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Revista :Estúdio
versão impressa ISSN 1647-6158
Estúdio vol.10 no.25 Lisboa mar. 2019
ARTIGOS ORIGINAIS
ORIGINAL ARTICLES
Solid Matter de Mónica Capucho
Solid Matter by Mónica Capucho
Margarida Prieto*
*Portugal, artista visual e professora.
AFILIAÇÃO: Universidade de Lisboa; Faculdade de Belas-Artes (FBAUL); Centro de Investigação e Estudos em Belas Artes (CIEBA). Largo da Academia Nacional de Belas Artes 14, 1249-058, Lisboa, Portugal
RESUMO:
Este artigo é sobre o trabalho artístico de Mónica Capucho apresentado sob o título Solid Matter onde é possível aferir a contaminação de disciplinar (desenho, texto, pintura e escultura) e a importância de um sentido de adequação ao espaço expositivo.
Palavras chave: instalação / matéria(s) / pintura / objectos-específicos / site-specific.
ABSTRACT:
This article is about the artistic work of Monica Capucho presented under the title Solid Matter. In her work it possible to understand the contamination between disciplinary art fields, namely drawing, text, painting and sculpture, and the importance of concepts as adapt, and adjust to the exhibition space.
Keywords: installation / matter / painting / specific objects / site-specif.
Introdução
Este artigo incide sobre a exposição da artista portuguesa Mónica Capucho intitulada Solid Matter. Nele são apreciadas as duas instalações que compõem esta exposição cujas características se harmonizam com os dois espaços que ocupam. As obras reflectem, num espelhamento de apropriações inteligentes, as matérias para dar a ver um pensamento criativo e artístico profundamente relacionado com a arquitectura, a natureza, a escrita e um certo sentido estético que contamina todo a experiência e percepção da obra.
Primeiro, é realizada uma apresentação da artista e do espaço expositivo analisado separadamente as duas salas que recebem esta exposição: a Sala Multiusos e a Galeria Municipal Vieira da Silva. Em cada uma delas, é investigado o modo como a artista pensa e dá forma ao seu trabalho considerando os conceitos de apropriação, adaptação e contaminação aplicados às matérias sólidas que enformam toda a sua obra exposta neste contexto. Depois é realizada uma apreciação global da exposição, relacionando cada instalação. Por fim é feita a conclusão relativamente à exposição em foco neste artigo.
1. Solid Matter
Mónica Capucho é uma artista portuguesa cuja obra se ancora nas práticas tradicionais da Pintura contaminadas pela exploração da objectualidade e da materialidade do suporte pictórico jogando, ainda, com os campos poéticos abertos através da apropriação literal e textual de termos da língua inglesa que se inscrevem na pintura como elemento figural. Natural de Lisboa (1971), Mónica Capucho teve formação artística de nível universitário em Pintura. Na sua obra, a artista reflecte sobre questões de ordem instalativa (frequentemente com carácter site-specific) na medida em que considera o lugar que cada pintura/objecto ocupa em exposição. É frequente acrescentar matérias estranhas à Pintura, incorporando técnicas e media da escultura e construindo objectos pictóricos. Solid Matter é um exemplo de uma exposição onde se afere esta experimentação das matérias. A própria expressão escolhida pela artista para intitular a sua mais recente exposição, a que este artigo se dedica, vem sublinhar a importância que a matéria e os materiais assumem no seu projecto plástico.
Apresentada entre Julho de 2018 e Janeiro de 2019, Solid Matter é concebida para dois espaços expositivos, a saber: a Sala Multiusos (Figura 1) e a Galeria Municipal Vieira da Silva (Figura 2).
Estes dois espaços são gémeos e situam-se no mesmo edifício. O edifício foi originalmente concebido como Pavilhão de Macau na Expo 98 (Lisboa, Portugal) e adquirido para uma reutilização de âmbito cultural. Pertence, actualmente, ao Parque Adão Barata sob a tutela da Câmara Municipal de Loures. O que caracteriza arquitetonicamente este edifício é tanto a simetria como o elevamento feito através de palafitas que sustentam os espaços dedicados às exposições. De um lado situa-se a Sala Multiusos, do outro a Galeria Vieira da Silva. Estes dois espaços comunicam através de um corredor coberto com aberturas laterais que acentuam o efeito de transparência do edifício na sua relação com o parque. As grandes janelas que o caracterizam lembram as tradicionais retículas das habitações japonesas (nomeadamente os biombos construídos com bambu e papel de arroz) e acentuam a implantação deste edifício na paisagem humanizada.
