história e depois entalhou quase um autorretrato: ela na cadeira de balanço, fazendo o seu crochê.

 

Conclusão

Inúmeras são as gravuras que a artista Isa Aderne Vieira entalhou. Entretanto, as gravuras que destaco no presente artigo estão entrecruzadas pelo debate sobre a liberdade, a política e o social. Toda a obra de Isa possui traços expressionistas e nos remete a um repertório de tradição nordestina com códigos de expressão sertanejas. Com um trabalho contemporâneo, ela apresenta a tradição do povo nordestino-sertanejo e assim, desmonta o ar de superioridade da gravura urbana sobre a popular. Com isso nos oferece uma obra contemporânea que é o retrato do hoje a partir de sua própria vida. Ela finaliza uma das entrevistas dizendo que: "para mim a gravura é vida e, se ainda estou viva é porque estou fazendo gravura" (Isa Aderne, comunicação pessoal, 25 de julho de 2015, em Rio de Janeiro).

 

Referências

Burke, Peter (1989) Cultura Popular na Idade Moderna. São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]

Ferreira, Heloísa Pires et al. (Org.) (1996) Gravura Brasileira Hoje: depoimentos. Rio de Janeiro: Oficina de Gravura SESC Tijuca.         [ Links ]

Laudanna, Mayra (2001) Entrevista de Artista: Isa Aderne. Cotia – SP: Ateliê Editorial.         [ Links ]

 

Artigo completo recebido a 30 de dezembro de 2015 e aprovado a 10 de janeiro de 2016

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: liana__chaves@hotmail.com (Liana Miranda Chaves)

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