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Revista :Estúdio
versão impressa ISSN 1647-6158
Estúdio vol.9 no.23 Lisboa set. 2018
ARTIGOS ORIGINAIS
ORIGINAL ARTICLES
Apropriação e simulacro como estratégia de legitimação artística, um caso de estudo: Sandra Gamarra
Appropriation and simulacrum as strategy of artistic legitimation, a case study: Sandra Gamarra
Domingos Loureiro*
*Portugal, Artista Plástico.
AFILIAÇÃO: Universidade do Porto, Faculdade de Belas-Artes, i2ADS — Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade. Av. Rodrigues de Freitas, 265 , 4000-222 Porto, Portugal.
RESUMO:
O artigo apresenta o modo como dois processos moralmente questionáveis, a apropriação e o simulacro, têm sido utilizado por artistas como base para os seus projetos autorais e, sobretudo, como estratégia de legitimação artística. Além de fazer um enquadramento dos temas no contexto artístico, procura por em evidência o seu recurso em autores recentes, destacando um caso de estudo sobre a autora peruana Sandra Gamarra (1972). Procura-se fazer uma reflexão sobre como o recurso a estes processos é validado e legitimado, no âmbito da difusão artística, e de que modo definições como autor, autoria, criação e originalidade se sustentam.
Palavras chave: apropriação em arte / simulacro / autoria / difusão artística / LiMac.
ABSTRACT:
The article presents the way in which two morally questionable processes, the appropriation and the simulacrum, have been used by artists as abasis for their projects and, above all, as a strategy for artistic legitimation. In addition to making a framework of the themes in the artistic context, seeks to highlight its increasing use in recent authors, emphasizing a case study on the Peruvian author Sandra Gamarra(1972). It seeks to reflect on how the use of these processes is validated and legitimized in the context of artistic diffusion, and how definitions such as author, authorship, creation and originality are sustained.
Keywords: appropriation in art / simulacrum / authorship / art disclosure / LiMac.
Introdução
O termo apropriação é empregue no contexto artístico sobretudo a partir dos movimentos Cubismo e Dadaísmo (Argan, 1992), referindo-se ao uso de colagens de objetos quotidianos nas produções artísticas desses períodos.
Além das colagens de recortes de jornal ou papéis, utilizados por Pablo Picasso (ES, 1881-1973), Georges Braque (FR, 1882, 1963) ou Kurt Schwitters (AL, 1887, 1948), o ready-made utilizado por Marcel Duchamp (FR, 1887, 1968) será certamente o mais radical exemplo de apropriação, até meados do século XX. O termo refere-se à aplicação, no interior da prática artística, de elementos que lhe são estranhos, normalmente objetos do quotidiano (Argan, 1992).
As principais questões suscitadas por este recurso têm a ver com aspetos como originalidade, conceito, domínio técnico, real/fictício. Está ainda associado à ideia de transgressão, numa tentativa de rotura com os sistemas preexistentes, conforme nos refere Argan (1992), Archer (2008), entre outros.
O termo simulacro está intrinsecamente relacionado com a arte desde os seus primórdios, associado à imagem, à representação e encenação. Deleuze (1969), a partir da leitura de Platão, refere o simulacro associado à ideia de cópia mas também de uma experiência sobre a qual o observador perde o domínio e a capacidade de perceber que se trata de um simulacro. Para Deleuze, O simulacro inclui em si o ponto de vista diferencial; o observador faz parte do próprio simulacro, que se transforma e se deforma com o seu ponto de vista. (Deleuze, 1969, p. 264)
Nesse sentido, considera que o simulacro não será apenas uma cópia de um Modelo, mas que conterá em si uma intenção de ser coisa, e por isso Semelhante: Em suma, há no simulacro um devir-louco, (…) um devir sempre outro, um devir subversivo das profundidades, hábil a esquivar o igual, o limite, (…) (Deleuze, 1969, p. 264)
Tanto no ato de apropriação como no de simulacro, existe uma intenção reativa ou de transgressão, tendo contextos e alvos diferentes, mas frequentemente impulsionados por conceitos de subversão. Pelo que será na Modernidade que estes processos encontram um lugar fulcral como agentes intelectuais e práticos. O exemplo do ready-made empregue por Marcel Duchamp põe em evidência questões de autoria, de virtuosismo, de Real e ficcional, pelo que o autor será o centro de uma espiral com repercussões ao longo das décadas sucessivas. A imagem-objeto (imagem ready-made) (L, 2011), recurso primordial dos artistas da Pop Art: Europeia, com Gerhard Richter (AL, 1932) e Sigmar Polke (PL, 1941, 2010), e; Americana, com Jasper Johns (EUA, 1930), Robert Rauschenberg (EUA, 1925, 2008), Roy Lieschenstein (EUA, 1923, 1977), Jeff Koons (EUA, 1955), Jean-Michel Basquiat (EUA, 1960, 1988) ou Andy Warhol (EUA, 1928, 1987); mas, também de autores como Luc Tuymans (BE, 1958), Wilhelm Sasnal (PL, 1972), Eberhard Havekost (AL, 1967), Thomas Ruff (AL, 1958), Carlos Correia (PT, 1975), Sandra Gamarra, Martinho Costa (PT, 1977), é exemplo de apropriação em arte.
