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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.9 no.23 Lisboa set. 2018

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

Éder Oliveira, a Amazônia não é para os fracos

Éder Oliveira, the Amazon is not for the wimps

 

Orlando Franco Maneschy*

*Brasil, artista visual, curador independente e professor pesquisador.

AFILIAÇÃO: Universidade Federal do Pará, Faculdade de Artes Visuais do Instituto de Ciências da Arte. Rua Augusto Corrêa, 1 — Guamá, Belém — PA, 66075-110, Brasil.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

Este artigo concentra-se na produção do artista paraense Éder Oliveira (1983), nascido na antiga Timboteua, pequeno vilarejo junto da atual Nova Timboteua, município da zona bragantina no nordeste do Pará (Amazônia); filho de um professor e de uma dona de casa, o artista se criou entre a natureza, a escola e seus desenhos. Suas obras atingem o olhar de curadores e público, fazendo parte de acervos públicos e privados, como Coleção Amazoniana de Arte da Universidade Federal do Pará, Centro de Arte Dos de Mayo – Madrid, dentre outros, bem como de exposições no país e exterior, como por exemplo: Pororoca — A Amazônia no MAR, Museu de Arte do Rio de Janeiro, 2014; 31ª Bienal de Artes SP, 2014 e Fundação Serralves, Porto, 2015; Malerei — oder die Fotogafie als Gewaltakt, Kunsthalle Lingen, Alemanha, 2016.

Palavras chave: Pintura / Amazônia / Arte e Política.

 

ABSTRACT:

This article concentrates on the production of the artist Éder Oliveira (1983), born in the northeast of Pará(Amazônia), in avillage near the small town of Nova Timboteua, son of a teacher and ahousewife, the artist was created in the Bragantine zone, between nature, school and drawings. His works reach the look of curators and public, being part of public and private collections, such as the Amazonian Collection of Art of the Federal University of Pará; Dos de Mayo Art Center — Madrid, among others, as well as exhibitions in the country and abroad, like for example: Pororoca — The Amazon in the MAR, Museum of Art of Rio de Janeiro, 2014; 31st SP Biennial of Arts, 2014 and Serralves Foundation, Porto, 2015; Malerei — oder die Fotogafie als Gewaltakt, Kunsthalle Lingen, Germany, 2016.

Keywords: Painting / Amazon / Art and Politics.

 

Acompanho o trabalho do artista Éder Oliveira desde seu tempo de estudante, na Faculdade de Artes Visuais, e pude observar como questões acerca da ideia de identidade o norteiam desde os primeiros trabalhos, em que o rosto do artista, a partir de uma fotografia 3 x 4, retirada de seu documento de identidade, foi empregada como elemento para a construção estética e conceitual. Impressa em papel artesanal feita pelo próprio, a obra é composta por três imagens aparentemente iguais (Figura 1), mas trazendo diferenças sutis, já apontando para um debate que avança por sua produção: o retrato como índice de poder ou segregação; "desde ali já havia uma busca de um autorretrato da exclusão", como aponta o artista em uma conversa informal.

 

 

De lá para cá, a obra do Oliveira ganhou espaço na cena artística. Recebendo, já em 2007, um Segundo Grande Prêmio no Salão Arte Pará, com Sem Título (2007) , ação em espaço público com afixação de cartazes "lambe-lambe" (Figura 2) — intervenção urbana com origem na propaganda popular, nos antigos anúncios exibidos em muros — tipo de experiência que o artista trouxe, ainda, de sua vida em Timboteua. No Arte Pará, rostos estampados em alto contraste sobre papel jornal e páginas impressas, faces imprecisas, na instabilidade de pertencimento, acossados pelas estruturas de poder, na luta da ativação de um corpo vivo no mundo, colocando em xeque estigmas e marginalização.

 

 

Esse sujeito amazônico, sob continuada discriminação étnica povoa as imagens de Oliveira. O homem mestiço, o negro, o caboclo são os sujeitos para os quais o artista direciona o olhar.

Ali encontrei o homem marginalizado, temido, mas muitas vezes tido como inocente por sua condição, tentando se afirmar perante os desafios cotidianos que a vida o impele, em que normalmente a sorte já o predispõe ao fracasso na vida exigida pelo sistema vigente. Imagens predatórias, fotografias retiradas próximas ao modelo com flash disparado frontalmente gerando retratos vazios de pessoas acuadas, muitos semelhantes aos 3 x 4 colados no RG, que nãonecessariamente mostram aidentidade do portador. (Oliveira, 2014: 346).

