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Revista :Estúdio
versão impressa ISSN 1647-6158
Estúdio vol.9 no.24 Lisboa dez. 2018
ARTIGOS ORIGINAIS
ORIGINAL ARTICLES
Vozes Dissonantes: a abstração geométrica de Rose Lutzenberger
Dissonant voices: the geometric abstraction of Rose Lutzenberger
Paulo César Ribeiro Gomes*
*Brasil , artista visual.
AFILIAÇÃO: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Artes, Departamento de Artes Visuais. Rua Senhor dos Passos, 248, Porto Alegre — CEP 90020-180, Rio Grande do Sul, Brasil.
RESUMO:
Rose Lutzenberger (Porto Alegre, RS, 1929) é autora de uma escultura de referência do acervo da Pinacoteca Barão de Santo Ângelo (PBSA/UFRGS). Nesse ensaio faremos uma breve análise da sua atuação como artista importante na introdução daabstração geométrica na produção visual do Rio Grande do Sul. Analisaremos seu processo artístico enquanto escultora e gravadora, cujos resultados podem ser sintetizados pela escultura em questão: um trabalho que é resultante de excepcionais operações com materiais industriais que, ao eliminar todo e qualquer vestígio de manualidade, normalmente associada às artes plásticas, coloca-a plenamente integrada à linguagem da abstração geométrica nacional e internacional.
Palavras chave: Rose Lutzenberger / escultura / abstração geométrica / Pinacoteca Barão de Santo Ângelo.
ABSTRACT:
Rose Lutzenberger (Porto Alegre, RS, 1929) is the author of a reference sculpture from the Barão de Santo Ângelo Pinacoteca collection (PBSA / UFRGS). In this essay we will briefly analyze her performance as a important artist in the introduction of geometric abstraction in the visual production of Rio Grande do Sul. We will analyze her artistic process as a sculptor and engraver, whose results can be synthesized by the sculpture in question: awork that is resulting from exceptional operations with industrial materials which, by eliminating any trace of craftsmanship, usually associated with the plastic arts, places it fully integrated in the language of national and international geometric abstraction.
Keywords: Rose Lutzenberger / sculpture / geometric abstraction / Pinacoteca Barão de Santo Ângelo.
Introdução
A escultura de Rose Lutzenberger (1929), sem título (circa 1970), composta de três módulos de base em madeira, revestidas de placas de alumínio e com intervenção de pintura, é uma das peças de referência do acervo de esculturas da Pinacoteca Barão de Santo Ângelo (UFRGS) (Figura 1). Trata-se de uma obra que permite "diferentes formas de agrupamento, possibilitando, assim, composições abstratas de dimensões variáveis" (Barbian, 2014). No conjunto da coleção ela se destaca pela excelência da sua fatura e por pretender um discurso que foge ao padrão da produção escultórica local no período de sua execução, fazendo parte do reduzido conjunto de peças do mesmo gênero produzidas pela artista no período.
Rose Lutzenberger, juntamente com Ilsa Monteiro (1935) e Joyce Schleiniger (1947) forma a tríade de artistas que, nos anos 1960 e 1970, rompe com a tradição figurativa da escultura no Rio Grande do Sul. Se em outras áreas, mormente na gravura e na pintura (Berclaz, 2015), a corrente abstracionista tem expressivo desenvolvimento nas obras bidimensionais de Carlos Petrucci (1919-2013), Carlos Scliar (1920-2001), Danúbio Gonçalves (1925), Luiz Barth (1941-2017), Nelson Ellwanger (1946-2004), Nelson Wiegert (1940), Rubens Costa Cabral (1928-1989), Vera Chaves Barcellos (1938), Waldeny Elias (1931-2010), Yeddo Titze (1935-2016) e Zoravia Bettiol (1935), a escultura manteve-se, entretanto, solidamente ancorada na figuração, uma realidade que só se alterará em períodos posteriores.
