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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.9 no.23 Lisboa set. 2018

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

João Paulo Queiroz: a imagem de uma imagem

João Paulo Queiroz: the image of an image

 

Margarida Penetra Prieto*

*Portugal artista visual e professora.

AFILIAÇÃO: Universidade de Lisboa; Faculdade de Belas-Artes; Centro de Investigação e Estudos em Belas-Artes (CIEBA). Largo da Academia Nacional de Belas Artes 14, 1200-005 Lisboa. Portugal. Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias (ULHT); Escola de Comunicação, Arquitectura, Artes e Tecnologias da Informação (ECAATI). Campo Grande, 376 1749-024 Lisboa — Portugal.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

Este artigo debruça-se sobre o projecto de trabalho de João Paulo Queiroz onde a observação directa, o seu registo pelo desenho e a fotografia como documento desse desenho feito no contexto e lado a lado com o modelo que o originou, permite pensar a imagem e a sua vocação no âmbito das representações.

Palavras chave: imagem / desenho / pintura / fotografia / projecto.

 

ABSTRACT:

This article is about the work in progress by the artist João Paulo Queiroz and concerns the direct observation of a particular place, its registration throughout painted drawings which are photographed side by side with the observed model, the nature, in context, thus allowed us to think about the images generated by artistic representation.

Keywords: image / drawing / paintig / photography / project

 

Introdução

João Paulo Queiroz é um autor português. É a paisagem de Portugal, num local absolutamente específico identificado como Valinhos, em Aljustrel, Fátima, perto da Loca do Anjo, que João Paulo Queiroz toma como atelier para gerar as suas séries de imagens: de um lado os desenhos-pictóricos feitos com pastel de óleo sobre cartolina negra (Figura 1, Figura 2, Figura 3, Figura 4, Figura 5, Figura 6, Figura 7, Figura 8) e, de outro lado, as Evidências fotográficas.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O seu método, embora aparentemente antiquado, tem toda a pertinência na actualidade porque se trata de aplicar literalmente o conceito work in progress. O seu procedimento começa pela observação do mesmo lugar, na mesma altura do ano — o Verão — mas por um curto espaço de tempo, ano após ano desde 2005 (até hoje) e sem data prevista para terminar. A partir deste exercício de observação directa da natureza, o artista passa literalmente os dias a pintar desenhando a natureza, sob um sol quente de Verão. Desenho após desenho, e durante o tempo de luz de um dia inteiro, somam-se registos gráficos pelos de cor e de um sentido pictórico cujos títulos remetem para esse dia e para uma sequência relativa que remete para a ordem e sequência da sua produção. A organização impera nesta identificação do trabalho que é, simultaneamente, uma catalogação, e está implícita na apresentação pública dos desenhos num contexto expositivo. A série de 2017 foi produzida entre 9 de Agosto 2017 e terminou a 6 de Setembro 2017 e intitula-se Valinhos 2017. Todas as séries têm títulos diferentes. Mas todo o projecto assume o título genérico Fátima.

 

1. A disciplina do desenho au plein air

O trabalho de João Paulo Queiroz é infinito porque infinito é o seu programa artístico. A finalidade é representar o tempo representando a sua manifestação nas coisas da natureza, sendo esta natureza, o atelier, o lugar, o modelo, o contexto, o ambiente atmosférico próprio ao período anual reservado a este exercício.

No trabalho de João Paulo Queiroz, o modo como as imagens são geradas é de um tremendo esforço e disciplina (Queiroz, 2017:222). Justamente, em pleno Verão, trata-se de reunir toda a energia necessária, cada dia, para dedicar à observação e ao registo gráfico e pictórico do que está a ser visto, a cada instante, enquanto a luz do sol permite e durante o movimento que este astro visivelmente manifesta no céu. O sol que dá a ver é o mesmo sol que queima e aquece o território contemplado e que torna tão dura a tarefa do seu registo. A dificuldade é dupla porque o movimento lento do sol no céu é demasiado rápido e produz manifestas alterações nas sombras próprias e projectadas dos corpos naturais observados, e igualmente, aquece gradualmente o ambiente tornando-o ardente.