Mónica Capucho assume a exposição relacionando a sua obra com os dois espaços, ou seja, considerando as diferenças da sua aparência e estrutura arquitectónica. (Esta distinção tem permitido que cada um destes espaços albergue projectos culturais e artísticos radicalmente separados e diferentes.)
A Sala Multiusos (Figura 1) está em bruto, num inacabamento propositado que acentua as matérias e os materiais utilizados para a sua construção: o cimento, o tijolo vermelho, o ferro, o vidro, o alumínio, a madeira, os fios elétricos e os focos. A luz natural, durante o dia, entra por enormes janelas que substituem quase inteiramente duas paredes. Através destas observa-se o parque infantil incorporado no território natural e uma outra parte do edifício.
Na Galeria Vieira da Silva (Figura 2), ao contrário, o acabamento impera. As paredes e o tecto estão revestidos por reboco liso e uniforme, a superfície está coberta por tinta branca e há um contraste entre o que é brilhantes e o que é basso por comparação com o chão em pedra preta (Xisto), polido e cintilante. As janelas abertas permitem observar uma paisagem com relvado, árvores e céu. Se, aqui, toda a estrutura arquitectónica está camuflada pelo revestimento das matérias estruturais que constroem o edifício, na Sala Multiusos toda a estrutura está à vista. Poderia afirmar-se, numa livre associação de ideias, que um dos espaços se civilizou pela camuflagem e o outro se manteve em bruto dando a ver, por isso, a integridade estrutural e a solidez característica das matérias que o constituem.
Não é possível deixar de referir, ainda num exercício de associação livre de ideias e imagens, a pintura de Ticiano intitulada Amor Sacro e Amor Profano (Figura 3).
A alusão a esta pintura deve-se à seguinte ideia: a camuflagem, a maquilhagem, o tratamento estético que se aplica como máscara sobre um corpo (humano e arquitectónico) permite identificar tanto o Amor Profano como o espaço da Galeria Vieira da Silva (por afinidade conceptual). Por outro lado, o Amor Sacro associa-se ao corpo nu, estrutural e sem acessórios, ou seja, ao corpo a descoberto, desvelado, tal como se mostra a Sala Multiusos.
A partir desta distinção caracterizadora dos dois espaços expositivos, a artista apresenta duas instalações diferentes, numa inteligente adequação das obras a cada caso pondo em evidência quer os materiais quer o ambiente.
2. A Sala Multiusos
Neste espaço, a artista coloca uma sequência de objectos pictóricos no chão de cimento cinzento cru desenhando duas filas convergentes, numa perspectiva forçada para um ponto de fuga ao fundo da sala (uma parede cega construída com tijolo vermelho) (Figura 1).
É necessário caminhar ao longo deste alinhamento de objectos pictóricos para os experimentar esteticamente, para os observar e para ler o que têm inscrito: "OPEN | SPACE", "ORDER | EMOTION", "ABUSE | PEACE | MIND", "BREAK | THROUGH", "OVER | MYSELF | MYSELF", "BROKEN | REALITY | FICTION", "FRAGILE | PIECE", "DREAM | AWAY", "SMOOTH | SUBTLE | SILENCE", "LOVE | PAINT", "LOGIC | GRID", "LEARN | CLEAN | REALITY", "IDEAL | BLACK | GLOSSY", "NEUTRAL | PURE | SIMPLE", "NAKED | LOVE", "START | JUSTICE", "WORD | OBJECT", "THOUGHT | NEED | PEOPLE", "SHARE | TRUTH" e "GLASS | STONE" são os termos legíveis em cada peça (exemplos nas Figura 4 e Figura 5).
