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Revista :Estúdio
versão impressa ISSN 1647-6158
Estúdio vol.9 no.22 Lisboa jun. 2018
ARTIGOS ORIGINAIS
ORIGINAL ARTICLES
Ilídio Salteiro: Pensamento, Partilha e Comunicação Visual, a pintura contemporânea como ato de 'Religare'
Ilídio Salteiro: The thinking, The sharing and Visual Communication, Contemporary painting as an act of 'Religare'
Cláudia Matos Pereira*
*Brasil Artista plástica.
AFILIAÇÃO: Universidade de Lisboa, Faculdade de Belas-Artes, Centro de Investigação e estudos em Belas-Artes da Universidade de Lisboa (CIEBA). Largo da Academia Nacional de Belas Artes 14, 1200-005 Lisboa, Portugal
RESUMO:
Este artigo propõe uma reflexão sobre a paisagem como conceito, na obra de Ilídio Salteiro, a partir de dez pinturas, de diferentes séries. Pretende-se analisar como esta paisagem convive com a arquitetura, que por vezes desaparece e se transmuta em topografias imaginárias. Como a pintura contemporânea pode ser um exercício de 'Religare?'
Palavras chave: Arte / pintura contemporânea / imagem e cultura / multiculturalismo / globalização.
ABSTRACT:
This article proposes a reflection on the landscape as a concept, in the artistic work of Ilídio Salteiro, from ten paintings, of different series. It is intended to analyze how this landscape coexists with architecture, which sometimes disappears and transmutes into imaginary topographies. How can the contemporary painting be an exercise of 'Religare?'.
Keywords: Art / contemporary painting / image and culture / multiculturalism / globalization.
Eu vejo sentindo.
— Gloucester para Lear, em Rei Lear, Shakespeare, Ato IV, Cena 6
Introdução
Ilídio Salteiro é um artista plástico português, nascido em 1953 em Alcobaça. Sua pintura apresenta uma densidade conceitual e profundidade reflexiva, observáveis no decorrer de sua trajetória como artista. O Centro do Mundo foi o tema de uma série recentemente exposta, dentre muitas exposições já realizadas pelo artista, desde 1979. Atualmente ele prepara a série Babel para exposições agendadas em 2018, como a que inaugura em janeiro, Faróis e Tempestades. Este artigo é a primeira publicação da parte de um estudo maior, dedicado ao artista.
1. O imaginário do artista
O universo simbólico de Ilídio Salteiro é especialmente denso, assim como sua obra. Há influências de pintores centrais que configuram seu arcabouço imagético. Com Giotto, percebe-se a predileção pelo mundo medieval e renascença.
Seus fascínios advêm da cultura ocidental, de raízes tão conhecidas. Giotto representa para ele, o pai da pintura moderna, das volumetrias, da introdução da arquitetura no espaço pictórico, da paisagem e da inovação do espaço. "Giotto redescobriu a arte de criar a ilusão de profundidade numa superfície plana" (Gombrich, 2005:201). "É uma pintura muito calculada, também muito surrealista." Não aquele movimento circunscrito e nomeado pelo grupo de pintores do século XX. É sobre o surrealismo na pintura que se fala — na totalidade. "Toda ela tem uma dimensão surrealista" (Ilídio Salteiro, comunicação pessoal, 23 dezembro 2017).
Os azuis que ele utiliza na pintura, se baseiam em El Greco, como também, algumas pinceladas.
A sensação de se deparar com uma atmosfera enigmática, presente na obra de Chirico (Gombrich, 2005:589) assim como o uso de sombras misteriosas, luzes intensas e perspectivas distorcidas (Janson, 2010:997) são elementos que influenciam a pintura do artista.
As ambiguidades entre as imagens da realidade e 'as imagens das imagens' da realidade, perceptíveis nas obras de Magritte (Argan, 2008:480), acrescentam-se ao ideário criativo de Ilídio. Em sua série de pinturas do Catálogo de Exposição em Oeiras (Salteiro, 2007:7-13) o artista pinta, em algumas delas, balões sobrepostos às paisagens, semelhantes aos das bandas desenhadas, que se tornam elementos da composição. Neles aparecem escritas, as perguntas que nomeiam as obras: Were is the life? Where was the museum of contemporary art? Where is the painting? Logo a seguir, outra série de pinturas é nomeada pelo artista como: Nem tudo o que parece é! Ou Ceci nést pas une pipe (Magritte). Constata-se a influência de Magritte nas obras de Ilídio Salteiro, através deste jogo simbólico.
