Introdução
Para o teórico Moacir dos Anjos, associar a persistência das narrativas à arte latino-americana, a partir dos anos de 1990, é um meio usado para atestar sua identidade, diferenciá-la tanto da matriz europeia, quando da produção dos centros hegemônicos, e torná-la "denotativa de algo que seria peculiar somente ao universo simbólico dessa região" (2017:15). Trata-se, assim, de um processo de resistência notado na arte produzida por artistas do Nordeste brasileiro já nos anos de 1920, visando distingui-la da produção modernista do eixo Rio/São Paulo, e nas últimas décadas, para afirmar sua assimetria com as novidades que transitam nos centros hegemônicos do circuito nacional e internacional.
É nessa esteira que parece transitar a obra pictórica de João Câmara Filho (1944), radicado na mesma cidade de Recife (Pernambuco), onde vive também aquele teórico. Desde o final da década de 1960, quando iniciou sua trajetória criativa sua pintura tem sido entendida como portadora de viés regionalista, narrativo ou histórico. Sem refutar tais peculiaridades, o artista atribui seu interesse inicial pela história recente do país, à tentativa de compreender a "história de sua infância política", o que não significa fazer uma narrativa pictórica da saga histórica, mas "contar histórias desarrumando os episódios", e construir uma nova ideia (Câmara, 1987 e 2008).
Com grande virtuosismo técnico, o artista reencena os episódios centrando força nos retratos de alguns dos protagonistas da histórica, enquanto estratégia de convencimento capaz de envolver o espectador afetiva e curiosamente na trama ficcional por ele reinventada, o que parece condizente com o que observa Gil (1997:165-7): "o rosto oferece esse lugar de que necessita todo o sentido, de tal modo que se pode dizer que não há sentido sem rosto, porque há um rosto do sentido. O rosto é uma superfície particular de entrada do exterior para a interior", pois, "produz signos e subjetividade".
Confirmando seu compromisso com a imagem, para recriar a narrativa histórica recente ou pretérita, Câmara lança mão também de inusitados atributos simbólicos, engendrando cenas e cenários pictóricos que se situam na confluência entre verdade e invenção, realidade e imaginação, o que torna o fato histórico mero artifício para desencadear um processo de ficção, pelo viés da crítica e da paródia.
Politicamente engajado e dotado de forte substrato crítico, Câmara inicia a carreira artística muito cedo, depois de realizar um curso livre de artes plásticas na Escola de Belas Artes, na Universidade Federal de Pernambuco. Passou a produzir, desde então, imagens ambivalentes, que não se resumem àquilo que dão a ver em sua estrutura icônica, mas apelam à reflexão do espectador, convocando-o a desvelar sua subjetividade ou opacidade. Leitor obsessivo e contumaz, ainda na adolescência leu inúmeras publicações sobre arte, os clássicos da literatura mundial, da filosofia e da psicanálise, tornando-se um intelectual de primeira grandeza, "o que o aproximou da geração mais velha de escritores e o distanciou dos meninos de sua idade que preferiam jogar futebol". Esse substrato intelectual se refletiu na assinatura diária de coluna sobre arte, aos 17 anos de idade, no jornal Última Hora. Mas temendo não sobreviver do trabalho de arte, cursou Psicologia, sem chegar a exercer a profissão, preferindo dedicar-se inteiramente à atividade artística. Isso talvez ajude a entender a rticulação simbólica peculiar a suas obras, sobre grandes suportes.
Embora bem informado e sintonizado com os recursos tecnológicos de ponta, mantém-se deliberadamente na contramão da mudança das gramáticas estéticas, dedicando-se a uma linguagem de caráter anacrônico, calcada numa morfologia de viés realista. Recorre à metamorfose e à incongruência para se referir à instabilidade, à ambiguidade ou à incoerência que se estabelece nos subterrâneos da vida político-social, como atestam as obras recentes com as quais dialogaremos.
1. A recorrência à tecnologia digital e a reinterpretação da história recente
Embora se defina como "trabalhador braçal" e "operário da pintura", seja pelo caráter braçal de seu processo, seja por permanecer horas a fio no interior do ateliê pesquisando e articulando o minucioso imaginário de suas telas, mais recentemente iria render-se às ferramentas digitais, chamando-as de "aparatos oníricos", que lhe abriram a possibilidade de entrar em suas "janelas exploratórias" e colocar-se na posição de "voyeur":
Quando me enfiei nesse plasma cambiante da pintura digital, logo descobri que não se tratava só da prática de reproduzir pinturas, mas de adotar as ferramentas intrínsecas de emulação de tintas e os sistemas de edição que o computador disponibiliza para fazer novas obras (…). Havia outras questões provocativas (…) implementadas por "ferramentas virtuais" (Câmara, 2018:10).