O grupo de duas palavras (Figura 5) ou três (Figura 4) que cada objecto comporta é usado como título da respectiva obra, acentuando a importância que a escrita adquire neste projecto de trabalho (Figura 6). Assim, compreende-se, de imediato, que não se trata de um jogo casual (ou seja, de palavras escolhidas e escritas ao acaso) mas de uma intenção da artista. Os termos inscritos permitem criar campos poéticos (e imagéticos) por associação e a sua percepção visual exige simultaneamente um leitor e um observador, num desafio duplo — o da legibilidade e o da visibilidade.
Cada objecto é estruturalmente similar aos restantes e está separado por interrupções de vazio, em intervalos equidistantes. Cada objecto é constituído por duas vigotas que sustentam até três rectângulos idênticos em dimensão e formato, mas variáveis na matéria que os enforma e, também, no que têm inscrito. A inscrição — que é, neste caso, o rasto pictórico que se mantém nestes objectos — está feita com um silicone que espessa o pigmento e se agarra a matérias frágeis e transparentes como o vidro, ou a matérias sólidas e resistentes como o cimento e o metal, ou a matérias coloridas como o tijolo e a madeira. As características inerentes às matérias utilizadas associam-se a cada termo nelas inscrito (e que, por isso, lhes está afeto) abrindo ao sentido (da percepção, da interpretação, do raciocínio), numa amplificação do jogo perceptivo e estético. O espessamento do silicone sobre o pigmento permite que cada letra esteja em alto-relevo — abrindo o óptico ao háptico e, neste movimento, acentuando a contaminação entre a tri e a bi dimensão, entre a volumetria objectual da escultura e a planificação ou lisura da pintura. Por vezes, em vez do silicone, a artista opta por fazer um desbaste sobre a matéria do suporte, criando um baixo-relevo. Esta possibilidade em nada altera a percepção háptica do termo inscrito no centro do rectângulo. Donald Judd nomearia a hibridez da tipologia destes objectos com a expressão "Specific Objects" (Judd, 1965:74-62).
Por outro lado, há uma ordem implícita na organização das obras em dois alinhamentos, como se fossem linhas de um texto que se escreve quase sobre o chão de cimento cinzento — "quase" porque os rectângulos que comportam cada inscrição e que são tomados, efetivamente, como suporte pictórico, estão elevados por duas vigotas que, por sua vez, acentuam uma dupla linha alusiva ao caderno onde se aprende a escrever. Esta elevação, embora mínima (cerca de 6 cm), produz um exercício reflexo relativamente às palafitas que sustentam o edifício que alberga a exposição. Mas existe, igualmente, um efeito de relação em sistema que implica tanto os suportes de escrita como os suportes de pintura e, ainda as estruturas para construir edifícios. A dimensão e formato dos suportes pictóricos é tomada do lado maior dos tijolos utilizados na construção deste edifício. Este rectângulo é assumido quer como objecto, dimensionando todas as matérias utilizadas como suporte pictórico (também elas em bruto, ou seja, com a aparência e coloração naturais), quer como unidade de media para a subdivisão de um território visual (a composição de pinturas de grande formato que são expostas na Galeria Vieira da Silva). Se as matérias do suporte mantêm a cor natural, os pigmentos utilizados nas inscrições de silicone mimetizam essa paleta: cinzentos, pretos, brancos e vermelho cor de tijolo numa harmoniza visual com um cariz e sensibilidade totalmente da ordem do pictórico. A luz é fundamental na compreensão do conjunto.
Durante o dia, o sol incide sobre as superfícies e, quando estas são transparentes, reflecte ou projecta as sombras das letras sobre o chão, duplicando e invertendo os caracteres que as inscrevem (Figura 9). Quando o dia termina (a exposição esteve patente durante os meses de Inverno, quando os dias são mais curtos), há uma iluminação artificial gerada por focos de luz que estão dispostos no tecto (Figura 8), seguindo a mesma prumada das linhas de objectos colocadas sobre o chão . Com os focos nesta posição relativamente às obras (imediatamente sobre elas), e com as sombras expressivas do sol já desaparecidas, cria-se um ambiente museológico de anulação de interferências, com o mínimo de teatralidade, ou seja, com uma dispersão de luz que aniquila as sombras ou as projecta de tal modo que se tornam coincidentes com os objectos (Figura 7). Apenas nos retângulos de vidro pode ainda ver-se (como um eco), uma duplicação visual, a sombra projectada no chão repete uma ou outra palavra.
