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Revista :Estúdio
versão impressa ISSN 1647-6158
Estúdio vol.10 no.26 Lisboa jun. 2019
ARTIGOS ORIGINAIS
ORIGINAL ARTICLES
Do estranho para o transcendental na obra de Fernando Maselli
From the strange to the transcendental in Fernando Maselli's work
Domingos Loureiro* & Sofia Torres**
*Portugal, Artista.
AFILIAÇÃO: Universidade do Porto, Faculdade de Belas-Artes, Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade. Av. Rodrigues de Freitas, 265 4000-221 Porto, Portugal.
**Portugal, artista.
AFILIAÇÃO: Universidade do Porto, Faculdade de Belas-Artes, Instituto de Investigação em Arte, Design e Sociedade. Av. Rodrigues de Freitas, 265 4000-221 Porto, Portugal.
RESUMO:
O artigo apresenta o modo como o Estranho é um recurso formal utilizado pelo artista Fernando Maselli (Buenos Aires, 1978) para construir um percurso para uma interpretação no universo do Transcendental. Centra-se em duas séries 'Indagaciones acerca de lo Sublime' (2015) e 'Anunciación' (2014-15) e pretende colocar em evidência como a manipulação de imagens naturalistas, induzindo através da ideia de estranho, indefinição espacial e temporal, proporciona uma alusão ao transcendental, sobretudo ao Sublime.
Palavras chave: estranho / transcendental / paisagem / Sublime.
ABSTRACT:
The article presents how the Stranger is a formal resource used by the artist Fernando Maselli (Buenos Aires, 1978) to construct a course for an interpretation in the universe of the Transcendental. It focuses on two series 'Inquiries about the Sublime' (2015) and 'Anunciación' (2014-15) and intends to highlight how the manipulation of naturalistic images, inducing through the idea of strange, spatial and temporal indefinition, provides an allusion to the transcendental, especially the Sublime.
Keywords: stranger / transcendental / lanscape / Sublime.
Introdução
A obra de Fernando Maselli desenvolve-se ao redor do religioso e do transcendental, assumindo o Sublime como centro de um universo formal e conceptual e "está marcada pela representação da imensidão da natureza perante a insignificância do ser humano" (Valcarlos: 2017). As suas produções, maioritariamente no campo da fotografia, apresentam imagens de paisagens idílicas que recuperam e assumem a imagética do Romantismo, onde a Natureza transmudada é espelho emocional e intelectual do homem e do Divino. São imagens de lugares desabitados, onde a noção de tempo se apresenta ambígua, remetendo para a ideia de lugares intocados ou anteriores à presença humana: espaços sinuosos imersos em neblina onde a dimensão atmosférica é muito carregada, ocultando e revelando as estruturas montanhosas ou da vegetação (Figura 1).
No entanto, as imagens dos lugares construídos por Maselli, apesar de se assemelharem a espaços reais, preservam um aspeto de espaço dissociado ou incoerente, onde a luz, o horizonte ou a noção de gravidade parece ser subvertida. Preservam uma espécie de impossibilidade, uma dimensão de instabilidade e de falência visual, onde tudo o que parece correto é simultaneamente colocado em causa, assumindo-se na sua dinâmica formal entre o estático e o móvel, entre o concreto e o invisível, entre o imanente e o transcendente. Levanta-se então a questão: — O que possibilita esta experiência visual? E, — Qual o percurso desenvolvido pela imagem para alcançar esta dimensão fenomenológica?
O processo de trabalho de Maselli desenvolve-se em diversas fases: a) a primeira corresponde a um processo de pesquisa por lugares onde foram relatados eventos paranormais, metafísicos, espirituais ou de cariz religioso, num período recente ou não; b) dessa recolha e seleção, o artista empreende uma imersão solitária no espaço físico, numa estancia mais ou menos prolongada, expondo-se frequentemente a elementos climatéricos e espaciais extremos; c) no espaço, regista fotografias e videos, sob diferentes pontos de vista e em momentos temporais diferentes; d) regressado ao estúdio, o autor processa e reconstrói as imagens, mantendo elementos do espaço original, mas manipulando a cena de forma a eliminar marcas da presença humana e não só; e) por fim, as imagens são devolvidas ao espaço fisico através da sua instalação em espaços expositivos. Apresenta-se neste artigo o percurso de construção das imagens de Maselli, incidindo sobre o uso do estranho como referência visual e porque se assume como uma ferramenta essencial para o sucesso conceptual e fenomenológico das imagens. Procura-se ainda explicar como o artista utiliza um processo concreto de constrangimento para potenciar o acesso ao território do transcendente, nomeadamente ao Sublime.
