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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.10 no.27 Lisboa set. 2019  Epub 30-Set-2019

 

Artigos originais

A cosmicidade reflexiva em Snow Dust de Rui Calçada Bastos: explorações interativas no "Além-Céu"

The reflexive cosmicity in Snow Dust by Rui Calçada Bastos: interactive explorations in "Sky-Beyond"

Anderson dos Santos Paiva1  3  *

Mónica Sofia Santos Mendes2  3  **

1Universidade Federal de Roraima, Centro de Comunicação, Letras e Artes e. Av. Capitão Ene Garcez, 2413, Bloco I, Campus Paricarana, Bairro Aeroporto, Boa Vista - Roraima, Brasil.

2Universidade de Lisboa, Faculdade de Belas-Artes. Largo da Academia Nacional de Belas-Artes, 1249-058 Lisboa, Portugal.

3LARSYS /ITI (Interactive Technologies Institute), Portugal


Resumo:

Neste artigo analisamos a série fotográfica Snow Dust (2013) de Rui Calçada Bastos (n. Lisboa, 1971) produzida no lago Mälaren, na cidade de Estolcomo,Suécia, através de uma abordagem das subjetividades inerente às imagens que denominamos de "cosmicidade reflexiva" por meio das contribuições de Gaston Bachelard e Italo Calvino. Apresentamos a instalação interativa SkyLoopSpace como exercício dessa reflexão e concluímos demonstrando a importância de se pensar as operações da fabulação e imaginário na prática artística.

Palavras chave: fotografia; cosmicidade; instalação interativa

Abstract:

In this paper, we analyze the Snow Dust series (2013) by Rui Calçada Bastos (b. Lisbon, 1971), produced at Lake Mälaren, in the city of Stockholm, Sweden, through an approach of the subjectivities inherent to the images we name "reflexive cosmicity" through the contributions of Gaston Bachelard and Italo Calvino. We present the interactive installation SkyLoopSpace as an exercise from this reflection and conclude by demonstrating the relevance of thinking about the operations of fable and imaginary in artistic practice.

Keywords: photography; cosmicity; interactive installation

Introdução

Rui Calçada Bastos (artista visual, n. Lisboa, 1971) iniciou os estudos artísticos em pintura no Porto e em Lisboa e desde então tem trabalhado com várias linguagens como fotografia, vídeo, desenhos e esculturas (Bastos, 2015) por meio de percursos ficcionais sobre as paisagens urbanas praticando um certo nomadismo poético envolto em intensidade e auto-referencialidade. Suas imagens tratam da introspecção que se revela em seu olhar sobre a cidade carregada de gestualidade e marcada por pequenas "recolhas" de elementos quase imperceptíveis, fragmentos que parecem compor uma narrativa como se cada imagem fosse parte de uma trama do deslocamento pela interioridade espalhada pelas várias dimensões de tempo e espaço que criam um lugar de encontro e identificação com o outro. No seu trabalho se percebe uma prática exploratória dos reflexos escondidos na paisagem, de elementos que escapam a percepção apressada devido os fluxos e automação das pessoas condicionadas por uma vida atravessada pela velocidade.

Sua série fotográfica, Snow Dust (2013), nos evoca questões que se traduzem na interconexão, no plano da imagem, com a noção de paisagem celeste na sua dimensão de cosmicidade, ou, conforme definido no âmbito da investigação, um "Além-Céu". Esse enquadramento poético ao qual recorremos não busca estabelecer qualquer categorização que possa ser tomada por um tipo qualquer de "iconografia cósmica", mas se refere ao tratamento dessa série fotográfica não tanto pelos aspectos formais mais facilmente percebidos, mas sim pelas subjetividades inerentes que a tornam acontecimento e nos faz perceber a sutileza da paisagem revelada no encontro de micro e macrocosmos.

Essa percepção que temos a partir da nossa investigação em arte contemporânea é um alargamento que vai ao encontro destas imagens e, portanto, é interpretação enquanto matéria para nosso processo. Sendo assim, por micro-cosmos entenda-se a nossa própria subjetividade somada ao macrocosmos que Snow Dust nos revela mediante essa conexão dialógica ou "cosmicidade refletida" que aqui desenvolvemos a partir das contribuições de Gaston Bachelard e Italo Calvino, num trânsito entre fabulação e imaginário que envolvem as ressonâncias destas imagens com as paisagens celestes em suas múltiplas dimensões.