2. Presépio — o cenário fundador de seus ícones
Entrar na casa, no lar de um artista é como abrir um baú com segredos guardados pelo tempo. À esquerda da escada que leva ao atelier, inúmeras peças de coleção de toda uma vida, referentes a Presépios, estavam dispostos em cerca cinco prateleiras. Coleção de Ilídio e de sua esposa Dora-Iva Rita, também artista plástica. Ao dialogar sobre as peças, pude ver ali os componentes simbólicos essenciais que perpassam toda a sua obra — a gruta (Montanha), a Ponte, o Ninho (manjedoura), a Casa, o Lago, e tantos outros elementos. Instantaneamente compreendi toda a dinâmica de sua criação.
Ilídio afirmou: "o Presépio é um grande universo, representado numa escala muito pequenina, mediante a organização das peças por uma autoridade." Ele reflete: "com a pintura ocorre a mesma situação: há uma autoridade a compor o espaço e a atmosfera, que é o artista" (Ilídio Salteiro, comunicação pessoal, 23 dezembro 2017).
Esta construção da paisagem relembra a metodologia nas terapias Junguianas, em que as imagens construídas a partir da colocação das peças sobre a areia, geram o diálogo entre inconsciente e consciente.
3. Obras — Paisagens Conceituais
Segundo Giulio Argan (2005: 49) "o que interessa do artista não é mais a concepção formal do mundo, mas a condição existencial, o estado psicológico, sua condição histórico-social." Propõe-se uma breve imersão na subjetividade e trajetória de Ilídio Salteiro, em dez obras pontuais. Para António Damásio (2017: 208-209) "o mecenas essencial da consciência é a subjetividade". As imagens que povoam a nossa mente "tornam-se automaticamente nossas imagens pessoais."
Na Figura 1, no lado direito estão algumas obras do artista na parede de seu atelier. Vemos alguns ícones: Ponte, Museu, Casa. Linhas e números são elementos composicionais e protagonistas da cena, que expressam a necessidade de controlar o espaço e a realidade. As cores do fundo apresentam leves gradações de tons. A geometria representa o universo humano, em uma dimensão transparente. O silêncio — a ausência — habitam o espaço com suas paredes cristalinas.
No lado esquerdo da Figura 1, vemos a obra da série Nem tudo o que parece é! Ou Ceci n'est pas une pipe, (Magritte), um tríptico. Há duas sentinelas verticais — guaritas — que controlam cada lado da obra. São testemunhas. Existe um sentido de opressão e o desejo de amplitude, expressos nas aberturas demarcadas. A Montanha parece engolir uma casa. Na sua entrada é possível ver somente dois degraus. As aberturas superiores remetem à ideia de céu ou de dois lagos. Onde surgem os azuis: água ou céu — emoção fluida — sobressai a sensibilidade contida.
Segundo Ilídio (Ilídio Salteiro, comunicação pessoal, 23 dezembro 2017) a pintura Cinco casas de frente para mim (Figura 2) representa a imagem que ele tem do mar a ver as casas. Ele nunca esteve nesta posição e sempre as observava de perfil. Tenta reconstruir. Luz e sombra criam uma ambientação enigmática e dramática. As distorções na perspectiva, aliadas às linhas radiais provenientes dos telhados, trazem a impressão de que as casas irão partir do fundo da tela, em nossa direção. Poucas janelas, em relação às paredes fechadas, criam o ambiente introspectivo. Os vermelhos dos telhados emitem a sensação de aquecimento e trazem um peso visual que equilibra as verticalidades luminosas. Uma luz acesa na casa central é um sinal de vida.
A Casa interior II, na Figura 3, pertence a uma série de dez trabalhos, de mesma estrutura. O canto de um espaço interior e uma paisagem que se vê através da janela, configuram uma ideia de janela renascentista. São vestígios de casas que também podem ser objetos, ou maquete. Segundo Susan Woodford (1999:84) os artistas do primeiro Renascimento racionalizaram o espaço e em certas ocasiões, representavam extensões da casa/lugar, para as quais as pinturas foram criadas. A luz aqui é um elemento compositivo, onde é necessário dar forma e não obedece regras. Pela janela se vê uma paisagem com pinceladas emocionais e movimentadas. O artista expressa o mundo racional através da arquitetura e o mundo psíquico-emotivo, em um espaço de limite dominado. A água serena e límpida, encerrada em um tanque, pode ser vista simbolicamente como emoções guardadas em um recipiente.
