Introdução
Artistas contemporâneos têm evidenciado o entendimento de que o fotográfico é um meio expandido ou expansível desde a origem, propondo diálogos, absorções e miscigenações entre linguagens e campos artísticos. Neste sentido, nos debruçamos sobre a obra de Clóvis Dariano (Porto Alegre, 1950), buscando imagens que tenham relação com a dança. O que se procura encontrar é o alargamento da noção do tempo na produção do artista, além de relações com outras linguagens. Dariano iniciou nas artes na década de 1960, a princípio desenvolvendo-se no desenho e na pintura, e posteriormente na fotografia. O artista visual estudou pintura com Paulo Porcella (1965-1967) e gravura em metal com Iberê Camargo (1973), tem formação em Propaganda (1969) e Bacharelado em Artes Visuais no Instituto de Artes da UFRGS (1974). Nos anos 70 fez parte do coletivo "Nervo Óptico", que abriu espaço para a discussão de novas poéticas visuais e a produção de obras contemporâneas com Carlos Asp, Carlos Pasquetti, Mara Álvares, Telmo Lanes e Vera Chaves Barcellos. Desde então, dirige seu próprio estúdio fotográfico, atuando como fotógrafo publicitário, mas mantendo sempre seu trabalho autoral. Na atividade de professor, ministra oficinas e cursos de extensão universitária.
Indo ao encontro do tema do evento "Os artistas conhecem, admiram e comentam a obra de outros artistas - seus colegas de trabalho, próximos ou distantes. Existem entre eles afinidades que se desejam dar a ver", procurou-se abordar sobre aspectos de interesse que se verificam na pesquisa da autora e se encontram exemplificados nas obras do artista.
Assim, em um mergulho na produção artística de Clóvis Dariano, resultante de mais de quatro décadas de carreira, selecionamos alguns de seus trabalhos nunca antes expostos que trazem a representação da dança através da fotografia para refletir sobre seu processo criativo.
As reflexões surgem a partir de imagens fotográficas das séries Sugestão de movimentos para corpos (1975), Retratos Improváveis (2015-2016) e Do Sagrado ao Profano (2018), além de entrevista realizada com o artista em 2018.
1. A expansão do tempo fotográfico
Além do tempo cronológico que reside na imagem fotográfica, outros tempos se desencadeiam e se emaranham. Isto compreende o período pré, durante e pós ato fotográfico. Os preparativos antes da tomada da cena, a duração da captura, até possíveis intervenções posteriores sobre as imagens, incorporam em si meandros de temporalidade.
Andreas Müller-Pohle (1985) formulou estratégicas fotográficas contemporâneas que propõem algumas possibilidades para a produção de imagens em três níveis de intervenção do artista:
- o artista e o objeto (pré-produção)
- o artista e o aparelho (ato fotográfico)
- o artista e a imagem (pós-produção)
Analisando as obras de Dariano, com base nestas estratégicas, identifica-se procedimentos e técnicas adotadas pelo artista nos três níveis, evidenciando a expansão do tempo do seu fazer fotográfico, que não se restringe ao momento da captura da cena, mas compreende também os períodos anterior e posterior ao ato fotográfico.
Em todas as imagens analisadas, Dariano interage com o objeto, as modelos fotografadas, utilizando o mise-en-scène para construir o assunto da fotografia no mundo visível e então registrá-lo. François Soulages (2010) reforça que o fotógrafo não tira fotos, ele as faz, evidentemente a partir dos fenômenos visíveis, sem com isso procurar ter deles uma restrição realista, mas, sobretudo, a partir das imagens psíquicas que ele inventa em si mesmo. De acordo com o autor, na teatralização da imagem um fotógrafo pode ser tentado por duas direções: a da publicidade, que constitui um instante eternizado de uma peça de teatro engajada em proveito de uma produção e de um consumo determinados, e a da obra de arte, em que o objeto fotográfico é desviado de seu sentido mundano para adquirir um sentido fotográfico. A utilização da direção de cena na produção artística de Dariano talvez seja uma natural influência de sua experiência profissional na fotografia publicitária.