Em relação ao simulacro, autores como Maurizio Cattellan (IT, 1960), Hiroshi Sugimoto (JP, 1948), Thomas Hirschhorn (SW, 1957), Damien Hirst (EN, 1965), Cindy Sherman (EUA, 1954), Paulo Mendes (PT, 1966), Sara & André (PT, 1980, 1979), Olafur Eliasson (DI, 1967), Gillian Wearing (EN, 1963), evidenciam o quanto se trata de um recurso frequente na arte.
1. Roubar para inovar
Se num primeiro momento, o uso de elementos do quotidiano apropriados para a arte, versa questões como: originalidade, singularidade/múltiplo, criação, ilusão, representação, virtuosismo. Num segundo momento, encontramos práticas e autores que se apropriam ou simulam integralmente outros autores e fenómenos do campodaarte,como no exemplo apresentado por Banksy (EN,1974) apropriando-se de uma expressão de Picasso sobre a ideia de roubar as ideias de outros (Figura 1). A alteração entre o primeiro momento e o segundo é aparentemente simples, mas invoca questões de enorme importância para a compreensão deste fenómeno na atualidade. Trata-se de perceber como estas estratégias funcionam como forma de legitimação, quando, à partida, se assumem como processos de apropriação de autoria e identidade alheias, e, em senso comum e legal, reprováveis (Calejo, 2010). Autores como: Richard Prince (EUA, 1949) que, na série New Portraits (2015) (Figura 2), se apropria de imagens retiradas das páginas pessoais de utilizadores do Instagram, refotografando-as (Lauren, 2016) e apresentando-as como suas; de Sara & André, uma dupla que se apropria da estética de outros autores para cada uma das suas produções, onde se autorretratam; de Maurizio Cattellan, que na exposição Another Fucking Ready-Made (1996), na Galeria Appel em Amesterdão, apresenta o conteúdo exposição da galeria contígua, roubada antes da inauguração; ou do projeto LiMac — Lima Museu de Arte Contemporâneo, um museu fictício criado por Sandra Gamarra, onde a autora coleciona réplicas de obras e exposições; entre outros.
A legitimação destes autores é reconhecida pela sua inclusão em eventos, coleções e publicações especializadas em arte, como museus de arte contemporânea, revistas de arte, monografias, textos críticos, feiras de arte, galerias, entre outros, indicadores qualitativos que consideramos válidos para justificar a legitimação em contexto artístico. Assim, salientam-se algumas questões que aqui como: O que é a autoria?, Que direitos temos sobre as nossas produções? Pode o falso tornar-se autêntico?, a ser, Como se processa?, e finalmente, Até onde o autor que plagia se sente autêntico a fazê-lo?
Para responder a estas questões apresentamos a artista peruana Sandra Gamarra e a exposição realizada na 29ª Bienal de São Paulo, em 2010, com o projeto LiMac — Lima Museu de Arte Contemporâneo
2. Colecionadora de contrafação
Sandra Gamarra tem desenvolvido a sua prática artística no âmbito da pintura e da instalação. A sua pintura de cariz realista tem a particularidade de assumir-se como uma obra baseada no plágio e na apropriação de referências visuais muito concretas da História da Arte.