A obra Memória de um lugar (I/IV), na Figura 4 retrata o fascínio de Ilídio pelo Mosteiro de Alcobaça, um marco em sua vida e o primeiro Museu visto por ele. Lugar de suas vivências íntimas, que sintetiza conceitos utilizados em seu processo artístico. Os claustros e espaços são para ele, microuniversos. O claustro representa uma ilha, que é uma ideia sempre presente. Na região central do claustro se vê uma árvore, que nos relembra a frase de René Char: "o fruto é cego. É a árvore que vê." O pintor coloca o espectador na posição de um voo panorâmico. Ilídio é o mirante e é ele "quem dá a ver".
Nesta obra a emoção domina a razão. As pinceladas expansivas e emocionais avassalam o espaço da tela. O Mosteiro se torna ilha, centro, envolto em uma espécie de Ninho. Essa pintura anuncia temas posteriores.
A Casa com paisagem, na Figura 5, segundo Ilídio, expressa o alpendre que se relaciona com: peregrinos, varandas, hospitalidade e proteção das pessoas. Sugere-se a interpretação desta obra, colocando o alpendre como expressão do ícone da Ponte. Ela conecta o mundo intimista do interior da casa enigmática, com um espaço maior de luz e respiração. A sombra triangular projetada, em amarelo à esquerda, traz a sensação de que a Casa imersa na sombra obscura, poderia estar em precipício. O alpendre seria a ponte com o mundo exterior e iluminado.
Esta arquitetura desenvolve-se: alpendre — Ponte — Cama (Figura 6). Os elementos arquitetónicos do alpendre se repetem na concepção da Cama. A Cama é lugar, é espaço e a paisagem que transborda no reduto mais íntimo do homem — os lençóis e colchas tornam-se topografias. Este tecido topográfico é um território. Há uma atmosfera concêntrica de gestos no entorno da Cama, que parece flutuar, com possibilidade de girar. Alguém pode estar ali ou não, mas o que há, de fato, é matéria-paisagem.
Em The Bed Square, na Figura 6, Ilídio Salteiro joga com o título da obra, usando uma ironia, já que o formato da tela é quadrado. A grande diagonal, atravessa o quadrado, de dois metros de lado. Ele faz uma provocação lúdica, entre The Bed Square, a Praça e a Cama — entre o espaço público e o espaço íntimo (Ilídio Salteiro, comunicação pessoal, 23 dezembro 2017).
O quadro Paisagem corpo, na Figura 7, segundo o artista, "é a terra, vista como corpo", uma ideia de micro e macrocosmos, da mesma maneira que podemos ver a Paisagem Prometida, na Figura 8, uma paisagem-corpo (Ilídio Salteiro, comunicação pessoal, 23 dezembro 2017).
Nesta pintura da Figura 7 ainda se vê a abertura de um espaço arquitetônico, que pode ser uma Casa, ou Templo, ou Museu. A paisagem invade a arquitetura ou é invadida? Duas montanhas e um rio promovem uma dicotomia entre a razão e a emoção. Entre o controle do caos (arquitetura) e o desejo de abertura espontânea (pinceladas matéricas). Parece ser uma paisagem invertida, que sai do fundo do quadro e vem até nós.
A Paisagem Prometida, Figura 8, é "uma paisagem, mas é um corpo, como se fosse uma coisa que nós pudéssemos moldar," afirma Ilídio Salteiro (Ilídio Salteiro, comunicação pessoal, 23 dezembro 2017). Parece ser um zoom na pintura da Figura 7, fora da arquitetura. O artista relata que "são pedaços" que denomina de "corpos:" possuem personalidade, uma entidade específica — são coisas vivas, há vegetação, animais, pessoas, vento, sol, chuva, uma vida própria. Mas não se vê nitidamente, se vê do alto.
As arquiteturas e as delimitações do espaço desaparecem. As agitações e o caos penetram e invadem toda a obra. Tudo passa a ser a emoção fluida. Neste sobrevoo pode-se vislumbrar um mar de montanhas.
O mar, os mapas e ilhas povoam o processo criativo do artista. Na Figura 9, A Ilha do Tesouro: topografia ideal, apresenta um sobrevoo de maior altitude. Há um universo imerso em água, uma abertura central e muita luz. Uma estrada fecha-se sobre si mesma. Estaria o ser humano andando em círculos, na mesma circunstância? Segundo Ilídio, a estrada "é um acontecimento em perpétuo reinício" (Ilídio Salteiro, comunicação pessoal, 23 dezembro 2017). Marco Giannotti (2009:13) afirma: "toda criação é uma espécie de colagem de tempos diversos." Uma ilha que está no ideário medieval é vista como paradisíaca. Porém elas também são tempestade, disputas, conhecimento, passado e futuro. As ilhas convivem com dois contrastes: descoberta e fuga. Para Ilídio Salteiro, "a ilha é também um barco" (Ilídio Salteiro, comunicação pessoal, 23 dezembro 2017).