1. Imersão e recolha
O processo de imersão na paisagem onde são recolhidas as imagens é realizado a partir de um conjunto de espaços onde estão referenciados acontecimentos de natureza religiosa ou transcendental. Locais onde foram, em algum momento da história, descritos fenómenos milagrosos ou místicos que o artista procura identificar, "considerados espaços sagrados por diversas tradições culturais (…) servindo-se do neologismo cunhado pelo investigador do fenómeno religioso Mircea Eliade, Hierofanías" (Abad Vidal, 2015: texto da exposição "Indagaciones acerca de lo sublime")
Assim, Maselli realiza expedições a lugares frequentemente inóspitos, registando e experienciando o impacto visual, físico e simbólico do lugar, expondo-se aos elementos e às suas consequências. Lugares como os Pirineus ou os Picos da Europa, em Espanha, ou regiões montanhosas da América Latina, entre outros (Valcarlos: 2017, texto da exposição "Infinito Artificial").
A imersão na natureza relembra a relação fenomenológica do artista do Romantismo, William Turner (1755-1851), ou dos artistas da Land Art. Autores associados conceptualmente ao Sublime e que Maselli absorve para a sua ação, quer do ponto de vista performativo quer ideológico. A imersão consolida-se como uma incursão meditativa, onde o artista se disponibiliza física e psiquicamente para a receção do espaço: visual, auditiva, táctil, olfativa e mental. Este processo empírico desempenha um papel essencial para a construção da imagem posterior, como informação que acomete uma dimensão ultra-sensorial. Trata-se de uma ação que remete para Richard Long (1945), Marina AbramovicÌ (1946) , Alberto Carneiro (1937-2017), autores para quem a performance e a relação com a natureza são centrais, mas também para Thomas Struth (1954), especialmente na série "Paradises" (1998-2007), Michael Najjar (1966) na série "High Altitude" (2009-10), Pedro Vaz (1977), João Queiroz (1957), Rui Algarvio (1973) ou Michael Biberstein (1948-2013).
Segundo Valcarlos, durante a jornada, ele contempla e experimenta a paisagem de maneira introspectiva, enquanto reflete e estuda os planos e as possíveis combinações que pode fazer.
Realizadas a partir de ações de imersão na paisagem, sobretudo, montanhosa, as suas composições parecem assumir a intemporalidade do espaço, remetendo para a Natureza antes da presença humana, para um espaço-tempo indefinido, imbuído da imensidade do divino. Nesse âmbito, para além dos locais escolhidos, principalmente remotos, será nas características da recomposição das imagens que se formulam as condições de instabilidade e de aparente indefinição temporal.
2. Manipular através do estranho
Ao compor, (Maselli) pode usar imagens de diferentes lugares, mas sempre pertencentes ao mesmo maciço e cordilheira, tiradas de diferentes ângulos. Mais tarde, no estúdio, utiliza técnicas digitais para compor suas obras e através de "fragmentação, repetição, multiplicação e sobreposição de volumes, enfatiza a magnificência das cordilheiras montanhosas". Assim, através do uso desse processo digital e da reiteração das partes, ele constrói paisagens imaginadas nas quais tenta alcançar o efeito do infinito. (Valcarlos: 2017)
Como se percebe no excerto, o programa de trabalho do autor segue metodologias concretas (Figura 2). Todavia, o processo de manipulação ou recomposição das imagens (e dos espaços), assenta numa dimensão metodológica menos obvia, já que a intenção conceptual e formal da nova imagem não é reproduzir o espaço físico, mas induzir um estado contemplativo e fenomenológico. Para isso, o autor, recorre a processos que paralelamente constroem e destroem a imagem, promovendo uma organização da imagem assente formalmente no estranho. O estranho é uma forma de classificar a dimensão formal de ambiguidade que as paisagens transmitem e consiste na convocação de um estado de incompreensão concreta do espaço e do tempo, o que origina uma impossibilidade de leitura da totalidade dos fenómenos visuais.