Este sol queima o corpo e os olhos do artista com a intensidade com que vibra sobre as coisas que ilumina, em cada Verão: aquele chão de terra solta povoada com as mesmas pedras e rochas, com as árvores que vão crescendo, com as ervas, com o céu e as suas nuvens sempre em alteração de forma. O calor deste sol derrete as barras de pastel de óleo colorido que, assim, amaciam o traço que desliza, como manteiga, deixando um rasto rico de pigmento no papel e nas mãos. A intensidade do calor deste sol distorce a realidade, aderindo languidamente à imagem percepcionada. As ondas deste calor fazem ondular a visão da natureza: secam e distorcem. A imagem óptica é turvada pelo calor — como num deserto — e perturba a percepção. Altera-a e, com ela, a imagem registada. Não se trata de alucinações, mas de percepções onde o cansaço se impõe sobre a atenção prolongada. Os dias de Verão são muito compridos nas suas horas de luz e o Verão mediterrâneo têm uma qualidade luminosa única tornando as cores mais vivas e a paleta maior. E, justamente quando o sol se começa a pôr ou quando nasce, os bastonetes e os cones do olho humano trabalham simultaneamente e colaboram na análise da luz que entra na pupila tornando as imagens da percepção mais nítidas, ricas cromaticamente e contrastadas. Nestes momentos do dia, a imagem é, em tudo, mais: mais pormenorizada, mais colorida, mais rica em contraste. Tudo se vê melhor e como se mais belo. É nestas horas (muito cedo ou muito tarde) que as imagens da natureza nos prendem e se destacam da espuma dos dias. É nestas horas que a natureza nos faz ficar apaixonados pela sua luz, pelas suas pedras e rochedos, pelo arco-íris celestial nas suas modificações lentas, pelo chilrear dos pássaros que acordam ou adormecem ao ritmo do jogo entre os astros celestes. É nestes momentos que a ordem das coisas se restabelece visivelmente e, com ela, os homens reconciliam-se com os seus deuses.

Começou por não ser nadade projetado. Uma experiênciade pinturanaquele terreno. Depois fui voltando. A teimosia não é premediatada. Nunca sei se vou voltar. Cada pintura parece-me correr sempre mal — penso quase sempre que é a última, que vou desistir, arrumar as coisas e acabar com o desconforto de estar ali, só e ao sol, dias a fio. Aquilo é mesmo difícil. Mas quando se veem os trabalhos mais tarde, parece que eles voltam ávida. Que recuperam alguma coisadaquelas árvores, daquele sol, daquela intensidade viva. Isso acontece depois, porque lá ao pé, parecem-me muito pobres e longe do que vejo e sinto. Mas será natural: a natureza é sempre mais. A persitência interessa-me, como atitude. Gosto da obstinação de certos pintores: Corot, van Gogh, Cézanne, Silva Porto, Morandi… de facto é uma prova de resistência, não é uma prova de sprint. (Queiroz, 2017)

 

2. A representação do tempo: Carpe diem

A representação do tempo na pintura e no desenho depende da representação do espaço. Neste caso, o tempo coincide com o Verão e o lugar com Valinhos e com aquilo que, em Valinhos, tanto resiste ao passar dos anos como desaparece. É sobre isto que os desenhos pictóricos de João Paulo Queiroz dão testemunho num exercício em tudo contrário à monotonia: espelham o mundo e a sua natural alteração com o passar do tempo linear e cronológico (nascer, crescer e morrer) e com a rotação do tempo cíclico, sazonal, onde ecoam os ritmos da repetição oscilante entre o frio e o calor, o sol e a lua, a chuva e a seca, o dia e a noite e, claro, as estações do ano com a peculiaridade inerente a cada uma e que, no programa de trabalhos do artista dá ênfase ao Verão.

Já pintei noutros lugares. A pintura nos locais é-me familiar desde c. de 1990. Tenho centenas de paisagens feitas, sobretudo perto do mar, invernoso. A experiência de ter achado aquele lugar um lugar possível foi crescente, até se impor como esmagadora. Já ali vivi momentos muito perturbadores, desde animais vários que surgiram e pararam ao meu pé, esperando, ou tempestades imensas, ou temperaturas insuportáveis, mas que aguentei, e trabalhando. Ou conversas com alguns estranhos que de alguma forma me puseram à prova. Enfim, o deserto. E também senti coisas que não consigo transmitir, mas que se explicaram. Trata-se de estar em comum (Queiroz, 2017).

