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Revista :Estúdio
versão impressa ISSN 1647-6158
Estúdio vol.10 no.25 Lisboa mar. 2019
ARTIGOS ORIGINAIS
ORIGINAL ARTICLES
Ensaio sobre as paisagens de Lenir de Miranda
Essay on the landscapes of Lenir de Miranda
Paulo César Ribeiro Gomes*
*Brasil, artista visual.
AFILIAÇÃO: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Artes, Departamento de Artes Visuais, Programa de PósGraduação em Artes Visuais. Rua Senhor dos Passos 248, Porto Alegre CEP: 90020-180 Brasil.
RESUMO:
Neste artigo tratamos da paisagem e de sua permanência entre os artistas do Rio Grande do Sul, com destaque para Lenir de Miranda (Pedro Osório, RS — 1945), artista atuante em Pelotas (RS). Nos deteremos sobre a temática de suas paisagens e as ações que a artista opera para sua realização. Suas pinturas de paisagens estabelecem um denso e complexo diálogo com seu espectador, exigindo deste uma imersão no seu amplo e erudito universo cultural. Fascinada pelas origens, a artista expõe os princípios da instauração de sua obra e opta pela multiplicidade de leituras.
Palavras chave: Lenir de Miranda / pintura de paisagem / pintura contemporânea / arte no Rio Grande do Sul.
ABSTRACT:
This article is about the landscape and its permanence among the artists of Rio Grande do Sul, especially Lenir de Miranda (Pedro Osório, RS — 1945), an artist working in Pelotas (RS). We will focus on the theme of her landscapes and the actions that the artist works for her accomplishment. Her paintings of landscapes establish a dense and complex dialogue with her spectator, demanding an immersion in its wide and erudite cultural universe. Fascinated by the origins, the artist exposes the principles of the establishment of her work and opts for the multiplicity of readings.
Keywords: Lenir de Miranda / landscape painting / contemporary painting / art in Rio Grande do Sul.
Introdução
Este é um ensaio no qual tratamos da paisagem, sua categoria de gênero, seus usos pelos artistas e sua permanência entre os artistas sulinos. Tratamos, principalmente, das paisagens pintadas por Lenir de Miranda (Pedro Osório, RS — 1945), sobre o que elas versam e como a artista opera para sua realização.
Lenir de Miranda é uma pintora atuante em Pelotas, cidade do sul do Rio Grande do Sul, no extremo meridional do Brasil, um lugar com paisagens planas — o pampa — e naturalmente monótonas. Sua pintura de paisagens estabelece um denso e complexo diálogo com seu espectador, pois, se o princípio da paisagem é a mimese, a artista subverte-o ao optar por tudo que o nega: à perspectiva opta pela sobreposição dos elementos e das formas; ao colorido mimético opta pela saturação das cores cruas e evocativas; ao suporte horizontal prefere as síncopes dos suportes articulados por justaposições; ao desenho ordenador sobrepõe o grafismo anárquico e o letrismo ininteligível, pois este não é indicativo da narrativa, mas dos processos internos da construção do discurso. A superfície é o que há de mais profundo nesta pintura: sua pele é a ossatura em construção e a carne em formação (Figura 1,Figura 2, Figura 3). É uma pintura na qual a construção se dá de dentro para fora, evidentemente, mas que é exibida pelo avesso, logo, é uma construção de fora para dentro: vemos o esqueleto antes de ver a carne, vemos a carne antes de ver a pele, vemos a pele antes de ver as marcas do mundo, uma paisagem exógena. Paisagem subjetiva ou paisagens subjetivadas? Não importa a classificação: subjetiva, pois é particular e subjetivada, pois opta por manter todos os dados e elementos constituintes evidentes, como peças de um jogo, como partes de um todo a ser continuadamente montado e remontado.