Nas suas obras, Maselli usa colagem para mostrar uma natureza inventada, artificial e infinita, fotografada de forma contemplativa em busca da empatia do espectador. (Valcarlos: 2017)
O estranho é a designação que escolhemos para identificar o recurso visual que assenta na composição de elementos formalmente similares mas dissonantes no ângulo de visão e no período temporal. No caso da paisagem natural realizada pelo autor, sobretudo presentes em exposições como "Infinito Artificial" (2016-2017) e "Indagaciones acerca de lo Sublime" (2015), o estranho apresenta-se na discrepância visual e temporal de cada fragmento da cena, resultando-se aparentemente credível, mas formalmente impossível. Esta dimensão convoca um estado de inquietação que remete para a experiência sublime, sobretudo na definição proposta por Edmund Burke, de um estado de incompreensão, seguido por um estado de deleite (2013).
A condição formal das paisagens realizadas por Maselli, onde a manipulação digital organizada ao redor da ideia de estranho é central, evidencia o modo como o trabalho do artista revela o papel da tecnologia e do poder humano sobre a natureza. Neste sentido, as paisagens isoladas e intemporais que o artista apresenta, fazem ecoar uma dimensão crítica e política sobre a atuação humana, quer sobre a natureza, quer sobre as dimensões empíricas do sublime (Abad Vidal, 2015).
3.Transcendência e Sublime
Atualmente (…) em vez da natureza é o incrível poder da tecnologia suscetível de fornecer mais a matéria-prima do que pode ser considerado um sublime caracteristicamente contemporâneo. () extrema compressão espácio-temporal produzida por tecnologias de comunicação globalizadas dando origem a uma perceção do quotidiano como fundamentalmente desestabilizador e excessivo (Morley, 2010:12)
As paisagens naturais de Maselli são, objetivamente, artificiais e recordam o processo de trabalho utilizado por Najjar, na série "High Altitude" em que picos nevados, inicialmente recolhidos nos Andes da Argentina, são depois reconstruídos reproduzindo gráficos das principais Bolsas de Mercado Mundiais. Relembra ainda a série "Orogenesis — Landscape without memory" (Batchen, 2005) realizada por Joan Fontcuberta (1955), em que imagens de paisagens idílicas e virgens, eram, na verdade, produzidas por software militar para treinar pilotos de aviação em ataques aéreos reais.
Tal como Fontcuberta e Najjar, Maselli coloca em evidência o poder humano sobre a natureza, convocando para a mesma imagem, paradoxos visuais e reais, como se poderá verificar na série "Anunciación" (Figura 3), onde apenas com imagens de nuvens, o artista, constrói cenas que remetem para a descrição de eventos religiosos extraordinários. Estas imagens são, na prática, construídas com a alteração da posição de diversas nuvens subvertendo a dimensão espacial, onde alto e baixo, esquerda e direita, se misturam indiferenciadamente. Esta alteração convoca uma suspensão visual que remete, quer para a descrição do fenómeno religioso, quer para uma dimensão transcendental, onde o que estamos a ver não é totalmente compreendido. Deste modo, o autor promove uma dupla relação com o transcendental e o sublime: a primeira é a descrição do evento, seguindo sobretudo a caracterização de Burke, onde o deleite corresponde 'a um mar revolto depois da tempestade'; o segundo elemento é a promoção de uma intensa experiência ao espectador, recorrendo à manipulação da percepção, induzindo dúvida, incerteza e por fim, propondo à contemplação. Em concreto, permite-nos inferir que o autor recorre a processos de constrangimento assentes na manipulação digital da imagem, para potenciar um relato e um evento empírico associado ao transcendente.
