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Revista :Estúdio
versão impressa ISSN 1647-6158
Estúdio vol.10 no.25 Lisboa mar. 2019
ARTIGOS ORIGINAIS
ORIGINAL ARTICLES
As tramas do corpo /cidade de Margarida Holler
The wefts of the body /city of Margarida Holler
Ronaldo Alexandre de Oliveira* & Carla Juliana Galvão Alves**
*Brasil, arte educador, docente, pesquisador.
AFILIAÇÃO: Universidade Estadual de Londrina, Departamento de Educação, Comunicação e Arte, Departamento de Arte Visual. Rua Ernani Lacerda de Atahyde, nº 210, apto. 903, Edifício Lago Azul, CEP86055630, Londrina, Paraná, Brasil.
**Brasil, professora.
AFILIAÇÃO: Universidade Estadual de Londrina, Departamento de Educação, Comunicação e Arte, Departamento de Arte Visual. Rua Ernani Lacerda de Atahyde, nº 210, apto. 903, Edifício Lago Azul, CEP86055630, Londrina, Paraná, Brasil.
RESUMO:
Este trabalho apresenta algumas reflexões sobre o trabalho da artista brasileira Margarida Holler, com foco nas relações entre corpo e cidade. O corpo é objeto, mas principalmente sujeito da experiência artístico/ estética no trabalho da artista, uma vez que é pensado a partir de suas próprias vivências e percepções. Com esse objetivo, escolhemos abordar os processos construtivos de duas obras realizadas em site-specific nas cidades de São Paulo — SP e de Londrina-PR, Brasil.
Palavras chave: corpo / cidade / site-specific.
ABSTRACT:
This work presents some reflections on the work of the Brazilian artist Margarida Holler, focusing on the relations between body and city. The body is seen as an object, but mainly the subject of the artistic/ aesthetic experience in the work of the artist, since it is thought as deriving from its own experiences and perceptions. With this objective, we chose to approach the constructive processes of two site-specific works in the cities of São Paulo-SP and Londrina-PR, Brazil.
Keywords: Body / city / site-specific.
Introdução:
Margarida Holler, nascida em São Paulo — Brasil, em 1946, vive e trabalha em Jacareí / São Paulo/Brasil). Artista visual com uma intensa e constante produção, vem mostrando regularmente seu trabalho em importantes mostras de arte no Brasil e exterior. Como artista, Margarida Holler mostra-se em constante processo de formação que está atrelada à frequência de importantes ateliês da cidade de São Paulo e ligada a nomes expressivos da arte Brasileira; dentre eles destacamos: Carlos Alberto Fajardo, Sandra Cinto, Albano Afonso, Claudio Mubarac, Evandro Carlos Jardim, dentre outros. Atualmente faz acompanhamento de projetos com Ananda Carvalho e livro de artista com Fabiola Notari.
O corpo é tema e material de pesquisa no trabalho de Margarida Holler. A artista é uma estudiosa do corpo; o corpo em suas mais diversas manifestações como ela mesma conceitua e dimensiona. De maneira ampla, o corpo se insere e se faz presente em sua obra: "Corpo -morada", "Corpo percepção do mundo", "Corpo-Ciência", "Corpo abrangente".
Desta maneira, o objetivo deste texto é refletir sobre o trabalho da artista, tomando como base essa dimensão do corpo e tecer algumas reflexões sobre os processos construtivos de duas obras da artista: a primeira da Série Corpo-Morada Entre Lugares: Cordis, 2013, trabalho que desenvolveu para o projeto "Vitrinas MASP, para o Museu de Artes de São Paulo". E a segunda trata da obra intitulada Célula-Corpo, (2017), obra essa que integrou a exposição Arte Londrina 5 "Teu corpo é Luta", no decorrer do ano de 2017, na cidade de Londrina / Paraná / Brasil.