Por sua rapidez e instantaneidade o computador tornou-se novo aliado do artista, que permanece horas a fio no ateliê a produzir imagens pautadas no contumaz viés referencial e paradoxal, crítico ou satírico, como se constata em Comédia Parisiense (2017), para não citar outras. Esta obra foi inspirada em um acontecimento real da vida política brasileira: um jantar realizado em 14 de setembro de 2009, numa luxuosa mansão localizada na Avenida Champs-Élysées, em Paris, com a participação de verdadeira quadrilha de corruptos, liderada pelo ex-governador Sérgio Cabral, secretários de estado e empresários do Rio de Janeiro. Os pratos à base de lagosta e bacalhau foram regados com os melhores vinhos portugueses, champanhe francês e whisky. Após a comilança, os cínicos convivas dançaram empolgados, com os guardanapos amarrados à cabeça, ao som da banda irlandesa U2. Segundo investigações, a farra de um milhão e meio de reais foi custeada com dinheiro desviado dos cofres público. Foi descoberta apenas três anos depois, quando a imprensa publicou algumas fotografias capturadas durante o jantar, sem que se soubesse quem foi o fotógrafo, nem se todas as imagens foram realmente divulgadas. O autor da publicação foi o inimigo político de Cabral - e também ex-governador carioca -, Anthony Garotinho, o que contribuiu para o inquérito e a prisão do bando.
Apropriando-se de uma dessas fotografias, João Câmara não se limitou a reproduzir com fidedignidade a efigie dos homens públicos, no momento de descontração, mas insere na cena de fim de festa, objetos e adereços não condizentes com a imagem que deu origem à pintura: uma lagosta, garrafas, copos, canecas, taças tombados sobre a mesa, um vaso, cujas flores são pincéis, uma paleta de pintura, uma licoreira e recibos rasurados (ou seriam os cardápios do jantar?) (Figura 1). Através de um jogo sagaz, que mistura verdade e invenção, o artista nos adverte tratar-se de invenção poética, não de simulacro. Insere ainda na cena pictórica outros atributos aparentemente incongruentes: a reprodução esmaecida, em sépia, da pintura de Jacques Louis David, O Rapto das Sabinas (1799), posicionada na parede acima das cabeças dos participantes do jantar; e uma vista do Rio de Janeiro, pintada por Auguste-Marie Taunay, Morro de Santo Antônio (1817), posicionada sobre um cavalete, no lado oposto da cena. A função dessas pinturas é desmontar o tempo cronológico, reafirmando que a história da arte de diferentes tempos registra outros casos de roubo e de contradições do poder. Diante do cavalete aparece uma cadeira de estofamento vermelho tombada no chão, com o encosto direcionado para uma papeleira, sobre a qual há uma pilha de livros e na parte frontal do móvel vê-se uma gaveta semiaberta, numa referência à memória.
A Comédia Parisiense foi dividida pelo autor exatamente ao meio, por uma escada de madeira, no alto da qual se equilibra uma figura masculina, cujo traje popular do século XVIII. à esquerda, dominam a cena dois personagens fictícios, que parecem integrantes de um teatro burlesco: uma mulher apoiada numa bengala, enquanto o homem empunha uma faca.
Atrás desses figurantes projeta-se instigante sombra lembrando uma guilhotina, configuração essa reforçada por uma pesada trava de madeira e uma corda, conectadas ao teto desse ambiente cenográfico. Tal referência faz com que a figura sobre a escada pareça a figura de um carrasco, numa referência simbólica ao dito popular de que "a justiça tarda, mas não falha", considerando que os homens públicos envolvidos no escândalo foram denunciados e presos, sete anos depois da realização do referido jantar.
O artista parece advertir o espectador, que não se trata da ilustração de um fato recente envolvendo protagonistas da história do país, pois o realismo dos retratos dos citados homens públicos é um viés para se referir ao oportunismo e à ganância humana. Para isso remexe as gavetas da memória, interpelando a história e a própria arte por meio de um enredo teatral, que nos assegura que a história se repete, embora protagonizada por diferentes atores.
2. O viés onírico do tríptico Pedro Sonha
A supracitada "Farra dos Guardanapos" ou "O Último Baile do Cabral", trouxe à memória do artista outro episódio da história pregressa do Brasil, que não deixa de ter similaridade com a primeira. Trata-se do "O Baile da Ilha Fiscal" ou "Ultimo Baile do Império", ocorrido no Rio de Janeiro em 09 de novembro de 1889, baile esse precedido de suntuoso jantar oferecido pela família imperial a 550 convidados, nas dependências do castelo da Ilha Fiscal - posto alfandegário, de controle da entrada e saída de mercadorias do porto do Rio de Janeiro -, que culminou com a queda do Império e o exílio de D. Pedro II e família. Esse episódio foi igualmente recodificado por Câmara, pelo viés do onírico ou do imaginário. Abrimos parênteses para pontuar alguns fatos que afetaram a monarquia: a Abolição da Escravatura, em maio de 1888, desagradou a Igreja e os grandes cafeicultores, pela queda da mão de obra, o que gerou reiterada oposição e críticas ao regime imperial. Em todo o Brasil surgiram, então, inúmeras sociedades republicanas, que contaram com o apoio das elites e do Exército, desprestigiado e descontente com os baixos soldos auferidos. Assim, enquanto a família imperial se divertia na Ilha Fiscal, o Exército proclamava a República.