A percepção geral desta instalação neste local remete para uma caverna de ressonância onde as obras parecem fazer ecoar, duplicar, reflectir, todo o ambiente arquitectónico que as mostra e guarda. Ouvem-se os pássaros e os gritos felizes das crianças a brincar no parque, ao mesmo tempo que se ouve uma voz metal (quase um sussurro inaudível) a duplicar o que se lê em cada rectângulo. Podem identificar-se termos que são referências directas ao trabalho da artista, à sua obra, às suas escolhas, nomeadamente space, order, mind, paint, logic, grid, glossy, smoth, neutral, pure, object, glass, stone, black. Outras estão relacionadas com sensações da percepção, com sentimentos, com afectos e com experiências, por exemplo: emotion, abuse, peace, fragile, dream, fiction, reality , subtje, love, ideal, naked, share, truth , people.
3. A Galeria Vieira da Silva
Quando passamos para a Galeria Vieira da Silva, outras palavras ecoam no espaço através de oito obras de carácter assumidamente pictórico colocadas à entrada (Figura 2). Neste espaço reconhece-se, de imediato, o ambiente de uma galeria convencional na medida em que a sua esteticização se aproxima do conceito de White Cube. Não se trata de um cubo branco, mas de uma articulação entre três paralelepípedos rectângulares com algumas janelas panorâmicas e materiais de revestimentos claros e luminosos (não integralmente brancos). Nas paredes brancas estão conjuntos de pinturas colocadas de modo convencional, isto é, à altura do olhar de um observador-tipo, agrupadas por afinidade formal (dimensões e estrutura de composição). As pinturas têm uma estrutura convencional (óleo s/ tela) e os termos nelas inscritos são quase invisíveis na medida em que se materializam pelo relevo (Figura 10). É absolutamente fundamental o modo como a luz incide sobre estas pinturas para que se possa ler o que nelas está inscrito. A composição é uma grelha cujas dimensões de cada quadricula são idênticas às da face maior de um tijolo de argila vermelha. Como tecido suporte foi escolhida uma tela com a cor natural do linho rústico que se mantém visível e, pontualmente, colabora na paleta de cinzas, de pretos e de brancos que a artista selecionou. O desenho da grelha é produzido com a marca de um pó azul que impregna os fios de prumo usado pelos construtores. O preenchimento desta grelha reticular parece aleatório e lembra os jogos de encaixe infantis. É pela pintura de uma inscrição — um termo isolado em cada quadrícula — que o texto, como elemento visual, adere à composição pictórica geométrica mas, como elemento de linguagem, vai condicionar o ballet ocular sobre a pintura (o movimento que os olhos fazem sobre a superfície pictórica tanto para ver a composição como para ler as inscrições).
A sobreposição de esquemas conceptuais entre imagem e linguagem, entre o visual pictórico e o textual, entre a figura (de cada letra, de cada forma geométrica) e a textura (do textual, e do háptico), entre a visibilidade e a legibilidade, entre a presença e a ausência (no sentido em que, para compreender o que se lê, há um efeito de desaparecimento do signo escrito), entre a opacidade (do sem-sentido do texto ou da sua i-legíbilidade como forma visual) e a transparência (a qualidade gráfica da inscrição que, por isso, permite ler e compreender o que é lido) permite construir estas imagens relacionando o desenho com a pintura e a geometria. Contudo, não se trata aqui de pensar a Pintura como um texto, como fundamenta a tese da semiótica de primeira geração — segundo os termos de Louis Marin (Marin, 1991) –, mas de tomar o signo linguístico como signo figurável na pintura onde, se a sua boa forma for preservada, ostenta a sua condição de signo e a sua condição de figura, sem perder a sua função indicativa representacional, o seu estatuto de substituição, de estar «em vez de» ou a «remeter para» relativamente ao objecto que enuncia.
Um outro conjunto está montado ao fundo da sala, contribuindo para um total de 27 peças a ocupar a Galeria.