Na pintura Babel, Figura 10, a visão topográfica da paisagem apresenta um conjunto de pequenas ilhas interligadas, uma organização de povoamentos subterrâneos, onde está o futuro. Na parte externa encontra-se o passado, como uma metáfora ao texto de Padre Antônio Vieira, História do Futuro. Estamos diante de topografias imaginárias, ausência da arquitetura e forte conotação orgânica. Em Babel, há um caos gerido e aparente intercâmbio. Os orifícios, ninhos e grutas são elementos fortes na composição. Indicam vida interior e resistência. As pinceladas remetem à ideia da presença de fios condutores ou de vasos comunicantes. Tudo é conexão.
Segundo Ilídio, essa ideia de centro existe "para que o ser humano não se esqueça que é de fato, o Centro do Mundo e de que nós não somos periferia, devemos crer em uma verdadeira multiculturalidade" (Ilídio Salteiro, comunicação pessoal, 23 dezembro 2017).
O ato de Religare — considerações finais
Pintar hoy es un acto de resistencia que satisface una necesidad generalizada y puede crear esperanzas.
— John Berger (2009)
Espaço, matéria, ausência etempo, são marcantes no percurso da pintura de Ilídio Salteiro e são, sobretudo, questões primordiais tratadas na arte contemporânea. Para Ilídio, "a pintura é um ato de verdade". Ele afirma: "minha pintura cumpre a função de ligar o que está desligado e ajuda a decifrar as coisas da vida. A arte é uma religião sem Deus, sem Bíblia, sem um texto, sem dogmas, tudo é subjetivo, tudo é verídico" (Ilídio Salteiro, comunicação pessoal, 23 dezembro 2017).
Para o artista, o termo Religare é um "ligar novamente", "religar" "conectar o que se encontra desconectado", sem vínculo com a ideia de culto. Ilídio Salteiro se preocupa fundamentalmente com questões atuais, como a globalização e a multiculturalidade. Estamos conectados full time em rede, mas muitas vezes desconectados de nós mesmos e do indivíduo que está ao lado. A arte é conexão. É tempo de religar. Ele afirma: "a minha pintura é um Pensamento Continuado. A arte serve para servir aos outros, a Partilha é simples. O ato se faz através da Comunicação Visual e busca um Religare".
Referências
Argan, Giulio C. (2008) Arte Moderna. São Paulo: Companhia das Letras. ISBN 978-85-7164-251-5 [ Links ]
Argan, Giulio C. (2005) História da arte como história da cidade. São Paulo: Martins Fontes. ISBN 85-336-2147-7 [ Links ]
Berger, John. (2009) Algunos pasos hacia una pequeña teoría de lo visible. ISBN 978-84-88020-08-6 [ Links ]
Damásio António (2017) A estranha ordem das coisas: a vida, os sentimentos e as culturas humanas. ISBN 978-989-644-334-4 [ Links ]
Giannotti, Marco (2009) Breve história da pintura contemporânea. São Paulo: claridade. ISBN 978-85-888386-71-6 [ Links ]
Gombrich, E. H. (2005) A história da arte. Londres: Público. ISBN 989-619-007-0 [ Links ]
Houayek, Hugo (2011) Pintura como ato de fronteira: o confronto entre a pintura e o mundo. Coleção pensamento em arte. Rio de Janeiro: Apicuri. ISBN 978-85-61022-46-4 [ Links ]
Janson, Anthony F. & Janson, Horst Woldemar (Ed.) (2010). A Nova História da Arte de Janson: a tradição ocidental. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. [ Links ]
Salteiro, Ilídio (2017) Faróis e Tempestades: anotações de um processo artístico. Lisboa: FBAUL-CIEBA ISBN 978-989-8771-92-6 [ Links ]
Salteiro, Ilídio (2013) O centro do mundo. Lisboa: DPI Cromotipo. ISBN 978-989-98475-0-7 [ Links ]
Salteiro, Ilídio; Morais, Maria (2007) Ilídio Salteiro [Catálogo de Exposição] Oeiras: Livraria-Galeria Municipal Verney/ Camara Municipal de Oeiras. pp.01-30. [ Links ]
Woodford, Susan (1999) Introducción a la Historia del Arte: como mirar un cuadro. Universidad de Cambridge. Barcelona: Editorial Gustavo Gili. ISBN 84-252-1242-1 [ Links ]
Enviado a 04 de janeiro de 2018 e aprovado a 17 de janeiro de 2018
Correio eletrónico: claudiamatosp@hotmail.com (Cláudia Matos Pereira)