1. Snow Dust, da cidade ao cosmos

A série Snow Dust é formada por seis fotografias impressas em jato de tinta e montadas em papel alumínio na dimensão de 66 x 100 cm que foram produzidas no lago Mälaren, o terceiro maior da cidade de Estocolmo (Suécia). O que Calçada Bastos capturou com essas imagens não foi apenas um rastro humano sobre a água congelada nesta paisagem de inverno mas a cosmicidade implícita na força gestual do movimento de lançar pedras sobre a camada de gelo (Figura 1). Na tradução do artista - Snow Dust - o que seria simplicidade ganha autenticidade com um macro-efeito perceptível no desprendimento das pequenas partículas na superfície reflexiva. Estas acabam remetendo a cometas e astros como uma espécie de composição espacial ou mesmo celeste pela coloração azul que parece fazer menção também a atmosfera.

Fonte: ruicalcadabastos.com

Figura 1 Snow Dust (2013) Rui Calçada Bastos. 

João Silvério, escritor e curador, apresentou algumas questões neste sentido no texto "A luz é uma coreografia involuntária" ao fazer sua leitura sobre estas peças do artista. Para ele, o que consideramos cosmicidade seria devido à dança da luz e a projeção dos resíduos de neve que remeteriam a um tipo de "imaterialidade visual muito próxima das imagens cósmicas que conhecemos do universo da ciência" (Silvério, 2014). Contudo, a imaterialidade apontada no plano desta sutil relação aproxima-se, mas não atinge exatamente o plano reflexivo que pretendemos alargar e que Silvério relaciona ao "nomadismo urbano" do artista e o seu certo desinteresse em dar pistas da cidade localizável ou reconhecível.

Snow Dust se revela para nós da relação cidade-cosmos para relação micro-macro. Em se tratando do primeiro ponto ela opera transformações pela capacidade de se diluir as noções de lugar e espaço de modo que revelam o gelo como um ecrã que aponta para exterioridade. A cidade, representada pelo lago (referência), se faz em subjetividade, enquanto coisa terrena, mas também como um espelhamento por ser reflexo do céu (potência), portanto, uma passagem entre dois planos. Mas, apesar de serem percepcionadas como paisagens celestes, tais imagens não acionam de imediato o céu reconhecível da atmosfera terrestre e sim um "Além-Céu", mediante as aproximações simbólicas que evocam e acionam daquilo que entendemos habitar o Cosmos. São partículas refletidas por associação e imaginadas de modo a parecerem cometas, meteoros, planetas e satélites naturais em seu campo de gravidade ou circularidade (Figura 2).

Fonte: ruicalcadabastos.com

Figura 2 Snow Dust (2013) Rui Calçada Bastos. 

Tais imagens deambulam para outro lugar num plano de subjetividade latente e do qual só percebemos a parte mais visível do seu fator cósmico. Para ir além é necessário adentrar um pouco mais o plano interior da cosmicidade.

2. Cosmicidade refletida, do micro ao macro

O segundo plano em Snow Dust, que consideramos no âmbito da interioridade, se produz na ressonância entre micro e macrocosmos, que tratamos aqui por "cosmicidade reflexiva". Essa interpretação tem origem em Bachelard, mais precisamente na sua obra "Poética do Espaço" (1978), onde trata do medo antropocósmico que temos ao confrontar a percepção do mundo construído com o mundo sonhado e oferece um alento na cosmicidade que correlacionaria microcosmos e macrocosmos, juntando referências da memória e imaginação no desenvolvimento de uma poética que cria mundos para serem compartilhados.

Entretanto, o autor considera que o espaço compreendido pela imaginação é vivido com todas suas parcialidades em um jogo não equilibrado no plano das imagens entre o que é interior e exterior, sem possibilidade de ideias definitivas, pois a imaginação seria incessante no fluxo que a carrega sempre com novas imagens (Bachelard, 1978:196).

As imagens, contudo, não devem ser entendidas apenas como de ordem pessoal já que a imaginação parte de uma interioridade que se faz exterior pela cosmicidade. Há sempre uma renovação das nossas referências com novas imagens. É desse modo que a fabulação permite se fazer presente para além do imaginário pois se estabelece no compartilhamento dos "universos simbólicos".

Neste ponto acreditamos que Italo Calvino apresenta uma contribuição. Em seu livro-ensaio "Seis propostas para o próximo milênio" (1985), ele trata como primeira proposta exatamente a oposição leveza-peso. Para Calvino, haveria um ponto de complementação da ciência com a leveza na criação desses universos de fábulas que não se confundiriam com sonhos, mas com algo maior, compartilhado, com outra forma de existência. Suas imagens de leveza deveriam perdurar com uma gravidade sem peso, habitar outros mundos e instaurar novas possibilidades pela mudança de ótica e lógica para uma visão ampliada.

Em Calvino, a prática fundamental é a subtração de peso, seja das figuras humanas, corpos celestes ou cidades. Este entendimento da leveza tem forte relação principalmente com a terceira das suas acepções como uma imagem que assume um "valor emblemático" (Calvino, 1999:30).