No projecto de revisitação de um lugar, os desenhos nascem de um método e de um princípio de repetição criativos, onde nada jamais se repete verdadeiramente porque, de cada vez, é já outro. A repetição tem, assim, uma importância fundamental e fundadora neste projecto. As repetições estruturais, nomeadamente aquelas que são patentes no arquitexto do desenho e da pintura ou que são inerentes ao método de trabalho, tendem a tornar-se imperceptíveis. Já as repetições de pormenores, de temas ou de figuras dentro da composição gráfica-pictórica dos registos de João Paulo Queiroz funcionam como um Leitmotiv (elemento repetitivo) no exercício de reconhecimento: vários pequenos temas e/ou figuras e/ou adereços estruturam e unificam uma rede de convocações, numa articulação do visível e do visual. Estas repetições estruturais são visíveis em cada série, desde 2005, através dos enquadramentos preferidos em cada ano. Por exemplo, o enfoque sobre o chão e as pedras em detrimento das copas das árvores e do céu é estrutural numa das séries. As nuvens e as suas formas, assim como o recorte e expressão caracterizadora das copas de cada árvore específica e autóctone no contacto com o limite azul do céu são tratados com mais acuidade numa outra ocasião. Os planos aproximados caracterizam outra série e os afastados, outra ainda. São estas repetições que permitem compreender a série como conceito e agrupar os diferentes desenhos e pinturas que compõem cada uma, ao longo de doze anos. Pode então a firmar-se que dentro de um método que é estruturalmente repetitivo são geradas as alterações fundamentais, de cada vez, em cada ano, em cada série. René Passeron entende a «repetição estrutural» como uma repetição interna à obra:

A análise estrutural da obra, se faz aparecer os efeitos repetitivos mais ou menos deliberados, abre a uma estética da repetição, estética mais ligada à concepção e previsão de efeitos intencionais do que à prática, integrada ou não, de uma repetição instauradora (Passeron, 1982:11).

No capítulo Poïétique et Répétition, o autor distingue mais quatro as tipologias de repetição, a saber: a repetição estéril, a ascética, a integrada e a que antecipa e/ou antecede uma acção final, um factum est. Entre estas quatro repetições dá-se uma mudança de grau ou nível e, igualmente, de intenção. Assim, a repetição «estéril» que é definida como ritualização do gesto repetitivo em automatismo e que, por isso, determina o grau zero da poiëtica, é uma repetição sem um sentido criativo de facto e muda o seu estatuto para «ascética» quando o exercício ritual é penitente e, logo, está liberto de toda a indiferença. Se este exercício exige uma tekhné, como a prática instrumental, trata-se de uma repetição «integrada». Por último, o mais elaborado exercício de repetição é aquele que antecipa um factum est, e tem um carácter performativo constituindo-se por todos os exercícios repetitivos necessários e preparatórios (do desenho e da pintura): de cada vez que se repete, repete-se para um aperfeiçoamento.

No trabalho de João Paulo Queiroz estão patentes estes quatro registos da repetição. O primeiro, com a sua dimensão ritualizadora, é visível na medida em que há uma acção sempre em aberto no modo como se usam os materiais gráficos — um riscar automático, um gesto imediato que gera uma determinada textura visual e que, ao fim de doze anos, se torna um recurso plástico numa lista de recursos técnicos. O segundo registo repetitivo está implicado nos materiais utilizados: os mesmos pastéis de óleo sobre o mesmo papel negro que é uma escolha permanente depois de alguma pesquisa (patente nas primeiras séries) e que é geradora de um efeito específico, plástico, que o artista explora de modos distintos, de cada vez. O terceiro modo de repetição revém da aplicação das técnicas gráficas e das opções no acto fotográfico que, também elas, derivam de um domínio técnico que é usado ao serviço de uma qualidade visual, plástica e estética. O último modo repetitivo está patente quer no retorno ao exercício, anualmente, quer no fazer de cada um dos desenhos pictóricos. Neste, justamente, a natureza da acção é semelhante e os resultados são afins quer na qualidade, quer no propósito, mas em tudo os desenhos se distinguem porque a direção do olhar do artista e o enquadramento que determina a composição se modificam, de cada vez.

A paisagem observada transfigura-se num retrato — o de um lugar e o de um temperamento.

O lugar retratado, é apenas aparente o mesmo. De dia para dia há uma alteração subtil, quase invisível que, de ano para ano, se torna mais perceptível. Ao comparar as primeiras séries com as últimas, as diferenças são visíveis de modo peremptório.

