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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.8 no.17 Lisboa mar. 2017

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

Invasão e espreita nos sistemas poéticos de Márcia Braga

Invasion and lurking in the poetic systems of Márcia Braga

 

Carlos Augusto Nunes Camargo*

*Brasil, artista visual e professor. Doutorado e Mestrado em Artes pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP). Bacharelado em Engenharia Elétrica pela Universidade de São Paulo (USP).

AFILIAÇÃO: Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Instituto de Artes, Departamento de Artes Visuais. R. Sr. dos Passos, 248 – Centro, Porto Alegre – RS, 90020-180, Brasil

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

Este artigo aborda a instalação "Comer o livro" (2014) eo objeto "Este corpo já foi meu" (2015) de Márcia Braga. Problematiza, no espaço expositivo, as estruturas relacionais propostas e revela, na intimidade do cotidiano e da memória da artista, os processos e conceitos operacionais quegestaram sua prática eseu desejo de participação do outro.

Palavras-chave: Instalação / objeto-organismo / cerâmica / cotidiano / Arte.

 

ABSTRACT:

This article discusses the installation "Eat the book" (2014) and the object "This body was once mine" (2015) by Márcia Braga. It problematizes the proposed relational structures and reveals, in the exhibition space, the intimacy of the artist 's daily life and memory, the operational processes and concepts that have shaped her practice and her desire of the other's participation.

Keywords: Installation / object-organism / ceramics / everyday / Art.

 

Introdução

Márcia Braga, Bacharel em Artes Visuais e Arquitetura, conhecedora das práticas da costura e da culinária, vivenciou, na infância, os espaços públicos compartilhados quando a rua de sua casa era fechada aos domingos dentro do projeto "Rua do lazer". A partir de 2012, Braga inicia e coordena o "Projeto Vizinhança" que reaproxima comunidades locais em torno de ocupações artísticas realizadas em imóveis desocupados da cidade. "Fascinada pelos acontecimentos de seu cotidiano artístico e doméstico, se entrega as provocações que habitam as coisas comuns" (Braga, 2014: 16) e, desde 2009, desenvolve uma produção de objetos híbridos, em cerâmica, tecido e outros materiais, que propõe ao espectador uma ampliação dos sentidos. Ler, modelar, cozinhar, tecer, compartilhar, oferecer, amassar, vestir, preencher, misturar, entre outros gestos-verbos cotidianos, são conceituados e operacionalizados em sua poiética com objetivo de ampliar as relações entorno dos objetos que produz e ao redor das micro-comunidades temporárias que, seu desejo do outro, aglutina.

 

1. A espera de um gesto-verbo aglutinador

Inicialmente, ainda na esfera privada da artista, na segurança de seus domínios físicos, poéticos e familiares, um intenso campo de experimentação e sensibilização promove cruzamentos entre os gestos-verbos e os substantivos correlacionados, a ocorrer, por vezes, mutações e hibridações. Modelar a comida, destrinchar o livro, cozinhar a palavra, tecer a cerâmica, adensar o espaço, corporificar a ausência. Operações conceituais geradores de dispositivos poético diversos, letra-bolacha, palavra-som, meia-corpo, objeto-organismo, cerâmica-massa, espaço-livro, todos em estados de latência e repouso. Microterritórios em espreita, a espera de uma fenda, de uma linha de fuga, de um instante de deslocamento. A poiética de Braga não opera com objetivos pré-estabelecidos, mas com um estado de agenciamento de potencialidades e possibilidades a espera de um gesto-verbo aglutinador, disparador de séries artísticas, como na exposição "A palavra ingrediente" (2014), quando seu apreço pela leitura e pela prática culinária, transformou livros em fragmentos de textos comestíveis, com a intenção de perpetuar e coletivizar existências e significados.

 

Todo mundo tem um livro na memória, um livro que marcou um momento importante da vida, que fez pensar ou que mudou pontos de vista. Um livro que ao tê-lo nas mãos desejou que nunca dali saísse, que não acabasse, e que o encontro com aquelas palavras fosse eterno. Seguramente, todos nós temos um livro assim, que salvaríamos, como o fazem os personagens do filme Fahrenheit 451, decorando-o a ponto de tornarem-se o próprio livro (Braga, 2014: 38).