1. Corpo-morada entre lugares: Cordis
O corpo é objeto mas principalmente sujeito da experiência artístico/estética no trabalho de Margarida Holler, uma vez que é pensado a partir de suas próprias vivências e percepções. A partir de então entrega-se a uma pesquisa que envolve as mais diversas áreas do conhecimento, da anatomia à composição química do solo, em busca de materialidades que lhe permitam construir suas moradas / corpos / mundos. Mas não como refúgio ou isolamento. A artista quer que a sua obra nos afete como ela é afetada pelos diferentes lugares dos quais se aproxima. Suas obras nos convidam a nos conectar e habitar os espaços em que vivemos. O caráter absolutamente contemporâneo do trabalho de Margarida Holler reside no desejo de estabelecer relações com o expectador, de criar aproximações e de oferecer a ele uma experiência vivencial que se aproxime em intensidade de seu próprio processo de criação. Um grande exercício de aproximação com o outro, com o espaço e com o lugar. Muitos de seus trabalhos implicam em uma imersão no local que abrigará a obra que lhe permita investigá-lo como um lugar-corpo: sua pele, cicatrizes, fluxos, temperatura, umidade. Passam a ser explorados como espaços-lugares orgânicos, pulsantes, nos quais se estabelecem relações. São lugares do acontecer, já que se dão na relação dinâmica e indissociável entre os sistemas de objetos e de ações (Santos).
No desenvolvimento do projeto Vitrinas MASP, para o Museu de Artes de São Paulo, a artista elaborou uma vivência que incluía estar presente nos mais diversos horários em diferentes pontos da avenida Paulista / São Paulo / Brasil. Para isso, dormiu em um hotel próximo, que lhe permitisse caminhar em diversos horários, inclusive na madrugada para observar o fluxo do metrô e o movimento de carros e pedestres.
O movimento das pessoas transforma as ruas da cidade em artérias e veias. "Dos subterrâneos do Metrô Trianon-MASP, artéria invisível, à superfície da avenida Paulista transbordando movimento, o pulsar de cada ser humano compõe a construção desta urbe, em contínuo deslocamento por 24 horas" (Holler) Mapeando os arredores da avenida Paulista, região onde nasceu, Margarida traçou uma linha unindo os principais hospitais da região, e acabou por descobrir o desenho de um coração, (Figura 1) em cujo interior se aninhava o MASP.
Em resposta, a artista amplia e constrói essa imagem (Figura 2) em uma das paredes do Metrô, como um imenso sudário, em diversos tons de vermelho vivo e quente. A parede fria desse espaço de passagem quase ininterrupta de pessoas se transforma em uma pele viva, pulsante. É possível ouvir os batimentos do coração. O pulsar que Holler faz emergir daquela cartografia de parte da cidade que fez nascer um coração, artérias múltiplas em diferentes dinâmicas e batimentos faz emergir a cidade que agora cada passante, caminhante se reconhece ali em forma de obra de arte.
São essas artérias e veias singulares, únicas que cada sujeito pulsa em si e fazem pulsar a cidade de diferentes formas, ritmos, dinâmicas, intensidades, que Holler vem construindo ao longo de sua obra. Percebemos que Holler quer apreender essa urbe nas suas mais diversas nuances, nas "múltiplas singularidades" que a cidade contém, pois cada um que nela vive traz consigo uma história, uma lembrança, uma relação estabelecida, um afeto, um desafeto. Não são iguais os pontos de vistas, nem as histórias. A sua obra parece querer tocar nisso, por isso ela se entrega e parte em busca destas memórias singulares, únicas e múltiplas ao mesmo tempo, para que assim construa seus corpos / moradas. Maria Rita Kehl fala desta cidade íntima que vive em cada um que habita a cidade:
[…] énacidadequeohomemsereconhece. Acidadeésuahistória, suatestemunha, sua referência cotidiana. A cada um desses anônimos, aparentemente iguais, circulando pelos mesmos espaços, corresponde uma cidade íntima particular. […] Cada homem comum tem a cidade que seus passos percorreram e que sua imaginação inventou. Cada homem possui secretamente, na imensidão esmagadora da cidade, os nichos que acolhem suas lembranças: memórias do vivido […] (Kehl, 2006: 293).
Margarida, por meio da sua obra quer nos fazer ver/perceber/vivenciar essas múltiplas cidades. Nas tramas da urbe, materializadas nas representações cartográficas, Holler aprofunda seus estudos em busca das singularidades, dos passos que cada um deu e está por dar na construção da sua história/cidade. Desses anônimos /particulares/íntimos como nos ensina Khel, por meio das suas reflexões, Holler constrói arte e por meio dela torna coletiva essas memórias, os passos desses caminhantes construtores de vida, construtores de cidades. Dos passos que cada um deu e foi constituindo a cidade, Holler unindo pontos, cria um grande coração e nos parece que metaforicamente ela nos faz ver e sentir o coração de cada um que circula e vai em diferentes ritmos, dinâmicas, fluxos construindo a cidade. Construção essa que não para, e o tempo todo pulsa, por isso as visitas em seus diferentes tempos, períodos, situações no entorno do MASP. Margarida quer chegar o mais próximo daquilo que importa: a essência das coisas, do lugar, das pessoas. Holler quer chegar no coração do mundo, que se faz vida, que se faz matéria, que se faz arte.