Sobre o gênero paisagem e dos usos enquanto gênero
A paisagem é um gênero inglório, pois se sua natureza é o da mimese agradável aos olhos, ao tornar-se outra ela abre um espaço imensurável de incompreensões e cobranças de fidelidade à sua natureza primeira. Se a paisagem era, inicialmente, a representação do exterior objetivo, a partir do Romantismo pictórico ela abre-se para a subjetivação: paisagens internas, paisagens do eu desconfortável no mundo industrializado; a paisagem como constructo pictórico, campo neutro da revolução modernista, lugar exterior a serviço do arcabouço imagético e intelectual dos artistas, vide Cézanne. No pós-modernismo a paisagem deixa de servir as elucubrações ontológicas e formalistas, fixando-se na questão cultural: lugares nos quais a cultura se debate com a natureza humana. Daí as paisagens de ruínas de Anselm Kiefer, contradictio per se, pois reconstrói a identidade do sujeito a partir dos restos deixados pela arrogância dos indivíduos.
Sobre a persistência do gênero entre os sulistas
Fundou-se o Rio Grande do Sul através das discretas e silenciosas paisagens literárias de Apolinário Porto Alegre (1844 — 1904), de Caldre e Fião (1821 — 1876) e de Oliveira Bello (1851 — 1914). Mas também tivemos as hiperbólicas descrições do nordestino José de Alencar (1829 — 1877), que lançou seu olhar formador, pois não podia prescindir da distante paisagem sulina na construção do seu ideal de Brasil. Depois vieram os pintores e o primeiro foi Pedro Weingärtner (1853 — 1929) com as paisagens rurais identitárias e emocionais, pois são menos ocupadas em captar a topografia do que o ar e o clima locais. Após, Afonso Silva (1866 — 1945), Libindo Ferrás (1877 — 1951) e Oscar Boeira (1883 — 1943), paisagistas da transição do mundo rural para o mundo urbano, da cultura campeira para a cultura urbana industrial, exímios praticantes do impositivo gênero. Após a transição vieram a afirmação do urbano através da paisagem modernista de Angelo Guido (1893 — 1969), de Luís Maristany de Trias (1885 — 1964) e de Benito Manzon Castañeda (1885 — 1955) e, entre os primeiros e esses, podemos incluir a paisagem cordata do pelotense Leopoldo Gotuzzo (1887 — 1983). Feita de acordos entre dados conflitantes — com o belo e o documental, o real e o imaginário, o pessoal e o coletivo –, ela se opõe, na sequência, as primeiras paisagens rurais convulsivas de Iberê Camargo (1914 — 1994), logo amaciada nas suas modernistas descrições líricas dos casarios porto-alegrenses e cariocas. Também são contemporâneas as paisagens urbanas de Gastão Hofstaetter (1917 — 1986), Carlos Alberto Petrucci (1919 — 2012) e Edgar Koetz (1914 — 1969), primorosos na fatura e na evocação do real, em tudo opostas e contrapostas ao lirismo pictórico das paisagens introspectivas de Ado Malagoli (1906 — 1994) e de Alice Brueggemann (1917 — 2001). Todos, sem exceção, lutaram contra a evidente falta de atrativos facilitadores da paisagem rural sulina, esvaziada de relevos dramáticos e de quase impossível apreensão, pois, se é falsamente tranquila é, entretanto, continuadamente atormentada pelos furiosos ventos, que impedem sua definição e esfriam o ofuscante sol que a ilumina.
Tentativa de definição
Pode-se dizer que as paisagens de Lenir de Miranda são mnemônicas, para usar a expressão acuradíssima de Márcio Seligmann-Silva (2011). São construções intelectuais antes de tornarem-se objetos pictóricos. Como Petrarca, que ascende ao monte Ventoux, "o primeiro a encontrar a fórmula da experiência paisagística no sentido próprio do termo: o da contemplação desinteressada, do alto, do mundo natural aberto ao olhar." (BESSE, 2006: 1), a artista também inaugura sua experiência elegendo um lugar de onde olhar: olha do topo, vendo o todo da cultura.
Conversas sobre a cultura e sobre a cultura da conversação
Márcio Seligmann-Silva (2011) escreveu que
[…] pode-se considerar toda cultura como manifestação e construção da memória. Quando pensamos no conceito de memória cultural, não podemos nos esquecer que essa memória é tanto constituída por textos como por imagens (e pela ação recíproca de um sobre o outro), assim como é essencial ter em vista que a memória deve ser sempre pensada como um processo tenso, submetido a uma série de determinantes coletivas, sociais, políticas, mas também individuais e emocionais.