Sua formação se deu inicialmente no Instituto de Belas Artes (1948). Entre 1958 e 1959 recebeu uma bolsa de estudos do Departamento de Estado — Estados Unidos, frequentando o State Departament Grant, na Universidade de Yale, em Harvard, o Sculpture Center e o Art Student League, ambas em Nova Iorque. Entre 1967 e 1968 estagiou, como docente convidada, na Folkwangschule für Gestaltung (Essen) e na Escola Estadual Superior de Artes Plásticas (Hamburgo), ambas na Alemanha. Sua carreira como artista inicia-se ainda nos anos 1950 e se desenvolverá de maneira crescente ao longo das duas décadas seguintes, participando de mostras coletivas, individuais e salões. Como docente universitária inicia sua carreira nos anos 1950 conquistando, em 1964, o título de Professora Catedrática de Arte Decorativa do Curso de Artes Plásticas do Instituto de Artes; em 1966 lhe é concedido o título de Doutora em Artes Plásticas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde se aposenta em 1986.
Rose Lutzenberger, reconhecida como gravadora, escultora e como designer, principalmente de joias, tem na escultura grande relevância para o desenvolvimento da técnica, principalmente no sul do Brasil. A obra de Rose Lutzenberger mesmo tendo recebido notável destaque para além das fronteiras regionais, seja em salões de nomeada no panorama nacional, seja em galerias, ficou obscurecida devido a pouca visibilidade dada à produção local. A inscrição de seu nome no seleto grupo de escultoras nacionais que se dedicaram a abstração, assim como o de suas outras duas companheiras acima referidas, merece figurar, no mesmo recorte formal, ao lado de Amélia Toledo (1926-2017), Lygia Clark (1920-1988), Lygia Pape (1927-2004), Mary Vieira (1927-2001), Tomie Othake (1913-2015), artistas mulheres que investiram na abstração, principalmente a geométrica.
As gravuras do álbum: ensaios para as esculturas?
O álbum Visão multidirecional (1971) é composto por vinte serigrafias sobre papel: seis de Luiz Fernando Barth (1941-2017), sete de Rubens Costa Cabral (1928-1989) e sete de Rose Lutzenberger. O álbum é o resultado da pesquisa intitulada Expressão em Superfície e Movimento, desenvolvida no ano de 1971, pelos professores acima citados. Propunha a "eleição de uma forma geométrica plana (hexágono) que através de cortes possibilitasse a criação de um espaço ambíguo e o remanejamento de suas partes com o objetivo de obter a criação de formas estéticas" (Relatório para o 1º Semestre de 1971 /AHIA). Como que indicando a natureza permutacional da proposta, "A página que abre o álbum apresenta seis variantes da mesma frase, escritas em caixa alta, na cor azul royal, distribuídas em arco. São elas: visão muldimensional; visão dimensional multi; dimensional multivisão; dimensional visão multi; multi dimensional visão e multivisão dimensional" (Borba, 2015).
A observação das esculturas de Rose Lutzenberger nos leva naturalmente a indagar sobre seu processo de construção, visto que o rigor e a precisão são fatores preponderantes no resultado final. Se nas gravuras acima referenciadas (Figura 2, Figura 3 e Figura 4) a aplicação da teoria da Gestalt é quase didática, no que tem de explícita e auto-explicativa, nas esculturas o processo é mais requintado, pois, ao examiná-las atentamente, observamos que ela logrou esses efeitos justapondo volumes e superfícies polidas em oposição às superfícies coloridas e opacas, resultado da aplicação de pintura.
Temos a impressão de que no álbum de gravuras — com a aplicação de rigorosos princípios perceptuais de grande vigor e notável resultado — a artista ensaiou suas esculturas. Um reforço para essa afirmativa está no fato de que na abertura do álbum os autores agregaram uma citação de Umberto Eco, que transcrevemos:
[…] enquanto que aculturamédiae popular (ambas já produzidas em níveis mais ou menos industrializados, e sempre mais altos) não vendem mais a obra de arte, e sim o seu efeito, eis que os artistas se sentem impelidos, por reação, a insistirem no polo oposto: não mais sugerindo efeitos, nem se interessando pela obra, mas sim pelo processo que leva à obra.