O artista, neste seu texto intitulado Autorretrato, nos apresenta pistas do universo que optou por abarcar. A identidade do corpo representado pela imagem, em grande parte coletada nas páginas policiais, traz à tona uma espessura da fotografia, que ao subverter o preceito modernista de autoria, em uma perspectiva pós-moderna, conduz a imagem para a possibilidade de ressignificação, de reprodução, de apropriação, atingindo papel de referência, torcendo sua função inicial do objeto fotográfico, mas sem distanciar-se completamente dele. Há uma interrupção presente no olhar dos sujeitos, uma suspensão de tempo nitidamente característica do fotográfico. Essa captura fruto do desejo de permanência, cria o incômodo da fotografia sequestrada, pelos fotógrafos das páginas policiais. Oliveira revela essa indisposição no rosto dos sujeitos, que reativa pela pintura, em murais e telas a óleo, resignificando-os. Sobre esse tipo de instância, de imbricamento, Rosalind Krauss irá dizer:

Esta ideia de captura da experiência fugitiva para conseguir retê-la, de registro do presente e sua conservação apesar da passagem do tempo, Freud a utiliza para caracterizar a fotografia. Contudo, mesmo antes do surgimento da fotografia, já era costume descrever a escrita dessa mesma maneira. Ela também tinha como função consignar a palavra do momento por escrito para restituí-la num outro campo espacial e temporal. A escrita era o instrumento da memória. Como outros instrumentos, era acionada pela mão. A palavra se transferia de um órgão, a boca, a outro órgão menos nobre e requintado, a mão. (Krauss, 2002: 211)

O Autorretrato de Oliveira é texto, palavra que constitui um território no qual o artista se compreende, enquanto sujeito que percebe o mundo e é afectado (na perspectiva de Gilles Deleuze e Félix Guattari) por este, mas é também pela mão, pela pintura que o artista transfere seu pensamento para o plano físico, reificando aquilo que sua percepção lhe apresenta, tal qual nos propõe Suely Rolnik:

Um outro tipo de experiência que a subjetividade faz de seu entorno é a que designo como 'fora-do-sujeito' ou 'extra-pessoal': é a experiência das forças que agitam o mundo enquanto corpo vivo e que produzem efeitos em nosso corpo em sua condição de vivente. Tais efeitos consistem em outra maneira de ver e de sentir aquilo que acontece em cada momento. (Rolnik, 2016: 10).

Éder Oliveira não passa incólume ao mundo que o rodeia, atento, compreende claramente as operações que se manifestam no cotidiano, sejam os preconceitos que rondam de forma aparentemente sutil, sejam as violências aos direitos que ocorrem de maneira mais aguda. De sua vila natal até a mudança para a capital foram inúmeras experimentações de estar no mundo, com seus múltiplos atravessamentos entre uma pequena comunidade e a ferocidade de uma das cidades mais violentas do Brasil.

Pelo que o artista nos apresenta em seu texto Autorretrato, há em seu processo uma instauração, um sentido em que as coisas já existem no mundo, mas o artista dá a elas a forma, como sinaliza Lapoujade ao dizer que instaurar é um fixar da existência de um ser (Lapoujade, 2017: 81). Oliveira, ao retirar de páginas policiais retratos de sujeitos expostos pela mídia e categorizados por valores maniqueístas, lança luz a uma condição de exceção imposta ao cidadãos das classes menos favorecidas e reitera suas existências.

Retirar a imagem desse contexto comum a ela e transpor em pintura com enquadramento próximo aorosto, sem algemas, sem circunstâncias, falando de questões humanas e do que isso pode mostrar alheio a uma manchete sensacionalista é o que busco quando reproduzo o retrato do homem amazônico nas paredes da cidade de Belém, impondo ao transeunte o confronto com rostos que ele tende a ignorar, uma imagem que migrou da representação icônica do trabalho para o reflexo daquilo que se deve temer e evitar. (Oliveira, 2014: 346).