No seu deslocar / caminhar / construir pelo mundo Margarida Holler por meio da sua obra nos leva até outras terras/territórios de um outro lugar: Londrina / Paraná / Brasil. A paisagem, a terra, as cores, o solo, a constituição geológica do lugar impressionou a artista desde viagens anteriores que fez à cidade de Londrina.
2. Célula-corpo
O convite aqui é dividir algumas considerações sobre a obra Célula-Corpo, (2017), (Figura 3) obra essa que integrou a exposição Arte Londrina 5 "Teu corpo é Luta", no decorrer do ano de 2017, na cidade de Londrina/Paraná/Brasil. Arte Londrina, é um edital com chamada pública de abrangência nacional onde artistas submetem seus portfólios a uma apreciação e seleção daquilo que constituirá aquela edição do projeto. O Arte Londrina é uma iniciativa da Divisão de Artes Plásticas, órgão suplementar ligado à Universidade Estadual de Londrina. Na obra Célula-Corpo, (2017), Holler, impressionada pela cor da terra, pelas informações que encontra sobre a constituição do solo, do espaço e do lugar, parte das referências da cidade de Londrina, e por meio das suas pesquisas, a artista desencadeia um processo de construção de uma obra tecida com fios de cobre utilizando a técnica do crochê. A região norte do Paraná, onde está localizada a cidade de Londrina, possui um solo de coloração vermelho-roxeada por causa da presença de minerais, especialmente ferro, advindo da decomposição de rochas de arenito-basáltico, de origem vulcânica. Os primeiros imigrantes italianos que aqui chegaram para trabalhar nas lavouras cafeeiras a ela se referiam como "terra rossa", uma vez que "rosso" no idioma italiano significa vermelho. O uso informal e cotidiano da palavra acabou firmando o termo "terra roxa" pela similaridade fonética.
Assim, Margarida escolheu o cobre por sua cor avermelhada para tecer grandes tramas/camadas sobrepostas, que iniciam fixadas na parede e continuam como que descendo por ela, desdobrando-se em pequenas células. Espalham-se pelo espaço criando pequenas moradas, umas dentro das outras, como podemos ver ainda na Figura 3. Os diferentes tons de vermelho elaboram uma cartografia da paisagem do norte do Paraná conforme se percebe em sobrevoo, registrando os diferentes estados e ciclos da terra. As plantações, a topografia, a terra úmida, fértil, esse corpo feminino pulsante, a grande mãe. Ao centro deste corpo, Holler fixa uma porção de terra natural do lugar, (Figura 4) o que nos faz pensar em corpo / morada, corpo / feminino, corpo / nascedouro de mundos.
Na pesquisa para a elaboração de Célula-Corpo a artista considerou o espaço expositivo como um todo, incluindo uma grande abertura na parede que recorta uma vista da cidade e permite a entrada abundante de luz, projetando sombras translúcidas através das células porosas. A artista busca ampliar a relação sensorial que tem as coisas a tal ponto que façam vibrar algo em nós. Nesta obra em questão, cria fluxos vibracionais que reverberam em nós, ampliando a experiência para o entorno.
Na construção de suas obras / corpos / mundo, Margarida Holler se apresenta como uma profunda investigadora de linguagens e materialidades. A cada obra, a cada espaço, pesquisa-se materiais e procedimentos que melhor dêm conta daquilo que está por vir, está por nascer. Para ela, seja gravura em metal, desenhos, pinturas, objetos de tecidos em fios de cobre, terra, pigmentos, papéis, transparências, costuras, instalações ou site-specific, tudo se apresenta como possibilidades para se construir seus corpos/moradas/mundos.