Na série Do Sagrado ao Profano, o artista interage com o aparelho, utilizando a câmera contrariamente a sua função preestabelecida. Com o uso de variações de velocidade do obturador na captura das cenas, com a câmera sobre um tripé, gera rastros de dançarinas em movimento, utilizando a imagem trêmula como estratégia de representação.
A intervenção do artista e a imagem se verifica na série Sugestão de movimentos para corpos (Figura 1 e Figura 2), onde interfere no suporte da fotografia de forma manual, e nas séries Retratos Improváveis (Figura 3 e Figura 4) e Do Sagrado ao Profano (Figura 5 e Figura 6) com técnicas de manipulação digital. O tempo do fazer fotográfico é então alargado pela interação do artista com a imagem já captada, em trabalho manual ou digital de pós-produção.
Em entrevista a autora (Dariano, 2018), o artista manifesta ter vontade de voltar a trabalhar sobre antigas imagens captadas, revelando que cada vez menos fotografa, e cada vez mais seu tempo de intervenção sobre as fotografias já feitas se amplia, gerando novos trabalhos pelo desdobramento de imagens.
2. A representação do tempo
A partir das ideias de Ronaldo Entler (2007) sobre as formas de representação do tempo na imagem fotográfica, procurou-se analisar como Dariano trabalha essas questões em seu processo de criação. Refletindo sobre o corte temporal efetuado na ação da fotografia se percebe que este é incapaz de anular por completo a sugestão do tempo e movimento nas imagens fotográficas. Com esse pensamento, Entler apresenta três possibilidades de representação do tempo:
- o tempo inscrito, com a inscrição do tempo no espaço sob a forma de um borrão conforme o objeto se desloca no espaço selecionado;
- tempo denegado, com a fotografia instantânea que de modo abrupto e forçoso retira o tempo da cena e prolonga a imagem do movimento congelado diante do nosso olhar, sem porém nos deixar de informar sua ação e poder esconder o movimento totalmente;
- o tempo decomposto, com uma sucessão de instantes no tempo compondo uma única imagem ou uma série de imagens que se relacionam, podendo incorporar uma narrativa.
Analisando as obras de Dariano, encontramos estas três formas de representação do tempo nas suas imagens. Em Sugestão de movimentos para corpos (Figura 1 e Figura 2) o artista utiliza a linguagem do flagrante, e em Retratos Improváveis (Figura 3 e Figura 4) faz uso da pose para simular a interrupção do movimento da dança, expressando em sua fotografia o corte temporal, o tempo denegado. Já o movimento das dançarinas em Do Sagrado ao Profano (Figura 5 e Figura 6) são transformados em rastros, em tempo inscrito no espaço, na superfície da fotografia. A dança é inscrita na imagem conforme as dançarinas se deslocam no espaço, com seus corpos em movimento, determinando as pinceladas coloridas no quadro fotográfico. A criação destas imagens partiu de uma cena principal e várias outras que se unem a ela, através da montagem com a utilização de programa de computador. Assim, o tempo nestas fotografias apresenta-se também decomposto nos tempos de cada fragmento de imagem que as compõem.
Temos aprendido a pensar a criação fotográfica como um processo que se constrói em etapas, e que envolve uma série de escolhas, os equipamentos e materiais, os enquadramentos e instantes e, finalmente, as imagens que serão editadas, ampliadas e exibidas ao público. Desta forma, ganha força a noção de ensaio, sempre presente nos trabalhos de Dariano, podendo-se entender sua fotografia literalmente como a revelação de um processo de pesquisa. O resultado de seu trabalho são séries fotográficas que explicitam um percurso, portanto, o tempo de duração de um olhar.