Este segundo conjunto tem objectos onde se podem ler as seguintes palavras e sequências de palavras: "WRITE | REWRITE", "NATURAL | FEELING", "RATIONAL | INSTINCT", "SOLID | MATTER, MENTAL | PROCESS", "RANDOM | ORDER, HONEST | SCHEME", "NEW | ORDER, BLACK | WHITE", "PURE | FORCE, POSITIVE | ENERGY", "WORDS | FORMS", "INNER | VISION", "LOGIC | BASIS, ANOTHER | REALITY", "INNATE | SENSE", "TRUE | NATURE", "SINCERE | DIALOGUE", "ABSTRACT | IMPULSE", "PURE | FEELING", "INSIDE | MYSELF", "OPEN | MIND", "REAL | IDENTITY", "CLEAR | VISION", "THINK | MORE | WANT | LESS", "REAL | SPECIFIC | RANDOM | FEEL", "BASIC | WHITE | DREAM | WALL", "LOOK | LOVE | FEEL | TOUCH", "TRUE | PURE | DARK | IDEIA", "EMPTY | NEUTRAL | SPACE | MATTERS", "BLACK | WORD | ANOTHER | OBJECT", "LOST | MIND | NEVER | AGAIN".
Os títulos de cada peça duplicam estas inscrições, repetindo, num exercício de ensimesmamento, provocando um eco. Consoante o que está inscrito e onde (as matérias que suportam cada palavra) dá-se um efeito de afinidade (maior ou menor) por identificação e pathos. É a experiência de reconhecer, na obra (feita por outros), um reflexo ou um desdobramento daquilo que somos. A instalação permite ler todas as palavras inscritas (quer por desbaste ou subtração, quer por acréscimo ou adição) de forma clara e contrastada, como se cada rectângulo fosse a capa de um livro. Na verdade, a harmonia cromática destes objectos permite pensar numa colecção de livros e, ainda, na organização visual com que nos são mostrado.
A coerência cromática, as formas modulares e repetitivas mostram (insistentemente) que nada é por acaso. E, também aqui, a artista escolhe as palavras que utiliza (para gravar e pintar) seguindo critérios que, ora se prendem com a experiência da obra (com a sua fruição estética), ora se ancoram à experiência de a fazer (processos e métodos que permitem por em prática, que dão forma às ideias de acordo com regras de execução e construção). Há, ainda, a acrescentar que cada conjunto de palavras, inevitavelmente, potencia o campo de significações possíveis na medida em que, juntos, parecem uma frase agramatical. Nesta agramaticalidade transparece abertamente, como uma mensagem encriptada, significados e sentidos abertos no domínio do possível — e cabe a cada um compreender (ou não) algum sentido que perpasse no que lê e no que vê.
Há que referir que as letras desenhadas por Mónica Capucho são maiúsculas e sem serifas (da família do typo helvética) acentuando a sua boa forma e, com este rigor gráfico, potenciando a sua maior legibilidade e consequente transparência. Transparente é todo o texto inscrito que se deixa ler, na medida em que os signos da sua inscrição tendem a desaparecer com a leitura e, a partir desta in-visibilidade, acede-se os seus conteúdos. Por contraste, opaco é todo o signo que impede a leitura: ou porque não é para ser lido (é figuração propriamente figural) ou porque a boa forma dos seus caracteres alfabéticos está em falta e impossibilita o reconhecimento indispensável. Opacidade e transparência dependem exclusivamente da in-visibilidade dos signos da escrita que revém da boa ou má forma do seu traçado figural (Lyotard, 1971:9-24). (Há que esclarecer que o termo "figural" é tomado de Lyotard, tal como o autor o delimita em Discours Figure. Embora este termo seja aplicado, sistematicamente, para referir qualquer elemento que participa na composição de uma pintura — à excepção da inscrição, ou seja, do texto pintado –, é possível utilizar o conceito excepcionalmente, como acontece neste caso, quando se refere à forma dos caracteres — as letras — implicando apenas o seu desenho.)