Em nossa interpretação, Snow Dust está neste domínio e é capaz de acionar a leveza num plano de cosmicidade reflexiva apresentada pelo lago como ecrã e pelo imaginário e fabulação das correlações e ressonâncias entre micro e macrocosmos com esse céu para além da atmosfera. São estas relações que buscamos na investigação sobre as paisagens celestes ao explorar estes universos e subjetividades na criação de instalações interativas.

Estas relações passaram a compor algumas das nossas práticas e desembocaram num trabalho coletivo que toma por referência estas fotografias de Rui Calçada Bastos.

3. SkyLoopSpace, da nuvem à nebulosa

SkyLoopSpace é uma peça criada no próprio âmbito da cosmicidade. Nós a desenvolvemos em um processo de co-criação junto com outros autores em uma residência artística (Figura 3) realizada no ano de 2017. Todo o processo buscou tratar das relações que analisamos em Snow Dust, junto com as referências individuais de cada artista envolvido. Reunimos assim, em um mesmo universo visual, toda uma série de imagens marcadas pela relação micro-macro, do imaginário à fabulação.

Fonte: própria

Figura 3 SkyLoopSpace - Testes de interação na residência (2017) Autoria ocultada para submissão do artigo. 

A peça consiste em uma instalação interativa com captura de movimentos através de visão por computador (utilizando o kinect) e projeção no topo de imagens reconhecíveis e produzidas pelos participantes em torno dos vários níveis de céu, desde as nuvens baixas até os astros do Cosmos, sugerindo uma viagem da nuvem à nebulosa. Sobre essa projeção os interatores podem acionar e manipular os elementos visuais que vão surgindo a partir da captura das mãos pelo sensor de movimento, auxiliado pelo código criado em linguagem C++ com Openframeworks (Figura 4).

Fonte: própria

Figura 4 SkyLoopSpace em exposição (2017) Galeria e autoria ocultadas para submissão do artigo. 

A instalação SkyLoopSpace é, antes de tudo, exercício de cosmicidade. Nós a entendemos como arte em processo para abrigar muitas outras contribuições que venham a surgir de outros artistas e participantes. Como universo em expansão ela está e estará sempre a se fazer, sintetizando os microcosmos envolvidos numa fabulação enquanto viagem sem ponto definido de chegada.

A sua condição de ser é se fazer em conjunto, no plano do coletivo, reunindo mais e mais imagens e referências, sejam implícitas ou explícitas, como aqui situamos Snow Dust pelo entre-planos no reflexo da paisagem celeste em sua dimensão "Além-Céu" que sugere sua própria dimensão cósmica não somente no reconhecível ou factual, mas no espelhamento do macro pelo reflexo sutil de um micro elemento ou percepção.

Conclusão

Pensarmos essas questões acionadas em Snow Dust é, na reflexão que aqui expomos, criar formas e soluções artísticas para interagir no plano do imaginário e da fabulação que proporcionem a sensação de imersão e de complementaridade ou reconhecimento. Nesta "cosmicidade reflexiva" consideramos que não é o óbvio que conta. Assim como Rui Calçada Bastos deambula pelas cidades em busca de traços quase imperceptíveis, nós buscamos no imaginário estes elementos que dão uma noção do que são os universos das imagens cósmicas interiores, numa cosmicidade reveladora de subjetividades.

O reflexivo não é projeção em SkyLoopSpace ou o gelo nas imagens em Snow Dust, mas sim o entre-planos, um espaço aberto para passagem da interioridade à exterioridade e, por fim, a revelação do que nos aproxima e sensibiliza, percebendo a imagem fotográfica com os olhos ou manipulando imagens em uma instalação com as mãos. Seja pela cosmicidade em Bachelard ou pela leveza em Calvino, essa viagem é feita a todo instante e é, nestes universos distintos, um contínuo exercício de percepção.

Referências

Bachelard, Gaston (1978) Os Pensadores: A Poética do espaço. Tradução Antonio da Costa Leal e Lídia do Valle Santos Leal. São Paulo: Abril. [ Links ]

Bastos, Rui Calçada (2015) Site do autor. [Consult. 2018-12-30] Disponível em URL: Disponível em URL: https://ruicalcadabastos.comLinks ]

Calvino, Italo (1999) Seis propostas para o próximo milênio. São Paulo: Companhia das Letras. ISBN: 978-972-23-1351-3 [ Links ]

Silvério, João (2014) A luz é uma coreografia involuntária. [Consult. 2018-12-20] Disponível em URL: Disponível em URL: http://joaosilverio.com/pt/Text?ID=1Links ]

Recebido: 03 de Janeiro de 2019; Aceito: 21 de Janeiro de 2019

Endereço para correspondência Correio eletrónico: anderson.paiva@ufrr.br (Anderson dos Santos Paiva)

*

Brasil, professor e artista visual.

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Portugal, professora e artista digital.

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