Essa última assertiva, que enfatiza a questão do processo em detrimento da obra, nos leva a afirmar que nesse trabalho Rose Lutzenberger definitivamente experimentou no plano bidimensional suas esculturas, antes de efetivamente construí-las. A análise dos resultados obtidos demonstra de maneira cabal que as questões perceptuais ensaiadas aqui foram de maneira vitoriosa transpostas para o plano tridimensional: os efeitos ópticos de sobreposição de planos, a eliminação da relação entre figura e fundo, a aplicação de cores para conduzir o olhar pelas formas, etc. Imediatamente anteriores às esculturas, essas gravuras aplicam aqueles estudos desenvolvidos pela artista, na sua atividade docente na disciplina de Técnica da composição artística, ministrada no Instituto de Artes. Esses estudos da percepção são associados ao estudo dos "recursos interpretativos e técnicos dos elementos formais e seus relacionamentos em duas dimensões; Natureza da Luz; [e] Forças Visuais." (Relatório para o 1º Semestre de 1971/AHIA), conteúdos estes que vinham sendo desenvolvidos, desde os anos 1950, na disciplina de Composição Decorativa — Técnica da Composição Artística. Mais do que experimentos formais as gravuras, assim como as esculturas, levam em consideração um olhar objetivo proposto ao espectador, esvaziando-o de aproximações simbólicas ou sensoriais.
Sobre a escultura
Sobre sua escultura escreveu Armindo Trevisan (1983) que "revelou sábia assimilação de princípios construtivistas, que envolve de um halo hierático, seja pelo tratamento das superfícies, seja através de uma morfologia, não destituída de elegância." Tomemos como guias, para desenvolvimento desse ensaio, os três aspectos assinalados por Trevisan: o halo hierático, o tratamento de superfícies e a morfologia e elegância. O hieratismo deve-se principalmente ao tratamento das formas, que elevam o olhar e propõem uma assimilação quase religiosa as suas esculturas, uma retomada das colunas infinitas de Brancusi na sua forma monolítica (Zanini, 1980). Escultura não decorativa, feita para ser apreendida pelo intelecto, não pela sensibilidade. Quanto ao tratamento das superfícies, estas são cuidadosamente elaboradas, seja no polimento do alumínio, seja nas faixas de cores agregadas, tudo com um cuidado extremo com os detalhes no uso dos materiais industriais. O afastamento dos materiais tradicionais da escultura praticada entre nós (ferro, madeira, bronze, mármore e argila), elimina, de uma só tacada, qualquer preocupação de caráter simbólico tradicionalmente associado àqueles materiais. Quanto à morfologia — as formas adotadas -, esta se dá por módulos sobrepostos, que partem das reconfigurações possíveis de um módulo — o hexágono — submetido às mais rigorosas modificações. A exploração da formas geométricas simples, sem propor qualquer associação com o mundo material, explora ao interesse da artista pela tecnologia e pelas pesquisas perceptuais, eliminando a possibilidade de um contato tátil, devido às superfícies frias, assépticas e de arestas agudas. Observa-se a preocupação com a eliminação, melhor dizendo, com a renúncia da massa como elemento escultural, como está previsto no Manifesto Construtivista de Naum Gabo (1920). A pesquisa perceptual gestaltiana enfatiza o ritmo e a dinâmica, aproximando a artista da civilização industrial, substituindo, conforme Noholy-Nagy e Kemeny (Berlim, 1922) o "[…] princípio estático da arte clássica pelo princípio dinâmico da vida universal" (apud Zanini, 1980). O resultado é a elegância apontada pela crítica, resultados do olhar lançado para o alto, do tratamento primoroso e da cuidadosa eleição das formas, que obrigam o espectador à circulação em torno de objetos sem princípio e sem fim, deslocando a relação entre figura e fundo.