A artista refere, em 2012, por ocasião da sua participação na Capital Europeia da Cultura — Guimarães 2012, que no seu país de origem, devido à escassez económica, o mercado de contrafação tem enorme projeção e que, através destas marcas, os peruanos tentam responder ao desejo de posse de produtos inacessíveis. Nesse contexto, e apoiada numa analogia muito singular, a autora decide que poderia tentar obter aos seus objetos de culto através da contrafação ou da realização de réplicas de obras e objetos da sua admiração. Assim, dá início a uma longa produção de arte contrafeita reproduzindo obras, séries de obras ou mesmo publicações, dos autores que escolhe para a sua própria coleção de arte. Não se trata de uma produção de séries de réplicas, como as que encontramos em qualquer banca de recordações turísticas em Paris ou Amesterdão, de Monet, Van Gogh, ou Renoir, realizadas por empresas familiares na China. Trata-se de uma seleção de obras e autores que a artista escolhe de entre publicações de arte contemporânea como a Vitamina P, Art Now, Artistas do Milénio, entre outras. Todavia, não é latente a reprodução do original, mas da imagem impressa, pelo que entre pinturas de outros artistas, encontram-se imagens: de fotógrafos, de instalações, de esculturas, de performances, ou até mesmo réplicas das próprias publicações. E, tal como os produtos contrafeitos, verificamos a existência deliberada de debilidades na transposição da imagem, evidenciando as comuns imperfeições observadas nos objetos pirata.
3. Ser ou Ser
O LiMacLima Museu de Arte Contemporâneo, um museu ficcional, foi criado em 2002 pela artista depois de constatar que Lima era a única grande capital que não possuía, então, um Museu focado na arte contemporânea. Ao mesmo tempo, é o museu que acolhe toda a sua coleção de arte contrafeita, pelo que é ténue o limite entre a ideia de ficcional e de real.
O Museu, alojado em http://li-mac.org, tem uma agenda organizada, uma coleção de arte, exposições, textos críticos e até uma loja com merchandising, como qualquer museu (Figura 3). Contudo, tudo o que ali se encontra está imbuído nesta ideia de falso e irreal, sendo que, numa primeira visita ao sítio na internet, não ficam dúvidas de se tratar de um verdadeiro museu. O museu simulacro que se apropriou de autores e obras, existe ainda em itinerâncias e residências artísticas em diferentes espaços e exposições, como a estância na Fábrica Asa, em Guimarães Capital Europeia da Cultura, em 2012, ou na 29ª Bienal de São Paulo, em 2010. Estamos perante um exemplo de uma ficção que se transforma em realidade, já que o LiMac, desta feita não pode ser considerado como uma obra ficcional. Além da sua própria existência conceptual, a sua inscrição é realizada pelas permanências em diferentes lugares de legitimação artística.
4. A experiência real de uma ficção
Uma das estâncias ocorre na 29ª Bienal de São Paulo, em 2010. A organização que, ao não conseguir a cedência da série Oktober 18, 1977 (1988) de Gerhard Richter, presente no MOMA (EUA), decide desafiar a artista a reproduzir toda a série e a instalá-la como LiMac, no certame (Figura 4).
Na visita ao espaço de exposição, o espectador é induzido que está perante a famosa série do artista alemão, um conjunto de obras sobre o grupo terrorista Baader-Meinhof, realizado a partir de imagens recolhidas da imprensa, e que aborda uma temática associada à política, à liberdade e à morte. Contudo, uma margem branca, na parte inferior de cada uma das telas, suscita alguma confusão, tal como o nome da instituição que cede a coleção, o LiMac em vez do MOMA. Na dúvida, o espectador busca mais informação sobre o que estará a presenciar, recorrendo a documentos dispostos numa banca no centro da exposição. Estes, também plagiados, evidenciam as imperfeições que os objetos contrafeitos apresentam, tornando-se cada vez mais presente a ideia de hiato ou lapso, ficando mais óbvio que se estará perante um simulacro. Inicia-se então um processo de reajuste em que tudo o que se viu, pensou e experienciou é posto em causa. E, sobre essa primeira experiência é formulada uma segunda, em que se procura entender o que se presenciara e o que agora se presencia, onde as primeiras ideias colidem e interagem com as que agora se enunciam.
