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Revista :Estúdio
versão impressa ISSN 1647-6158
Estúdio vol.7 no.16 Lisboa dez. 2016
ARTIGOS ORIGINAIS
ORIGINAL ARTICLES
Pele Preta: a poética da luz
Black Skin: the poetics of light
Sandra Maria Lúcia Pereira Gonçalves*
*Brasil, artista visual (Fotografia). Professora e pesquisadora. Graduação em Comunicação Visual, Escola de Belas-Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); Mestrado em Comunicação e Cultura na Escola de Comunicação UFRJ; Doutorado em Comunicação e Cultura na Escola de Comunicação UFRJ.
AFILIAÇÃO: Universidade Federal do Rio Grande do Sul; Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação; Departamento de Comunicação. Rua Ramiro Barcelos, 2705 – Campus Saúde – Porto Alegre – RS – CEP 90035-007 Brasil.
RESUMO:
O artigo proposto tem por objetivo refletir acerca do trabalho seminal da fotógrafa artista Maureen Bisilliat, Pele preta. O ensaio fotográfico Pele preta foi realizado na década de 1960. A série aqui trabalhada é composta por 23 imagens em preto e branco de três modelos negros: uma mulher, um homem e uma criança, além de imagens de ex-votos. Através dessas imagens a artista afirma sua visão política e social da sociedade brasileira aliada a uma poética da luz com traços surrealistas. Conceitos como o de Fotografia Menor (Gonçalves, 2009) e o de Imagem Cristal (Deleuze, 2007; Fatorelli, 2003) estarão presentes.
Palavras chave: Maureen Bisilliat, Pele preta, Fotografia expressão.
ABSTRACT:
The proposed article aims to reflect on the seminal work of photographer artist Maureen Bisilliat, Black Skin. The photographic Black Skin essay was conducted in the 1960s. The series consists of 23 black and white images of three black models: a woman, a man and a child, and votive images. Through these images the artist asserts her political and social vision of Brazilian society combined with a poetic light with surrealist features. Concepts such as Photography Minor (Gonçalves, 2009) and the Crystal Image (Deleuze, 2007; Fatorelli 2003) will be present.
Keywords: Maureen Bisilliat, Black skin, Photography expression.
Introdução
O artigo proposto tem por objetivo refletir acerca do trabalho seminal da fotógrafa artista Maureen Bisilliat, Pele preta. O ensaio fotográfico Pele preta foi realizado na década de 1960. A série aqui trabalhada é composta por imagens em preto e branco de três modelos negros: uma mulher, um homem e uma criança, além de imagens de ex-votos. Trabalho menos visível da obra fotográfica produzida por Maureen Bisilliat, veio a público na primeira grande exposição da artista, realizada em 1966 no Museu de Arte Moderna de São Paulo (Brasil). Em 2014, o Instituto Moreira Salles, detentor do direito patrimonial sobre a obra da artista, editou na coleção A forma da Luz, um pequeno fotolivro com a série Pele preta – uma seleção de 23 imagens do ensaio original (Bisilliat, 2014). É sobre esse trabalho que a reflexão aqui se dará.
Maureen Bisilliat nasceu na Inglaterra (1931), filha de diplomata argentino e mãe artista plástica Inglesa e teve uma vida nômade até se estabelecer no Brasil em 1957. Sua identificação e seu encantamento pelo país levaram-na a adquirir cidadania brasileira. Bisilliat se interessou pelo Brasil profundo por meio de clássicos da literatura brasileira como Euclides da Cunha e João Guimarães Rosa. Neste sentido, seu ensaio Pele preta apresenta características que iriam marcar seu trabalho de associar texto e imagem nas narrativas que constrói, bem como trabalhar questões que a levassem a entender o país escolhido para viver. Fotógrafa artista, Maureen Bisilliat transita em um universo movediço onde o documento literal da realidade se esfumaça na ação autoral e expressiva do artista. Desse modo o real e o imaginário se entrelaçam permanentemente em seu trabalho. Maureen Bisilliat faz da fotografia o lugar de sua arte e profissão.