Os desenhos-pictóricos também retratam o artista: mostram-nos persistência, dedicação e devoção ao seu projecto. Mostram a fidelidade a um lugar — um cenário de retorno carregado simbolicamente com a proximidade do santuário de Fátima e com a Loca do Anjo, lugar das aparições. E é a partir de desenhos-pictóricos, que registam as manifestações da natureza no plano do visível, que o artista se mostra e se expõe num exercício contra-corrente — que não podia ser mais actual: porque o artista é aquele que vê, que vê mais. Parafraseando Agamben, o artista é aquele que no seu tempo está fora de tempo, definindo, assim, «contemporâneo» como aquele que vê através do obscuro do seu tempo, que não se deixa cegar pela luz do seu século (Agamben, 2010:23). E sugere, como termo sinónimo para contemporâneo, o «inactual». Este acréscimo do «in» na palavra «actual» é revelador. Como elemento locativo latino, «in» significa «em» e «dentro», ou seja, «em actualidade» ou «dentro do actual», indicativo de concordância com o tempo presente. O «in», como prefixo negativo, é o elemento latino que vem privar ou retirar este acordo, esta aderência com o presente, para abrir uma dimensão de desconexão que coloca fora — o que lhe permite um distanciamento em relação ao tempo presente: tempo onde o indivíduo se inscreve, a que pertence, o seu «saeculum» (do latim, que significa «tempo de vida»). É na dupla acepção do «in» contida na palavra «inactual» que se define o contemporâneo: alguém dentro do seu tempo (duplo tempo: da vida biológica e da cronologia histórica) com a capacidade de se distanciar (capacidade individual que se manifesta como pulsão para além da vontade), num exercício de anacronismo que restaura a possibilidade do acto anamnésico e permite uma maior compreensão do seu tempo. O artista contemporâneo é aquele que age dentro da actualidade, que reage ao seu tempo, ao reage seu século. O distanciamento que o caracteriza é condição imprescindível que o distingue, permitindo analisar e criar, com uma lucidez ímpar, a actualização de qualquer coisa no presente (em presença), que vem do passado e se projecta no futuro. Assim, a relação com o mundo que caracteriza o contemporâneo é da ordem da experiência. «(…) A experiência é uma categoria central para a teoria estética de hoje» (Rebentisch, 2009:101) e é fundamentalmente diferente e distinta de um raciocínio, ou seja, não pode ser acrescentada ao sujeito.

A experiência é um termo que refere o processo entre sujeito e objecto e que os transforma a ambos: o objecto, na medida em que apenas e só através da dinâmica de experiência é trazido para a vida como obra de arte; o sujeito, na medida em que toma, sob a forma de auto-reflexão, a sua própria performatividade recorrendo a uma estrutura estranhamente familiar, acesso para o modo de aparecer do objecto. É a força performativa da imaginação que está na base desta experiência e o sujeito desta experiência é concreto (e não abstracto) (Rebentisch, 2009:101).

 

Dos desenhos-pictóricos às suas fotografias

O artista revela-nos a sua acuidade visual e o seu talento de desenhador e pintor em cada um dos desenhos que realiza e cuja verossimilhança é atestada com as séries fotográficas intituladas Evidências (Figura 9 e Figura 10). É curioso como as duas séries se potenciam numa relação interdependente. A fotografia faz-se imediatamente após o desenho para o mostrar em contexto, ainda e na medida do possível (porque fugaz e efémero), dá a ver o lugar e a dimensão das sombras, das formas das nuvens e das copas balançadas ao vento. A fotografia depende do desenho dado como terminado. Mas a aferição da qualidade de verossimilhança do desenho depende da fotografia que, assim, dá testemunho não só do trabalho in loco mas do grau de habilidade gráfica e pictórica do artista num exercício de observação directa. Evidências concentra dois paradigmas de legitimação da obra: o grau de afinidade e parecença (do desenho) com o modelo (Valinhos) e, ainda, a autoria — quem fez — aferindo que a mesma mão é a que desenha, a que segura o desenho, e que o fotografa em contexto. Na história da humanidade, a mão do artista impregnada de tinta é originalmente a sua primeira assinatura — a primeira marca autoral — sob a superfície rochosa das cavernas. Nas séries das Evidências, a mão é fotografada porque segura o desenho e está pintada de pastel amolecido com o calor. Esta mão pintada remete, simbolicamente, para o gesto criativo primordial. Embora a mão esteja sempre presente no desenho, através da sua marca — é a mão que risca, que segura os pastéis amaciados pelo calor e que os faz aderir ao papel em movimentos, ora suaves ou fortes, ora curtos e nervosos, ora extensos e lentos –, a mão não está representada no desenho. Esta mão é pensante, transforma o pensamento em acto. É a mão que (apenas) se vai mostrar na fotografia por razões técnicas e ágeis.