4. Considerações e livres interpretações por associação livre para uma possível conclusão.
Sérgio Rodrigues, no seu texto curatorial dedicado à exposição termina com este parágrafo:
Em ambos os casos [Sala Multiusos e Galeria Vieira da Silva] Mónica Capucho procede à elaboração de um sistema, de uma norma ou gramática visual, que é depois alterada (contradita e reforçada) pela inserção da palavra escrita. Algo que, numa abordagem sensível e inteligente, gere a parcimónia e a assertividade, encontrando sentido na singularidade que as obras emanam. Entre a regra e a exceção, entre o conjunto e o individual, entre o raciocínio e a sensibilidade. (Rodrigues, 2018:8)
Na Sala Multiusos pode-se entender as 20 pinturas-objeto segundo o conceito "specific objects" determinado por Donald Judd e, como consequência, inseri-los na estética minimalista. Mas, na medida em que estão posicionados como se depositados e alinhados sobre um chão cinzento sem tratamento, numa relação directa com os materiais e o espaço oco do edifício que os alberga, podem ter uma outra interpretação. Justamente, o seu formato rectangular e as inscrições em alto e baixo relevo lembram as campas fúnebres de um cemitério organizado.
Etimologicamente, o termo latino mater significa "matéria" e, também, "mãe". Por isso, o inglês "matter", que a artista utiliza no título da exposição, remete para "matéria-prima" ou "matéria primeira", quer dizer, simbolicamente, para a mãe-natureza que é a terra como chão fértil. A partir de Aristóteles, da palavra grega physis, o termo "natureza" é traduzido para o latim por Averróis (século XII) que a divide em dois conceitos (indivisíveis na língua grega): natura naturans e natura naturata. Natura naturans significa o nascer ou a natureza enquanto acção, verbo, força produtiva. Natura naturata significa o nascido ou o conjunto dos seres e das leis criadas por aquela mesma força. Ou seja, há uma relação vital entre a vida e a morte, entre viver e morrer implicada no termo "matter"; uma relação que está latente nesta instalação através da sua dimensão simbólica que se acentua se se associar a escala e rudez do edifício ao arquétipo arquitectónico de uma igreja salão. Também aqui existem janelas, muros altos e um espaço aberto que é concebido para fazer ecoar uma voz invisível e inaudível (a voz de Deus ou, a voz do Criador). Esta voz só se pode escutar através da leitura das escrituras, do texto bíblico porque, por definição, é através da inscrição que se representa a palavra dita, que se retém-se o efémero da plena voz. Mas enquanto criadora da sua obra, Mónica Capucho assume aqui uma voz através das palavras que escolhe representar nos seus "specific objects".
O observador olha (e lê) estas obras e:
(…) é o olho que, portanto, separa a legibilidade e a plasticidade; no primeiro caso, só necessita de percepcionar os sinais; estes sinais estão associados a significações: são poucos (estes sinais), e a riqueza dos significados resulta da combinação dos elementos distintos. A economia de tempo na leitura corrente deve-se ao princípio económico que rege o uso da comunicação linguística (…).
Ler é escutar e não ver. O olho apenas varre os sinais escritos, o leitor nem sequer regista as unidades gráficas distintivas (ele não vê gralhas), ele apreende as unidades significativas, e a sua actividade começa, para lá da inscrição, quando combina estas unidades para construir o sentido do discurso. Ele não vê aquilo que lê, ele procura ouvir o significado do que 'quis dizer' esse orador ausente que é autor do escrito. A este respeito, a escrita não oferece mais resistência à inteligibilidade do discurso do que aquela que oferece a palavra" Lyotard, 1971:217) (tradução livre).
As duas instalações de Mónica Capucho que compõem Solid Matter são, de algum modo, complementares.
Se, portanto, o espaço da Sala Multiusos se converte numa caverna ressonante, tal como as igrejas, há ainda uma outra dimensão que lhes é comum (entre esta Sala e as Igrejas), a saber: a função de guardiãs do corpo jacente. Justamente, as Igrejas começam por ser, também, cemitérios onde os corpos (mortos) são depositados por baixo do chão e identificados com inscrições gravadas na pedra. As lajes rectângulares de pedra que forram o chão das Igrejas têm — e é possível aferir, ainda hoje, esta coincidência — um texto escrito com letras maiúsculas e centrado na superfície plana. Esta é a opção estética de inscrição que Mónica Capucho utiliza nos seus sólidos rectângulos que servem de suporte pictórico à sua escrita.