Aproveita-se esta introdução para indicar os conceitos que norteiam este artigo, qual seja os de Fotografia Menor (Gonçalves, 2009) – quanto à temática escolhida – e o de Imagem Cristal – a forma levando a uma ruptura do mais evidente da imagem – proposto por Fatorelli (2003) a partir de leitura do conceito em Deleuze (2007). Acredita-se que tais conceitos darão conta da reflexão proposta, qual seja a da potência da imagem artística enquanto horizonte reflexivo.
1. Maureen e a Fotografia
Pintora de formação (na década de 1950 estudou pintura com André Lhote, surrealista, em Paris, e frequentou o Arts Students League, em Nova York. Maureen Bisilliat substituiu a pintura, considerada sedentária para o seu temperamento inquieto, pela fotografia no início dos anos 1960 – seu marido à época, o fotógrafo espanhol José Antônio Carbonell a influenciou na escolha, que se fez definitiva após o encontro com a obra literária Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa, em 1963 (Fernández, 2011). Seu desejo de conhecer o Brasil profundo das gerais (Minas Gerais) mostrado por Guimarães Rosa, levou-a a uma viagem pelo interior do país de adoção munida daquilo que seria seu instrumento de trabalho por longos anos, a câmera fotográfica. As imagens produzidas, quando publicadas na forma de foto-livro, A João Guimarães Rosa (Bisilliat, 1969), se fizeram acompanhar por trechos de Grande sertão: veredas selando a união entre fotografia e literatura no trabalho da artista, como se pode observar na Figura 1: no livro, a página a esquerda da imagem de um sertanejo apresenta palavras retiradas de Grande sertão veredas.
As imagens literárias de Bisilliat levaram-na ao fotojornalismo. Trabalhou para a Editora Abril (1964-1972) em revistas como Quatro Rodas e Realidade. Na revista Realidade pode exercer seu ofício fotográfico com total liberdade de expressão e meios, pois não havia limite na quantidade de filmes utilizados nem no modo como os assuntos eram abordados. Após esse período passou a se dedicar a projetos pessoais de documentação expressiva, e expandir os limites do visível, aliando a imagem fotográfica a textos de escritores como Euclides da Cunha, Adélia Prado, Jorge Amado e poetas como João Cabral de Mello Neto e Carlos Drummond de Andrade. A série fotográfica Pele preta, primeiro trabalho fotográfico da artista a vir a publico, exposto no Museu de Arte Moderna de São Paulo, em 1966, e objeto de reflexão deste artigo, é inaugural no uso do texto ao pontuar as imagens fotográficas da série com trechos de poemas de Jorge de Lima, poeta modernista brasileiro.
Considera-se importante ressaltar o trabalho da artista realizado no Parque Indígena do Xingu durante os anos 1970. Neste trabalho, transformado no livro Xingu, Território Tribal (Bisilliat, 1990) em 1979, a linguagem plástica de Maureen Bisilliat incorpora a cor como determinante expressiva (Figura 2), reforçando o trabalho dramático com a luz característico de sua obra. Desde os anos 1980, Maureen dedica-se ao trabalho com vídeo e edição de texto e imagem, além de dar continuidade a seus projetos fotográficos por meio de revisões e novas leituras de seu material de arquivo.