Considerando que D. Pedro II era devotado ao Brasil e benquisto pelo povo, e que ao ser exilado era um homem idoso e com a saúde fragilizada, por ser obrigado a deixar o país que dirigia repentinamente e sem que tivesse sequer tempo de entender os verdadeiros motivos, antes de rumar para a Europa, Câmara aciona a imaginação reinventando a narrativa vigorosa, em um tríptico que lembra o enredo de um filme (Figura 2).
Tenciona o tempo para frente ou para trás, criando situações insólitas, que misturam fantasia e invenção, sonho e ficção, trazendo o Imperador de volta ao Brasil em um pequeno barco de madeira. Na cena da esquerda, D. Pedro é representado por conhecida efígie de longas barbas brancas e trajando um terno preto; aprecia a natureza brasileira, enquanto rema em pé na direção à Ilha Fiscal, a pequena distância do barco. Uma impassível figura masculina, de proporções diminutas lembrando um anão, posiciona-se de costas para o Imperador, na traseira do barco voltada para o Rio de Janeiro. Na cena central do tríptico, o tempo é tencionado para trás, revitalizando momentos da vida de Pedro no Brasil: no primeiro, o jovem sonha posicionado em pé sobre uma cadeira, no convés de um navio; no segundo, possui longas barbas brancas e exibe um relógio de bolso, com os ponteiros paralisados. São separados por uma pequena mesa, tendo atrás dela duas curiosas figuras masculinas: uma de costas para o observador, e outra de frente, um anão ou bufão. Essa última figura parodia o capitão do navio, pelas insígnias da farda e por exibir dois remos em cruz, de proporções maiores que as de seu próprio corpo.
Na primeira imagem citada Pedro ainda não tinha sido coroado, pois segura na mão esquerda uma cartola, e a direita no bolso das calças; na imagem da direita, o Imperador se posiciona ao lado de uma figura feminina de tronco desnudo, trajando elegante saia florida e rodada, o que sugere ser uma cortesã. Referência ao Baile da Ilha Fiscal? No fundo da cena, mas próximo à embarcação que serve de cenário à narrativa, o artista enquadrou a popa de outro navio que desliza sobre o mar azul. Seria essa uma referência à embarcação que transportou a família Imperial para o exílio? Ou trata-se do navio Almirante Cochrane, que trouxe ao Rio de Janeiro os oficiais chilenos que participaram do jantar e do último baile do Império?
Na cena da direita, que completa o tríptico, D. Pedro retorna à Europa, se equilibrando em pé, no mesmo barquinho de madeira que o transportou à Ilha Fiscal. Descalço, traja uma espécie de túnica castanha com capuz, lembrando a figura mítica de S. Francisco de Assis, e leva na mão direita, simbolicamente, o "coração do Brasil". É acompanhado por uma figura masculina, de cócoras, trajando fraque e um cravo na lapela (Referência o Conde d"Eu, genro do Imperador, ou figura apócrifa?). A águia observa sobre um rochedo o retorno do barco.
Considerações finais
Dotado de grande erudição, fértil imaginação e larga experiência visual, e sem negar seu interesse pela tradição e pela narrativa, Câmara refere-se obliquamente, nas obras citadas, a episódios reais e traumáticos da história político-social-brasileira, enredando elementos extraídos de fontes diversas: cultura popular, arte erudita, memória, história da arte, cinema, literatura. Cria com tais referências ou a partir delas uma iconografia impactante, misturando simetria e assimetria, paradoxo e mistério, metáfora e alegoria, objetividade e subjetividade, ironia e crítica. Formaliza jogos visuais, enquanto estratégias de teatralização, reinvenção e paródia às mazelas político-sociais. Para isso, recorre ao virtuosismo técnico que lhe é peculiar para criar retratos de grande expressividade e corpos de anatomia perfeita, ou representa-os contorcidos, fragmentados, desequilibrados, encurtados, vestidos com inusitados trajes ou despidos. Movido por inconfundíveis particularidades estéticas e culturais, o artista revira as gavetas da memória para se referir à fragilidade, à vulnerabilidade, à absurdidade e ao jogo de interesses que se alojam nos bastidores do poder.