Uma voz dissonante
É sintomático que a recepção de sua obra escultórica, independente do imediato reconhecimento e das premiações recebidas, tenha causado estranheza e mesmo estupor, desarmando a crítica de seu tempo. Brites (2015) escreveu que "No II Salão de Artes Visuais da UFRGS, de 1973, acompanhando a movimentação artística do momento, o júri concedeu o Grande Prêmio do Salão para a categoria 'proposição', na qual estava inscrito o trabalho tridimensional de Rose Lutzenberger Espaço perceptual (início dos anos 1970)." (Figura 5)
Aqui já esta indicada não somente uma abertura da crítica local para novas formas de expressão, mas também uma dificuldade de enquadrar as manifestações que fugiam dos modelos tradicionais. Fernando Corona, atento observador do sistema de artes local, apesar de não entrar em considerações técnicas (sobretudo pelo caráter de crônica de suas notas críticas) não se furtou, entretanto, a dedicar elogios às propostas da artista, como, por exemplo, ao registrar que "O Grande Prêmio [no II Salão de Artes Visuais da UFRGS em 1973] (Figura 6) para Espaço Perceptual, […] prova o bom gosto e profundos conhecimentos da geometria espacial […]. São realmente uma beleza plástica no espaço" (Corona, 1977). Dois anos depois, comentando sobre o III Salão de Artes Visuais da UFRGS, escrevendo sobre a peça intitulada Tramas, afirma que é uma "[…] belíssima forma estética e vertical em alumínio […]" (Corona, 1977).
Uma mirada no ambiente local nos esclarece que os artistas brasileiros, dos anos 1950 e 1960, estavam trabalhando em um país que, após sair do modelo agropastoril depois da segunda guerra mundial procuravam se inserir rapidamente no mundo industrial. Era, portanto, natural que as expectativas fossem no sentido de encaminhar a produção plástica para uma correspondência com o modelo vigente de progresso. Juntamente com Ilsa Monteiro e Joyce Schleiniger (que receberão atenção noutro momento), Rose Lutzenberger forma a trindade da vanguarda escultórica do Rio Grande do Sul. Seu trabalho, magnificamente representado pela escultura da Pinacoteca Barão de Santo Ângelo com a qual abrimos esse ensaio, é o resultado de excepcionais operações com materiais industriais que, ao eliminar todo e qualquer vestígio de manualidade, normalmente associada às artes plásticas, coloca-a plenamente integrada na linguagem da abstração geométrica nacional e internacional.
Referências
Barbian, Débora da Silva Margoni (2015) [Sem título]. In: Gomes, Paulo (Org.) Pinacoteca Barão de Santo Ângelo: Catálogo Geral — 1910-2014 . Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2º v. [ Links ]
Borba, Andressa. (2015) [Sem título] In: Gomes, Paulo (Org.) Pinacoteca Barão de Santo Ângelo: Catálogo Geral — 1910-2014. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2º v. [ Links ]
Brites, Blanca Luz (2015) "Pinacoteca Barão De Santo Ângelo em sintonia com seu tempo. In: Gomes, Paulo (Org.) Pinacoteca Barão de Santo Ângelo: Catálogo Geral — 1910-2014. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2º v. [ Links ]
Corona, Fernando (1977) Caminhada nas Artes (1940-76). Porto Alegre: Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul /Instituto Estadual do Livro, 1977. [ Links ]
Lutzenberger, Rosa Maria Kroeff (1971). Relatório para o 1º Semestre de 1971. Instituto de Artes — Departamento de Artes Visuais. AHIA — Arquivo Histórico do Instituto de Artes. [ Links ]
Rosa, Renato & Presser, Décio (2001) Dicionário de Artes Plásticas no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Editora da Universidade (2ª Edição — Revista e Ampliada). [ Links ]
Trevisan, Armindo (1983) Escultores Contemporâneos do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Editora da Universidade. [ Links ]
Zanini, Walter (1980) Tendências da Escultura Moderna. SP: Cultrix. [ Links ]
Enviado a 03 de janeiro de 2018 e aprovado a 17 de janeiro de 2018
Correio eletrónico: oluapgomes@gmail.com (Paulo César Ribeiro Gomes)