2. Sobre a Série Pele preta
O ensaio fotográfico Pele preta foi realizado na década de 1960. A série é composta, como apontado na introdução deste artigo, por 23 fotografias em preto e branco de três modelos negros: uma mulher, um homem e uma criança, além de imagens de ex-votos. Através de uma poética formal baseada no uso dramático da luz e a fragmentação dos modelos, a artista traz questões importantes à sociedade brasileira. A mais visível dessas questões diz respeito ao lugar ocupado pelo negro nessa sociedade. No jogo de claro-escuro, oportunizado pela fotografia em branco e preto, emerge a problemática proposta pela artista: a emersão e presença positiva do negro na sociedade brasileira (Titan Jr., 2014). Reforça este caráter da série a presença de trechos de poemas de Jorge de Lima, poeta pertencente à segunda geração de modernistas brasileiros. Esses artistas eram politizados, questionadores e buscavam a criação de uma arte moderna brasileira, com a valorização do nacional. A realidade brasileira e seu cotidiano sem glória com seus tipos populares era o foco desses artistas, deixando a burguesia fora da cena artística (principalmente na literatura). Soma-se ao exposto, a percepção de certa herança surrealista na poética de Maureen Bisilliat, reforçando a ideia do vir à tona do reprimido proposto pela série. Essa ideia se torna perceptível na sequencia de imagens proporcionada pelo pequeno fotolivro, como pode ser observado, por exemplo, nas duas imagens a seguir (Figura 3 e Figura 4):
Vê-se na Figura 3, uma cabeça de madeira (ex-voto) deitada sobre uma superfície plana e apoiada por uma mão negra; mãos de madeira, também ex-votos, se colocam por trás da cabeça numa composição intrigante e desconcertante. Na imagem seguinte (Figura 4) saindo da escuridão, observa-se a cabeça de um menino negro que repousa sobre a mão de uma mulher, também negra. As imagens mostradas são fragmentos que se unem e levam o leitor a refletir sobre uma relação possível de causa e efeito entre as duas imagens, ou seja: ex-votos significam a realização de um milagre, representam a cura de um órgão doente pela divindade; são testemunhos de gratidão – em lugares de romaria há salas específicas para eles. Então, ao se associar as duas imagens, dentro da temática perceptível no trabalho, qual seja a da inserção do negro como parte fundante da sociedade brasileira, a sequencia parece falar da realização desse milagre de assimilação positiva. A imagem a seguir (Figura 5), um pequeno anjo perfaz o caminho proposto.
Como qualquer criança, liberto, vestido com asas, saindo das sombras, não mais fragmento, ele quer voar. Ele quer ir tão alto quanto os seus sonhos o possam levar. Soma-se a isso a preocupação formal da artista no trato dado a seus modelos: são imagens fortemente estéticas que primam pelos primeiros planos de grande beleza plástica; trazendo uma sensação táctil a seus observadores. Cortes e fragmentos, jogos de luz provocam uma sensação de estranheza que estimula o leitor a refletir acerca do que vê.
O olhar autoral, o dialogismo estabelecido com seus retratados, o trabalho com a luz e a forma, os cortes realizados nas imagens fizeram e fazem de Maureen Bisilliat uma fotógrafa de rara sensibilidade e estética sofisticada. Suas imagens fotográficas expandem os limites referenciais da coisa dada (a fotografia). A artista não busca a simples relação que produz semelhança de um original, mas o "jogo de operações que produz aquilo a que chamamos arte, ou seja, precisamente uma alteração de semelhança" (Rancière, 2011: 14) que faz o leitor da imagem ultrapassar a superfície da imagem dada. São imagens e sequências imagéticas que possibilitam o aparecimento daquilo que Fatorelli (2003) nomeia de Imagem Cristal (Fatorelli desenvolve sua ideia a partir do conceito deleuziano de Imagem Cristal aplicado ao cinema [Deleuze, 2007]). Para o autor, essas imagens são aquelas em que a subserviência à referência não é o que interessa, dependentes que são de certas configurações do visível, do tempo e do espaço. Potentes e obtusas, propõem realidades que não se confundem com elas. São imagens onde a metáfora do cristal se concretiza, pois elas espelham multiplicidades.
Ambíguas, potentes, incertas e instigantes as imagens da série Pele preta mergulham o seu leitor/espectador no universo do comum, da figura anônima. Nesse sentido trazem a reboque o conceito de Fotografia Menor (Gonçalves, 2009). Tal conceito, baseado no conceito de Literatura Menor desenvolvido por Deleuze & Guattari (2014) para pensar a literatura de Kafka, considera que tais desvios temáticos e modos de fazer fotográfico potencializam aberturas para o outro, aquele relegado a um segundo plano na história. A série Pele preta implica seu leitor a certo engajamento político, histórico e poético ao longo de um percurso entre real e imaginário – possibilidade de construção de uma ponte para o novo na transformação dos modos estabelecidos de ver e sentir, uma metamorfose.