 

2. A instalação "Comer o livro"

Presente na exposição "Palavra ingrediente" (2014), a instalação "Comer o livro", Figura 1 e Figura 2, composta de um conjunto de 4 mesas quadradas de madeira escura, disposto uniformemente aos eixos de simetria da galeria, remetia ao ambiente de uma biblioteca. Sobre cada mesa, uma estrutura cúbica de acrílico dotada de 4 aberturas, continha um amontoado de bolachas com formato das mais diversas letras. Em cada mesa, um aparato sonoro reproduzia a voz da artista a ler um texto específico. Os conjuntos de bolachas reproduziam, letra a letra, 4 textos distintos. O poema "Os Três Mal-Amados", de João Cabral de Melo Neto, "O poeta ficou cansado", de Adélia Prado, "Rima petrosa-2" de Haroldo de Campos e "A cidade e os livros", de Antõnio Cícero, com pequeno trecho reproduzido a seguir.

 

 

 

 

 

...lugares que antes eu nem conhecia abriam-se em esquinas infinitas de ruas doravante prolongáveis por todas as cidades que existiam. Eu só sentira algo semelhante ao perceber que os livros dos adultos também me interessavam: que em princípio haviam sido escritos para mim os livros todos. Hoje é diferente, pois todas as cidades encolheram, são previsíveis, dão claustrofobia e até dariam tédio, se não fossem os livros infinitos que contêm. (Cícero, 2002)

A redoma de acrílico organizava ortogonalmente os eixos de interação dos espectadores, protegia o alimento contra a ação de bichos noturnos e conservava a crocância dos mesmos. Todos os dias, um monitor era encarregado deabrir eselar as redomas. Além destas funções, imaginadas inicialmente por Braga, o sistema poético proposto produzia uma fenda no ato perceptivo, um estado de suspensão. Imersa na leitura sonora, a forma cúbica transparente da redoma aglutinava as letras-bolachas e corporificava o livro em puro desejo. Em objeto de degustação do tato, da audição, do paladar, da visão e do pensamento, como se este último se tornasse também um dos sentidos do corpo. Uma primeira idade da percepção que colocava o corpo em deslocamento imaginativo. Um estado de latência de relações potencializados por uma pequena abertura, de contornos imperceptíveis, que propunha um convite, uma escolha. O corpo deveria invadir a redoma parar sorver carnalmente o desejo de seus sentidos ou permanecer imóvel, em eterna espreita e deleite imaginativo. Comer o livro ou se tornar, também, ingrediente ? Quais eram as perdas e os ganhos inerentes a sua atuação física?

 

3. O objeto-organismo "Este corpo já foi meu"

Em 2015, o galpão que acolheu a exposição "Este corpo já foi Meu" se assemelhava a uma antiga oficina com colunas e paredes rústicas dotadas de janelas antigas e de um sistema de iluminação expositiva moderno, Figura 3. Nos objetos dessa série, Braga operacionaliza seu cotidiano em um movimento totalmente oposto. Enquanto que em "Comer o livro", livros de poesias e receitas, utensílios domésticos, práticas de leitura e cozinha, abandonaram armários, estantes e prateleiras suspensas e se adensaram sobre as mesas de uma hipotética biblioteca presentes na instalação, os objetos agora expostos, provocaram um movimento autõnomo de expansão e derivaram de um encontro fortuito da artista como o ato cotidiano de se despir.

 

 

 

Um dia, ao tirar a meia-calça, ela percebeu que a malha havia retido formas do seu corpo. Observando aquela estrutura no espaço, braços estendidos, quis mantê-la. Para tanto, era necessário dar matéria àquele invólucro, preenchê-lo uma vez mais. Olhou em volta, pegou um travesseiro, abriu-o e, com a espuma que aninhava seu sono, recheou a meia-calça, criando um novo corpo, que logo receberia a pele da cerâmica (Ramos, 2015:1).