4. Devolver a experiência
Como nos diz David Bowie, na música Space Oddity, "Ground Control to Major Tom — Your circuit's dead — There's something wrong" a que Major Tom responde "This is Major Tom to Ground Control — I'm stepping through the door — And I'm floating in a most peculiar way — And the stars look very different today () — And there's nothing I can do". Bowie referia-se a Major Tom, que estaria numa nave espacial à deriva no espaço, e no modo como a circunstância que o levaria à morte, se reverteu num processo contemplativo da paisagem.
Como espectador, Maselli, rendeu-se à circunstância do espaço para onde se deslocou. Como emissor, o autor, promove uma outra experiência através das suas exposições e das suas imagens (Figura 4).
Andar à deriva no espaço é uma analogia possível para descrever a experiência perante as paisagens que o artista constrói. Nada parece estar solidamente colocado na cena. Nenhuma montanha, árvore ou nuvem, parece estar concretamente ali, e simultaneamente, tudo parece imóvel, intocado, intemporal. Assim, como Major Tom diz "And there's nothing I can do", resta-nos contemplar. Maselli manipula a paisagem, mas também o espectador, induzindo o inesperado, o incompreendido, o instável, e incita o espectador à contemplação e ao deleite. Maselli reverte o concreto em fluido, o imanente em transcendente.
Conclusão
A obra de Maselli desenvolve-se, em síntese, nas etapas: a imersão no espaço previamente selecionado; a reconstrução das imagens; a relação com o espectador. Percebe-se como a circunstância da imersão na paisagem natural é essencial para a recolha de dados visuais, mas sobretudo empíricos, que recorrem à informação previamente selecionada, e aquela que é experienciada in loco.
Esta informação é depois retomada na reconstrução das imagens, organizando paisagens naturais em redor da ideia de estranho. O estranho é o processo de colocação de forma coligada de elementos aparentemente similares, mas espacial e temporalmente distintos. O estranho é identificado pela sensação de instabilidade e incoerência resultante da tentativa de identificar o espaço e o momento em que as fotos foram registadas. A paisagem assume-se então como uma impossibilidade. Nesse sentido, a imagem remete para a experiência sublime, aludindo sobretudo à definição de Burke de um estado de incompreensão sucedido por um estado de deleite. Contudo, as imagens de Maselli não são apenas descrições dos eventos empíricos associados ao transcendente. São propostas para a promoção do mesmo fenómeno que associamos à experiência transcendental, evidenciado pelo modo como a natureza e o espectador são manipulados através de processos de constrangimento.
Assim, o estranho assume-se como uma ferramenta formal e conceptual para a elaboração de um percurso para a promoção de uma experiência no universo do transcendental, ficando claro que Maselli não só o identifica, como o utiliza metodologicamente para convocar o transcendente e, em particular, o Sublime.
Referências
Abad Vidal, Julio Cesar (2015) Fernando Maselli, Indagaciones acerca de lo sublime. https://juliocesarabadvidal.wordpress.com/2015/06/30/fernando-maselli-indagaciones-acerca-de-lo-sublime/ [ Links ]
Batchen, Geoffrey (2005) Landscapes without memory — Photografs by Joan Fontcuberta. Aperture. [ Links ]
Burke, Edmund (2013) Uma Investigação filosófica acerca da origem das nossas ideias sobre o sublime e o belo, Trad. Alexandra Abranches, Jaime Costa e Pedro Martins. Lisboa: Edições 70. [ Links ]
Loureiro, Domingos (2016) Sublime e Constrangimento, Tese Doutoramento. Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto. [ Links ]
Morley, Simon (ed.)(2010) The Sublime, Whitechapel Gallery & MIT Press, Londres. [ Links ]
Maselli, Fernando, (s/d) Statment. In Fernando Maselli [sítio] http://fernandomaselli.com/statement/ [ Links ]
Najjar, Michael (2008-2010) High Altitude. http://www.michaelnajjar.com/artworks/high-altitude [ Links ]
Valcarlos, Ignacio Miguéliz (2017) Infinito Artificial. [Texto da exposição] Museu Universidad de Navarra. [ Links ]
Pegg, Nicholas (2000) The Complete David Bowie, London: Reynolds & Hearn. [ Links ]
Artigo completo submetido a 11 de janeiro de 2019 e aprovado a 21 janeiro de 2019
Correio eletrónico: dloureiro@fba.up.pt (Domingos Loureiro)