Na Galeria Vieira da Silva, o chão está desocupado e são as paredes que sustentam as obras. O espaço reclama a convencionalidade da montagem musealizada com os seus critérios específicos porque também ele foi edificado à semelhança de um arquétipo museológico (o White Cube).
No último conjunto de objectos desta sala (excluindo as pinturas) pensa-se novamente no conceito de "Specific Objects". Cada objecto é constituído por 5 peças (uma vigota e quatro rectângulos de matérias diferentes com palavras inscritas) e imediatamente há uma associação formal com a instalação patente na Sala Multiusos. Esta associação deve-se à afinidade entre as matérias usadas e à inscrição que contrasta em alto-relevo e cor com o suporte ou que se recorta (em baixo relevo). Os quatro rectângulos assumem a mesma dimensão da face maior de um tijolo de argila vermelha ou encurtam-no para metade. E a sucessão de (no máximo) quatro palavras inscritas (as mesmas que dão título a cada peça) sobre a pedra, o cimento, a madeira, o vidro sussurram ao ouvido de quem ali está. Novamente, o modo como são posicionados os rectângulos remete, por um lado, para as lajes das pedreiras, colocadas sobre uma base horizontal e apoiadas na vertical e, por outro, parecem livros sobre prateleiras, colocados de frente. A posição centralizada da inscrição mostra o domínio técnico da artista a utilizar o silicone pigmentado: no desenho da escrita alfabética como exercício gráfico conjugam-se e organizam-se os graphos que distinguem cada letra — seu traçado distintivo. Este jogo organizado inclui a qualidade sígnica do texto e exige, simultaneamente, duas modalidades do olhar: a visualização e a legibilidade. Da caligrafia ("calii-" do grego kallos que significa beleza, e "grafia" que significa escrita) à garatuja, ou seja, da escrita legível, que resulta da boa forma do grapho, à escrita ilegível, que é consequência de um mau desenho até ao limite da sua irreconhecibilidade –, está o auto-grapho (no sentido da marca do autor) e o manuscrito. Ambos admitem uma qualidade i-legível que advém da marca da mão que escreve, do gesto de quem redige. Neste caso, a marca da artista cinge-se ao total controlo do desenho que caracteriza cada letra (abdicando, consequentemente, da expressividade do desenhar). Cada objecto repete um modelo: a prateleira fina adossada à parede onde três ou quatro rectângulos ostentam uma palavra bem legível e inscrita com o memo typo, com a mesma, dimensão e variando apenas na cor, por contraste com as matérias do suporte. Como se cada retângulo fosse um livro. Como se o conjunto fosse uma biblioteca. Como se cada palavra fosse um cemitério.
Ambas as instalações celebram, de modo subtil, as ideias de arquivo, de colecção, de série. São estas ideias que atravessam o enformar das matérias sólidas que a artista elege para suporte pictórico e que lhe permitem oferecer uma experiência estética plena de significações e ressonâncias.
Referências
Judd, Donald (1965), "Specific Objects", in Arts Yearbook, 8, New York, pp. 74-82. [ Links ]
Lyotard, Jean-François, Discours Figure, Paris, Klincksieck, (1ª ed., 1971), 2002. ISBN 10: 2252033681 e ISBN 13: 9782252033685 [ Links ]
Marin, Louis, "Experiências estéticas no laboratório da escrita-figura", in: Revista de Comunicação e Linguagem — a experiência estética, coord. Emídio Rosa de Oliveira e Maria Teresa Cruz, trad. Maria Luísa Alves Lopes, nº 12/13, Lisboa, ed. Cosmos, 1991. [ Links ]
Rodrigues, Sergio Fazenda (2018), "Solid Matter", in Solid Matter Mónica Capucho (Catálogo da exposição), Loures, CMLoures / Departamento de Cultura, Desporto e Juventude / Divisão de Cultura, ISBN 978-972-9142-55. [ Links ]
Artigo completo submetido a 07 de janeiro de 2019 e aprovado a 21 janeiro de 2019
Correio eletrónico: emam.margaridaprieto@gmail.com (Margarida Prieto)