Percebe-se com o discurso do artista uma consciência de seu papel enquanto sujeito que ultrapassa o limite do eu para estar no mundo de forma ativa e viva, respondendo aos estímulos que lhe são lançados. Assim foi no projeto Amazônia, a Arte, (2010), mostra exibida no Museu Vale, Vitória/ES e na Fundação Clóvis Salgado, Palácio das Artes, Belo Horizonte/MG, 2010, em que o artista realizou pinturas murais trazendo os rostos de desconhecidos pesquisados em jornais, mesclando-os com de amigos para o exterior e para o interior do prédio, respectivamente. Na mistura, estes rostos não são identificados, e a inocência ou suposta culpabilidade dos suspeitos fica à critério de quem olha, conclamando o observador e perceber os meandros produzidos pela mídia e pela reatividade deflagrada decorrente do que Rolnik chama de "inconsciente colonial-capitalístico" (Rolnik, 2016: 16). Para o projeto Amazônia, Lugar da Experiência (2012), quando convidado a integrar o núcleo da Coleção Amazoniana de Arte da Universidade Federal do Pará, propõe uma pintura mural para a Rua da Marinha, 250 e duas telas (Figura 3, Figura 4, Figura 5). Em conversa com o curador, discutiu-se acerca da imagem emblemática do pistoleiro Quintino, que figurou no projeto do artista duplamente, destacando a dubiedade que esta figura propiciava, como podemos ver:

Quintino aparece duas vezes, na rua e dentro da galeria, em tela. O temido "gatilheiro" que nos anos 1980 mudou de lado: deixa de trabalhar — para patrões que encomendavam crimes relacionados à terra para lutar junto às minorias que reivindicam condições justas de sobrevivência no campo. Perseguido e assassinado, Quintino volta como representação de uma das passagens recentes da história de violência na região, muitas vezes figurando em versões controversas, dependendo do posicionamento de quem a conta, ora vilão, ora herói. Éder Oliveira ira, ao se deter na violência cotidiana, retirada das paginas policiais, colocar lado a lado personagens, que por vezes, figuram em lados antagônicos, vítimas e suspeitos, levando-nos, no desconhecimento, a olhar para o retrato daqueles que, muitas vezes, não queremos saber da história, sequer olhar. (Maneschy, 2013: 30)

 

 

 

 

 

 

Essa ambiguidade é uma condição presente no projeto do artista, uma confusão iminente provocada por duas características presentes em seu trabalho: cor forte e os traços fisionômicos (Figura 6). A cor intensa detém suas particularidades, uma delas é propiciada pelo daltonismo do artista, que o levou a optar pelo embate de trabalhar as cores no limite de sua percepção; a outra se apresenta pela magnitude das cores e da luz dos elementos, sejam estes naturais ou empregados pelo homem em cores vivas. Estas colorações estão nas roupas, na tez "morena" do amazônida que detém uma grande gama de tons. Os indivíduos de cor branca no norte do Brasil são minoria diante dos caboclos, negros, mestiços e índios; a despeito disto, o arquétipo de beleza branca, loura, de olhos claros, ainda é idealizado como a suprema beleza por grande parte da população. Padrão difícil de se atingir, obviamente. Mas, este sujeito mestiço, de estatura baixa, pele escura é alvo de preconceito e violência. Este indivíduo com seu rosto marcado por linhas acentuadas, olhar grave, distante do estereótipo de beleza anglo-saxônica encontra-se muitas vezes em posição de suspeição, ora por estar em circunstância de instabilidade em uma cidade violenta, ora por ocupar papel em situação de tensão social. Sua cor de pele e seus traços já os condenam por princípio.

 

 

Mesmo quando o artista lança seu olhar para os policiais militares em Alistamento, projeto em que dissemina uma convocatória nos quarteis militares de Belém para convidar os alistados a tomar parte de seu trabalho — respondendo a um questionário e participando de uma sessão fotográfica, gerando as imagens que foram transpostas para as telas e paredes da exposição (Figura 7) —, o artista desvela uma espécie de tensão psicossocial, como aponta a curadora Marta Mestre:

Éder Oliveira nos expõem diante daquilo que deveria ter ficado guardado ou invisível. Uma espécie de "retorno do recalcado nacional" (E. Viveiros de Castro) que "desarranja" corpos, rostos e percepções. E que ao reconfigurar as formas perceptivas existentes torna-se político sem que necessite ser engajado.