 

 

 

 

 

Conclusão

João Paulo Queiroz persiste em voltar a Valinhos, ano após ano, e a dedicar os seus dias a desenhá-lo. Há um sentido ritualizado e, igualmente, de realização (através da coisa feita — factum est) que revém da atribuição de um tempo — uma duração — para dedicar a uma atividade, ou seja, de atribuir um princípio e um fim a um projecto. Anualmente este projecto está demarcado, mas sem qualquer compromisso de se repetir no ano seguinte. É, portanto, de liberdade de escolha — fazer ou não, repetir ou não, de continuar ou dar por terminado — que se trata este projecto. É o artista que decide a sua duração anual, ou seja, quantos dias dedicar ao desenho in loco e é o artista que decide, a cada ano, se continua ou o dá por terminado. Nas questões que lhe foram colocadas numa troca de e-mail compreende-se que a dimensão ritualizadora estrutural ao projecto tem uma dimensão experiencial positiva e, também por isso, é agora esse tempo de trabalho dedicado que o toma como um íman, numa pulsão à qual o artista responde.

João Paulo Queiroz está ao serviço do seu projecto, literalmente. Neste ponto, reitero a pertinência do trabalho artístico que contraria a artificialidade do mundo actual, justamente pela oposição à velocidade que os recursos tecnológicos permitem e impõem no quotidiano e pela dimensão de experiência que lhe é inerente. Por outro lado, enquanto obra, o projecto de João Paulo Queiroz é em tudo de uma enorme pertinência na actualidade porque nos religa a uma região, quer dizer, apresenta-se como uma religião no sentido que a palavra tem de ritual, de ligação com a Natureza e com as suas forças — aquelas que fazem nascer e morrer e que se manifestam visivelmente através do crescimento das coisas vivas. Os seus desenhos-pictóricos dão testemunho deste crescimento das coisas vivas naturais e mostram um lugar à parte, separado pela sua qualidade tranquila, rude, arcaica. Um lugar sacralizado e, a seu modo, protegido das exigências próprias a uma humanização brutal e urbana. Neste lugar ainda se ouve a linguagem da Natureza pois o que aqui se manifesta são as coisas naturais: o céu com as suas nuvens e astros, a terra com as suas árvores e ervas, as suas rochas e pedras, e os animais selvagens ou perdidos. O equilíbrio intocado destes elementos na sua inter-relação é patente nos desenhos-pictóricos de João Paulo Queiroz onde, também ele, menos como intruso e mais como natureza, se integra para desenhar. Em todo o projecto está presente um sentido de Paraíso perdido e Valinhos é-nos mostrado como um lugar onde a natureza e a crença andam de mãos dadas. A paisagem rural contém a nostalgia do irrecuperável, como uma ruína, um lugar que em breve se extinguirá perante a ameaça de ser esquecido ou alterado irremediavelmente. O que permanece é todo o trabalho artístico gerado por João Paulo Queiroz, que será testemunho do seu olhar e da sua persistência naquele lugar, tão aparentemente igual à paisagem da estremadura peninsular e tão singular na sua história de aparições. Trata-se efetivamente de um lugar faz nascer imagens. (Numa associação de ideias, o termo "imagem" é utilizado comumente para designar as estátuas de cariz devocional dedicadas às figuras santas). E se Valinhos nos é mostrado à imagem de um Paraíso perdido ou imaginado, também aqui se dá a multiplicação das imagens através da fotografia que nos informa de modo evidente que estes desenhos não são imaginados (como poderiam ser as visões das aparições) mas são resultado de um esforço intelectual e artístico para ver (e mostrar) mais e melhor.

 

Referências

Agamben, Giorgio (2010), «O que é o contemporâneo», in Nudez, tradução de Miguel Serras Pereira, Lisboa, Relógio d'Água Editores.         [ Links ]

Passeron, René (1982), «Poïétique et Répétition», in Création et Répétition, Paris, ed. Clancier-Guenaud.         [ Links ]

Queiroz, João Paulo (2017), Cem vezes uma árvore, edição Printed On Demand, Lisboa, ISBN 978-1-36-639864-2        [ Links ]

Rebentisch, Juliane (2009), Questionnaire on «The Contemporary», in October, nº130, MA, MIT Press, Outono 2009.         [ Links ]

 

 

Enviado a 28 de dezembro de 2017 e aprovado a 17 de janeiro de 2018

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: emam.margaridaprieto@gmail.com (Margarida Penetra Prieto)

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