3. A miscigenação na fotografia
A arte contemporânea representa um questionamento aos paradigmas modernos, norteados pela originalidade, novidade, unicidade, pureza dos meios e especificidade de cada modalidade artística. Obras contaminadas pela justaposição de elementos díspares, e processos marcados pela transitoriedade, migração de técnicas, matérias e suportes são admitidas. Segundo Icléia Cattani (2007), na contemporaneidade, começaram a surgir de forma progressiva linguagens e formas abandonadas de modernidade, acompanhadas de misturas de elementos que abrem a mestiçagem. Cattani esclarece ainda que o conceito de mestiçagem, deslocado de outras áreas do saber para o campo da arte contemporânea, resgata seu sentido original de misturas de elementos distintos que não perdem suas especificidades. Esses diversos elementos constitutivos que se misturam, presentes na obra de forma simultânea, não se anulam e nem se fundem, permanecendo presentes, numa relação tensa, ambivalente e contraditória. A autora ressalta que mestiçagem não é a fusão, a coesão, a osmose, mas a confrontação, o diálogo. E esses diálogos entre diferentes linguagens artísticas se verificam nas imagens de Dariano, desde os anos 70 até seus trabalhos mais atuais, resultando em fotografias miscigenadas com o desenho, a pintura, o teatro e a dança.
Nas fotografias da série Sugestão de movimentos para corpos (Figura 1 e Figura 2), as fotografias preto e branco, registradas em tecnologia analógica, se misturam aos traços de nanquim de Dariano. A interferência do artista sobre as imagens sugere o movimento da dança interrompido pelo instantâneo, evidenciando a miscigenação entre fotografia e desenho.
Já nas imagens da série Retratos Improváveis (Figura 3 e Figura 4) é a única modelo das imagens selecionadas que não é dançarina. É o figurino utilizado na teatralização da realidade, com a saia de tule e a malha vestidos pela modelo, que remete à imagem da bailarina clássica. Os pés descalços, porém, dão um ar contemporâneo a imagem. A máscara nos olhos e a forma posada da modelo, aliadas à luz dramática da cena, evidenciam uma forte relação da dança com o palco, o teatro. Dariano ainda provoca uma associação com a pintura, quando, computacionalmente, acentua as cores e o contraste da imagem (Figura 3), ou a desfoca, alterando e suavizando o tom da cor (Figura 4).
Na série Do Sagrado ao Profano (Figura 5 e Figura 6), a relação com a pintura inicia já na sua concepção. Segundo Dariano, há uma influência neste trabalho da obra renascentista Jardins das Delicias Terrenas (1503-1515) de Hieronymus Bosch (1450-1516). O caráter pictório se acentua pelos rastros na captura das imagens e pelo fundo da cena, um tecido pintados à mão pelo próprio artista que também sofre alterações na pós-produção. Com a montagem das fotografias, as oito dançarinas fotografadas se multiplicam e as cenas finais nunca existiram de fato, são obras da imaginação do artista que cria pinturas digitais a partir da junção de fragmentos de fotografias com manipulação computacional. Assim, o artista reforça a visão de Arlindo Machado, que aponta como a digitalização e a massificação da manipulação ajudou a derrubar alguns tabus da fotografia:
A crença mais ou menos generalizada de que a câmera não mente, de que a fotografia é, antes de qualquer coisa, o resultado imaculado de um registro dos raios de luz refletidos pelo mundo […] está fadado a desaparecer rapidamente (Machado, 2005:312).
Esses cruzamentos na arte contemporânea que caracterizam a mestiçagem, como os que observamos no processo artístico de Dariano, são tensos, pois acolhem múltiplos sentidos a partir de um princípio de agregação. A mestiçagem é da ordem do heterogêneo, acolhendo diferentes elementos em permanente diversidade. Segundo o artista, seu trabalho todo "está baseado na relação com outra linguagem" (Dariano, 2018). A fotografia de Dariano é, assim, um retrato de sua experiência nas várias áreas artísticas em que se envolveu ao longo de sua carreira.
Conclusão
Conclui-se que além do tempo cronológico que reside na imagem fotográfica, outros tempos se desencadeiam, compreendendo também os períodos de pré e pós-produção. A teatralização da realidade, a duração da captura, o momento da emulsão trazer à superfície os sujeitos fotografados, até as possíveis intervenções manuais sobre as imagens ou as transformações através da manipulação digital, que se verificam nas obras de Clóvis Dariano, expandem o tempo do fazer fotográfico. Além disso, as fotografias analisadas do artista, ao criarem reverberações com a pintura, o desenho e o teatro, na representação da dança, alargam os limites da prática fotográfica, produzindo mestiçagens destas linguagens.