 

Em cada objeto está latente um crescimento em expansão. Uma reprodução continuada de procedimentos formativos acumulativos aplicados sobre uma superfície interior, anterior. Desejosa de perpetuar a forma de seu corpo, percebida e emoldurada por tecidos elásticos presentes em suas vestimentas, Braga sobrepõe, à superfície de suas meias, procedimentos de seu cotidiano artístico, artesanal, doméstico e afetivo. A memória de infância lhe encarrega de modelar na argila pequenas bolinhas e pontas dotadas de furos. Olhos de bonecas, docinhos e massinhas de farinha que lhes eram proibido de comer na infância. Após a queima, elementos cerâmicos, linhas e tecidos de cores e texturas diversas são costurados sobre a meia. A prática do cozer a memória confere movimento próprio à construção e estabelece um organismo autõnomo que seduz e espreita o espectador. Na exposição, foram sacralizados em objeto de design estético ao serem apresentados sobre tradicionais cubos expositivos, Figura 3. Envoltos em um tule transparente em simbiose com o tecido de "mosquiteiros", Figura 5, que por vezes nos protegeram de outros organismos vivos. E sobrepostos às texturas das paredes, como um hospedeiro que se nutre dos vestígios da passagem do tempo, Figura 4.

 

 

 

 

Por mais que o espectador seja o agente motor do sentido do tato, são os organismos que espreitam, observam e invadem o cotidiano perceptivo do outro. Por vezes, aparentemente passíveis e imóveis, sobre a superfície branca, como um animal em caça, fazem uso de suas atribuições de cor, textura e maleabilidade para encurtarem a distância de suas presas. A altura dos módulos, porém, deixa claro que às presas de idade mais tenra, afoitas e singelas, só é permitido o jogo mediado pelas maiores, provedoras. Por de trás do tule, penduradas no madeiramento do telhado, balançando ao vento e iluminadas pelo crepúsculo que invade lateralmente as janelas da oficina, internos aos seus casulos, se encontram em hibernação. Em abundância de branco e texturas, se protegem do predador que circula ao redor. Já nas paredes e cantos desgastados da oficina encontram seu habitat natural, delicada e lentamente se deslocam pelo espaço, expandem seus cotidianos e atenuam as fronteiras da cadeia perceptiva. Presas, caçadoras e caçadores, em seus percursos espaço temporais próprios, observam e compartilham deslocamentos e transpirações, uma das outras, dos outros.

 

Conclusão

Para avaliar os sistemas poéticos de Márcia Braga e demais artistas que propõem um campo de interatividade física com o espectador, é importante colocar o corpo perceptivo em estado de suspensão, em uma temporal imobilidade frente às intenções da obra. Trata-se de um exercício crítico de análise. As dualidades e potencialidades inerentes ao embate relacional e participativo se encontram no intervalo da espreita, impregnados no pensamento imaginativo, no instante anterior a consumação carnal dos sentidos. Um estado de latência relacional que propõe uma escolha, um desafio. Em "Comer o livro", a escolha está em poder do espectador que invade a redoma, rompe a sacralização obra-espectador e leva a primeira letra-bolacha à boca, para, em seguida, devorar o livro ou gerar novas fendas perceptivas, múltiplas ramificações imaginativas. No espaço da antiga oficina, é a obra-caçadora, "Este corpo já foi meu", que espreita o espectador-presa. Por mais que o último possa, seduzido pelos atributos estéticos do primeiro, reduzir o encontro a vivência de seu tato e visão, por meio da perpetuação dos perfectos e afectos (Guatarri & Deleuze, 92) estabelecidos na presença da obra, o confronto ocorrerá, com certeza, em outro tempo e espaço.

 

Referências

Braga, Márcia (2014) "A palavra ingrediente: receitas para uma arte cotidiana hoje." TCC (Trabalho de Conclusão de Curso) Bacharelado em Artes Visuais – Instituto de Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.

Cícero, Antonio (2002) "A cidade e os Livros". A cidade e os Livros. Rio de Janeiro: Record. [Consult. 2014-10-18] Disponível em URL: http://www.avozdapoesia.com.br/obras_ler.php?obra_id=14843&poeta_id=387. Acesso em: 10 de outubro de 2014.         [ Links ]

Deleuze, Gilles & Guattari (1992) "Perfecto, afecto e conceito." O Que é filosofia? Rio de Janeiro: Ed. 34. ISBN: 978-85-85490-02-07.         [ Links ]

Ramos, Paula (2015) "Márcia Braga: da vida toda." Texto da curadoria da exposição, Este corpo já foi meu, realizada na Vila Flores em na cidade de Porto Alegre.         [ Links ]

 

Artigo completo submetido a 18 de janeiro de 2017 e aprovado a 5 de fevereiro 2017

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: carustocamargo@ufrgs.br (Carlos Augusto Nunes Camargo)

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