ALISTAMENTO assume um magnífico efeito de espelho antropológico que, sob ovéu de falar dos outros (soldados), deixa passar observações sobre nós, sobre a nossa cultura, os nossos valores e atitudes. E de um modo simples coloca em evidência o quanto toda a imagem é sempre a imagem de um "outro", sendo a experiência de alteridade capaz de uma reformulação constante dos termos em que nos definimos. (Mestre, 2015).

 

 

Este recalque ao qual Viveiros de Castro se refere e que Marta Mestre se apoia é uma recorrência persistente, uma vez que tantas aspirações foram reprimidas, que constantemente ressurgem, alteradas, de forma distorcida, ou deformada. Neste contexto, Viveiro de Castro revela: "Converter, reverter, perverter ou subverter (como sequeira) o dispositivo de sujeição armado desde a Conquista de modo a torná-lo dispositivo de subjetivação" (Castro, 2008:141). Assim, o sujeito "não branco", "moreno", "rústico", "marajoara", "pardo", "típico", "nortista", aparece como designação presente nas respostas das perguntas feitas por Éder Oliveira, tal qual as constituídas pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no censo realizado a cada 10 anos em que a cor da pele é uma das perguntas apresentadas, utilizadas na auto-identificação dos entrevistados. O artista irá perguntar: "1) Como você se vê? 2) Como você vê o homem amazônico?". Os termos empregados nas respostas formaram um conjunto de palavras, agrupadas em dois conjuntos, de acordo com as perguntas, seguindo o padrão das etiquetas de identificação apresentadas nos uniformes dos membros da corporação: um de como o sujeito se vê e o outro de como este vê o outro; outras obras são retratos dos indivíduos em roupa de camuflagem, parte pintados a óleo, parte em grandes dimensões em madeira (Figura 8, Figura 9), levados para as ruas da cidade.

 

 

 

 

E essa pessoa recalcada, com

a subjetividade reduzida ao sujeito e que com ele se confunde interpreta o desmoronamento de 'um' mundo como sinal do fim 'do' mundo e dela mesma. Em outras palavras, esse tipo de subjetividade vive a tensão entre aquelas duas experiências como uma ameaça de desagregação. (Rolnik, 2016:17).

Com sua produção, Éder Oliveira nos expõe uma condição fatídica que os menos favorecidos enfrentam em um país em que a uma vergonha histórica persiste, erigida na discriminação imposta aos desvalidos, num estado de exceção calcado na opressão do herdeiro do sujeito nativo, mesmo sendo este um país mestiço, a fantasia estética anglo-saxônica se impõe.

Oliveira nos convida a perceber um dano histórico, uma continuada exploração do sujeito que, diferente do dominador, vive em condições de interdição, sem poder exercitar seus direitos sociais em plenitude, especialmente em um país que é mestiço. Com sua obra profundamente política, o artista nos conclama:: Veja! Acorde! Tome posição.

 

Referências

Castro, Eduardo Viveiros de (2008) Eduardo Viveiros de Castro — Col. Encontros. Rio de Janeiro: Editora Azougue ISBN: 9788588338937.         [ Links ]

Herkenhoff, Paulo (org.)(2014). Porororca — A Amazônia, no MAR, Rio de Janeiro: MAR/Contraponto Editora. ISBN: 978-85-64022-60-7        [ Links ]

Krauss, Rosalind (2002). O Fotográfico. Barcelona: Gustavo Gili SA. ISBN:84-252-1858-6.         [ Links ]

Maneschy, Orlando (2013). Amazônia, Lugar da Experiência. Belém: Edufpa. ISBN: 978-85-63728-13-13.         [ Links ]

Mestre, Marta (2015) "Alistamento". [Texto curatorial da exposição homônima,] Sesc Boulevard. Belém — Pará         [ Links ] .

Oliveira, Éder. (2014) "Autorretrato". Porororca — A Amazônia, no MAR, Rio de Janeiro: MAR/ Contraponto Editora. ISBN: 978-85-64022-60-7.         [ Links ]

 

 

Enviado a 04 de janeiro de 2018 e aprovado a 17 de janeiro de 2018

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: orlandomaneschy@gmail.com (Orlando Franco Maneschy)

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