A reflexão sobre a obra de Margarida Holler, aproxima-nos de outras pesquisas realizadas por fotógrafos que tinham registraram o norte paranaense na época da sua colonização. Dentre muitos, destacamos aqui José Juliane, Haruo Ohara e Arminio Kaiser, cujas obras já foram foco de pesquisas anteriores. Assim, a obra de Holler (Figura 3) nos possibilita refletir sobre a maneira pela qual a produção contemporânea de arte olha para essa mesma terra que artistas / fotógrafos do passado olharam e deixaram em forma de imagens seus testemunhos de outras épocas.
Seja pela sua abundância, a fartura promovida pela terra, a grandiosidade das coisas, como descritas na obra de Jose Juliane; seja pela poesia da luz, como nas imagens do fotógrafo/lavrador Haruo Ohara, que por meio das suas lentes faz com que o trabalho rural possua algo de maravilhoso e espetacular; ou ainda pelo trabalho humano presente na cultura cafeeira vista por Arminio Kaiser, que documentou toda a lavoura e registrou os fartos tempos dessa cultura, e mesmo quando do seu declínio, registrou o êxodo rural, quando trabalhadores desnorteados buscaram por outras terras na esperança de tempos melhores.
O interessante, é perceber o quanto essa terra vermelha do norte do paraná exerce um fascínio que inevitavelmente nos remete a entender o lugar como uma trama de contradições e forças geradoras de vida e morte. Assim como encantou esses fotógrafos, encantou também a Holler que persistentemente volta a ela, e por meio de imersões, caminhadas, pesquisas, seleciona materialidades e procedimentos com os quais tece a terra, tece o espaço, tece o lugar, por meio das suas mãos tece o humano que nessa terra fez-se, fez-se cultura e agora ela faz arte. Célula-Corpo é um presente e um elogio a terra, ao norte do Paraná. Essa obra, por meio das mãos dessa mulher/artista/tecelã é um elogio à ancestralidade e à vida sempre presente.
Conclusão
Ao perpassar a obra de Margarida Holler fomos dimensionando a importância que o corpo representa em suas reflexões teóricas/práticas/poéticas. O corpo enquanto tema, material de pesquisa, o mote norteador da sua obra/vida/trajetória. O corpo é entendido aqui de maneira ampla em suas mais diversas manifestações: Corpo-morada, Corpo-percepção-do-mundo, Corpo-Ciência, Corpo abrangente. De maneira ampla, o corpo se insere e se faz presente em sua obra. Importante também é a dimensão da experiência, da imersão que Holler faz para com a construção da sua obra. Adentrar no espaço, conhecer a cultura, a dinâmica do lugar e o movimento dos sujeitos tornam-se parte fundamental do seu processo de criação. Margarida Holler quer chegar o mais próximo, o mais íntimo das coisas para que sua obra possa nascer quase como que reminiscência desse lugar, dessas pessoas. Há algo de ancestral na produção de Holler, nos parece que ela quer trazer à tona a energia primeira, a camada mais profunda, o tom essencial.
Nesta busca por chegar mais próxima das coisas, Holler se entrega, se coloca à disposição da arte, tornando-se assim uma andarilha em busca de outros tempos, sejam eles os diferentes tempos da terra, da cidade, ou das pessoas. Não temos dúvida de que a artista quer que a sua obra nos afete como ela é afetada pelos diferentes lugares dos quais se aproxima. Suas obras nos convidam a nos conectar e habitar os espaços em que vivemos, e talvez resida aí um dos pontos e o caráter absolutamente contemporâneo da sua obra: o desejo de estabelecer relações com o expectador, de criar aproximações e de oferecer a ele uma experiência vivencial que se aproxime em intensidade de seu próprio processo de criação.
Percebemos também no perpassar pela sua obra de que a pesquisa de materiais, procedimentos, técnicas são importantíssimos, pois importantes também o é a singularidade pela qual vai construindo cada obra, cada corpo/morada. A obra de Margarida Holler é um testemunho de imensa potência de como a arte contemporânea lida com a memória, o espaço, o corpo e o lugar.
Referências
Kehl, Maria Rita. (2006) O olhar no olho do outro. In: Lagnado, Lisette. 27ª Bienal de São Paulo-Seminários. Rio de Janeiro: Cobogó. ISBN: 978-85-60965-021. [ Links ]
Artigo completo submetido a 02 de janeiro de 2019 e aprovado a 21 janeiro de 2019
Correio eletrónico: roliv1@uel.br (Ronaldo Oliveira)