Mais não é preciso dizer. A pintura sobre a qual discorremos trata exatamente desse processo tenso, com todas as determinantes sociais e também individuais e emocionais. Assim é que aos textos fundadores da cultura ocidental como a Ilíada e seus heróis, mormente Odisseu, associa-se ao Ulisses, o de James Joyce. Ambos síntese dos dilemas de suas épocas, tabula rasa da cultura dos seus mundos e, para que não haja qualquer dúvida sobre o que restou do apagamento do que estava escrito na lousa da vida, T. S. Eliot traz as ruínas de sua Terra Desolada: diálogos entre pessoas inteligentes.
Sobre as matérias agregadas
Não se trata de pintura na qual a matéria utilizada, além da tinta, se expressa a partir de sua própria presença na superfície pictórica: trata-se de matéria agregada sim, mas de valor questionável, isto é, não vale per se, mas pelo que pode complementar um pensamento. No momento em que surge perde seu valor intrínseco, não é pars pro toto, mas parte do todo, destacada e destacável, mas integrada ao discurso em evidência.
A dificuldade de fruir esta paisagem esta no fato de que ela não se constrói de dentro para fora, isto é, não temos um desenho prévio das partes constituintes, não há a evidenciação dos elementos e das formas da natureza, não ocorre a presença de discursos de qualquer espécie: nem mimético, nem subjetivo, nem pictórico, tão pouco conceitual.
O que diz a pintora
Do mesmo modo que o poeta argentino León Benarós afirma em Vidala Cayera, sobre suas paisagens Lenir de Miranda também nos propõe: Le dificulto la facilidad… Isso significa que, ao invés da simples contemplação desinteressada, sua obra exige do espectador uma imersão no amplo e erudito universo da cultura ocidental, com a sua totalidade dos seus constructos intelectuais e das manifestações plástico-visuais. Também escreveu a artista (1994, não paginado) que "Cada obra traz em si mesma elementos decifradores, enquanto provenientes da forma que encerra e se abre, oriundos da fonte de origem (artista) e da fonte decodificadora (perceptor). Há um curso oceânico que espera consequências". Em outro momento ela afirma que
Posso ouvir o som desta pintura sulcada pelo carvão. É a vibração da sua presença física, sob cores líquidas sombrias de mares e terras míticas. […] É como a imagem se descobre, numa terra devastada, como restos de queimadas imagem que se acumula camada após camada, um palimpsesto de memórias e tentativas agitadas para reter a cena. (2009:45)
Se for um consolo para minha incapacidade de decifração, proponho a leitura do que Paul Valéry escreveu a propósito das explicações: "[…] se me interrogarem, se se inquietarem (como acontece, e às vezes intensamente) sobre o que eu 'quis dizer' em tal poema, respondo que não quis dizer, e sim quis fazer, e que foi a intenção de fazer que quis o que eu disse…" (1991: 173).
Assim como para Paul Valéry a pintora é, talvez, mais fascinada pelo fazer do que pela obra finalizada. Deixa visível nas suas obras as marcas de seu processo. Fascinada pelas origens, tem um espírito de geneticista: expõe princípios porque não quer explicar e não quer impor razões.
Referências
Besse, Jean-Marc (2006). "Ver a Terra: seis ensaios sobre a paisagem e a geografia". SP: Editora Perspectiva. ISBN 85-273-0755-3. [ Links ]
Seligmann-Silva, Márcio (2011). "A literatura como dispositivo de memória". Revista Pré-Univesp, nº 11. Disponível em: http://www.univesp.ensinosuperior.sp.gov.br/preunivesp/2128/a-literatura-comodispositivo-de-mem-ria.html [ Links ]
Miranda, Lenir de (1994). "Autobiografia de todos nós". Pelotas: Livraria Mundial (volume não paginado). [ Links ]
Miranda, Lenir de (2009). "Meu nome é ninguém". Porto Alegre: Museu de Arte do Rio Grande do Sul Ado Malagoli. [ Links ]
Valéry, Paul (1991). "Acerca do Cemitério Marinho". In "Variedades". São Paulo: Iluminuras — Projetos e Produções Editoriais Ltda. ISBN 85-85219-32-7 [ Links ]
Artigo completo submetido a 03 de janeiro de 2019 e aprovado a 21 de janeiro de 2019
Correio eletrónico: oluapgomes@gmail.com (Paulo Gomes)