Richter apropriava-se de imagens que depois reproduzia através de pintura. Afirmava que o conteúdo das imagens não lhe interessava, que apenas reproduzia imagens e não conteúdos ou temas, que as imagens eram todas abstrações (Richter, 1995). Contradizendo-se, ou talvez não, assume que necessitou de realizar a referida série porque precisava de compreender e aceitar o que levara a que aqueles jovens se tivessem sacrificado por ideais, evidenciando que não estaria alheio aos conteúdos das suas imagens abstratas. Gamarra, por seu lado, plagia o que gosta, o que admira e gostaria de possuir. Ambos apropriam-se de imagens.
5. Ladrão que rouba ladrão
Privilegiando obras de cunho político, a 29ª Bienal de São Paulo, teve a curadoria de Agnaldo Farias e Moacir dos Anjos. Afirmou-se como uma ação política, tendo em vista que, além da escolha da série de Richter, que o MOMA certamente negaria a cedência, escolhem um projeto ficcional para reivindicar uma nova ação, a de legitimar o plágio.
Se num primeiro momento, a série de Richter é realizada com plágio de imagens de autoria alheia, a segunda série é realizada com o intuito de potenciar o questionamento do espectador para a validade de tudo o que se estaria a ver. Não se trata apenas de uma reflexão sobre o conteúdo das imagens originais, mas também do conteúdo que Richter incute quando primeiro as reproduziu em pintura e, finalmente do projeto que novamente as reproduziu e que agora as apresenta. Trata-se assumidamente de um processo de apropriação, mas que não se extingue nesse processo, originando a que, na dúvida, se esteja perante algo diferente e, potencialmente, inovador.
Conclusão
Não restarão dúvidas do modo como a apropriação e o simulacro estarão presentes na prática artística atual. Existe um número elevado de autores legitimados para se poder colocar em causa a sua pertinência, embora, moralmente permaneçam algumas zonas-sombra.
O caso de estudo apresentado evidencia o modo como a apropriação é relevante e, em certa medida, seria suficiente como estratégia de legitimação, tal como acontece com a obra de Richard Prince. Todavia, considera-se que será o simulacro que colocará em potência a obra e o projeto de Gamarra, legitimando-o. Como Deleuze nos descreve: há no simulacro um devir-louco, (…) um devir sempre outro, um devir subversivo das profundidades, hábil a esquivar o igual (…),que resulta da capacidade envolvente da experiência do simulacro, que o observador não pode dominar (Deleuze, 1996, 264).
O sucesso da legitimação da obra de Sandra Gamarra reside na capacidade de sugestão do simulacro (Figura 5). Gamarra condiciona o espectador na sua própria conjuntura, convidando-o a intervir e a evidenciar o seu conhecimento sobre o assunto simulado, para depois induzir o choqueda descoberta quevai transformar o observador e tudo o que pensara. Nesse sentido, como Deleuze aponta, o Simulacro ambiciona mais do que ser cópia do Modelo: — ambiciona ser Semelhante. Assim, as questões que lançamos anteriormente são respondidas pela capacidade de distinção desta figura em relação ao seu Modelo. Haverá, por essa razão, a necessidade de rever tudo baseando a procura na diferença e não na qualidade da proximidade. É a identidade do Diferente que potencia a importância do simulacro, porque coloca o original e o falso num mesmo patamar, o da verdadeira experiência. Neste sentido, a experiência tanto do original como do simulacro são idênticas, por se tratar de duas verdadeiras experiências. Assim, o Diferente é que o que se perceciona sobre cada um dos elementos, que será certamente distinto e certamente diferenciador e, como tal original e inovador.
Nota
Por opção conceptual, o autor decidiu apropriar-se de todas as imagens recorrendo à estratégia utilizada pelo artista Richard Prince, refotografando todas as imagens através do monitor.
Referências
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Enviado a 04 de janeiro de 2018 e aprovado a 17 de janeiro de 2018
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