Conclusão
Fotógrafa expressiva, Maureen Bisilliat, de acordo com a categoria desenvolvida por Rouillé (2009) de fotógrafo artista, realiza na série selecionada para reflexão o que se pode chamar de documental expandido (vai além da mera referência documental propondo novos horizontes reflexivos). Suas imagens transformam-se em discurso vivo ao trazer no seu jogo de claro-escuro e fragmentação questões que perpassam, ainda, a sociedade brasileira, tal como o lugar que essa outorga ao negro. O trabalho de Maureen parece visar à inserção definitiva do negro, sem estereótipos, como cidadão brasileiro. Assim, por exemplo, o corpo da mulher negra (Figura 6), seguidamente erotizado pela mídia e pelo discurso dominante, é posto em questão através da construção de uma nudez possuidora de sensualidade singela e invulgar. Nesse sentido, sua fotografia já nasce 'Menor', esbarra e enfrenta o senso comum pequeno-burguês forjado por valores capitalistas. Nasce daí uma potência cristalina, multifacetada, revolucionária, desestabilizadora de verdades estabelecidas.
A leitura que aqui se propôs da serie Pele preta é uma das inúmeras possíveis, talvez a mais coesa no descontínuo de sentido proposto por imagens. Apesar da intensão primeira da autora das imagens apresentadas, seu potencial cristalino possibilita lacunas e brechas por onde outros sentidos aderem. Sentidos esses sempre provisórios, como os reflexos de um cristal.
Referências
Bisilliat, Maureen (2014). "Pele Preta". In A Forma da Luz, vol. 3. Rio de Janeiro: Instituto Moreira Salles. ISBN: 85-8346-011-6. [ Links ]
Bisilliat, Maureen (2009). Fotografias. Rio de Janeiro: Instituto Moreira Salles. ISBN: 978-85-86707-45-2. [ Links ]
Bisilliat, Maureen (1969). A João Guimarães Rosa. São Paulo: Brunner. [ Links ]
Bisilliat, Maureen (1990). Xingu, território tribal. São Paulo: Autêntica. ISBN: 85-293-0006-8. [ Links ]
Deleuze, Gilles (2007). A Imagem tempo. São Paulo, SP: Brasiliense. ISBN: 85-11-22028-3. [ Links ]
Deleuze, Gilles & Guattari, Felix (2014). Kafka, por uma Literatura menor. Rio de Janeiro: Autêntica. ISBN: 8582173121. [ Links ]
Fatorelli, Antonio (2003). Fotografia e viagem: entre a natureza e o artifício. Rio de Janeiro, RJ: Relume Dumara. ISBN: 85-7316-323-2. [ Links ]
Fernández, Horacio (2011). Fotolivros latino-americanos. São Paulo: Cosac Naify. ISBN: 978-85-405-0106-5. [ Links ]
Gonçalves, Sandra M L P. (2009) "Por uma fotografia menor no jornalismo diário contemporâneo". Revista da Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação | E-compós. E-ISSN 1808-2599. v. 12, n. 2, maio / ago. Brasília. [Consult. 2015-12-14]. Disponível em URL: http://www.compos.org.br/seer/index.php/e-compos/article/view/393/364 [ Links ]
Rancière, Jacques (2011) O destino das Imagens. Lisboa: Orfeu Negro. ISBN: 978-989-8327-17-8 [ Links ]
Rouillé, André (2009). A fotografia: entre documento e arte contemporânea. São Paulo, SP: SENAC. ISBN: 978-7359-876-6. [ Links ]
Titan Jr, Samuel (Org.) (2014). "Pele Preta." In A Forma da Luz, vol. 3. Rio de Janeiro: Instituto Moreira Salles. ISBN: 85-8346-011-6. [ Links ]
Artigo completo recebido a 28 de dezembro de 2015 e aprovado a 10 de janeiro de 2016
Correio eletrónico: sandrapgon@terra.com.br (Sandra Gonçalves)